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terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Tribunais… – Cartas de notificação das testemunhas e alterações dos julgamentos


 

Eis uma situação desagradável que porventura ainda persiste – pelo menos existia até há poucos anos – e que em nada contribui para a boa imagem da justiça, devendo como tal ser evitada, a favor do salutar relacionamento entre os tribunais e os cidadãos. Refiro-me em concreto às cartas de notificação que as testemunhas recebem para comparecer em tribunal, cujo teor é agravadamente mal aceite quando as respetivas notificações vêm posteriormente “acompanhadas” com alterações súbitas das datas de julgamento.

Provavelmente é estandardizado o texto enviado pelos tribunais às testemunhas. Após a devida análise do mesmo, constata‑se que denota nítidos traços de falta de delicadeza. Atenda-se a dois exemplos de expressões dele extraídas: «se a testemunha não se apresentar» e «o faltoso». O primeiro exemplo é intimidatório e o segundo acusatório.

Somente falta qualificar de criminoso o faltoso, i.e., a testemunha que não se apresente em tribunal. Por certo o autor do texto conseguiria, sem grande esforço adicional, encontrar uma redação alternativa que, sendo igualmente assertiva e com um cunho de cumprimento obrigatório, transpirasse um menor grau de arrogância. Não beliscaria o poder da justiça; pelo contrário, elevaria o seu crédito perante os destinatários.

Conforme realçado ao princípio deste verbete, a abordagem refletida nas cartas de notificação das testemunhas não abona a favor quer da justiça, quer do respeito que os cidadãos devem nela depositar. Como se isto não fosse suficiente para desapreciar o papel do sistema judicial, há a agravante de ele ser – ou ter sido – pouco competente em termos de organização.

De facto, no caso que motivou o post em apreço, as pessoas envolvidas no processo de julgamento, incluindo as testemunhas, foram convocadas para estarem presentes num determinado dia, às 11 horas. Ora, cerca de duas horas antes da hora e do dia (há muito) previstos para o início do julgamento, elas foram informadas, telefónica e educadamente, por um funcionário do tribunal com um novo elemento: afinal o julgamento não seria realizado nesse dia, mas sim no dia seguinte – mas à mesma hora! Tanto zelo do funcionário para tamanha e lamentável falta de competência do tribunal.

Os cidadãos, para marcarem a presença na audiência e participarem no julgamento, tiveram de (re)programar os seus compromissos, em nome da suprema justiça. Ainda bem que é assim, em conformidade com os parâmetros exigidos a um sistema de justiça democrático e profissional. Mal é o amadorismo evidente da altaneira justiça, que decidiu nos últimos momentos e com o aviso de apenas um par de horas, mudar unilateralmente a data, sem ter manifestado a mínima humildade para pedir desculpa pelo incómodo causado, nem tão‑pouco dar qualquer explicação sobre a infeliz bizarria.

Erros todos cometem. Porém, não só o limite de tolerância ao erro deve ser mais reduzido nos tribunais – pelo menos que acertem nas datas dos julgamentos –, como é menos aceitável quando tais instituições judiciais que cometem erros invulgares e crassos são arrogantes no modo como convocam as testemunhas.

A justiça daquele tribunal demonstrou estar acima das normas de conduta e da consideração pelos cidadãos. Será um desejo ambicioso implorar a revisão – para o caso de ainda não ter sido realizada – da redação das cartas de notificação das testemunhas?


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domingo, 28 de junho de 2020

O réquiem pela justiça e a operação Mãos Dadas com Abril (parte II/II)

O réquiem pela justiça e a operação Mãos Dadas com Abril (parte II/II) (02/07/2014)



Portugal e os outros Estadosmembros da União Europeia


Segundo informação do relatório de 17 de março de 2014, produzido pela Comissão Europeia, referente ao painel de avaliação dos sistemas jurídicos – avaliação efetuada pela Comissão para a Eficácia da Justiça na Europa (CEPEJ) do Conselho da Europa, do qual fazem parte 47 países (europeus, asiáticos e transcontinentais), incluindo os 28 estadosmembros da União Europeia (UE) –, entre os 20 estados da UE que disponibilizaram dados à CEPEJ reportados a 2012, Portugal foi o que registou maior tempo médio necessário para resolver, em tribunais de primeira instância, processos de natureza não penal (nomeadamente processos civis, comerciais, administrativos e executivos, fossem ou não litigiosos). Não obstante, de acordo com a mesma fonte, de 2010 a 2012 observouse que em Portugal o tempo médio desceu sobremaneira, de aproximadamente 1100 para pouco mais de 850 dias.

O nosso País estava colocado igualmente no fundo da tabela quanto ao número de processos pendentes em tribunais de primeira instância. Em 2012, entre 22 estados da UE que forneceram dados à CEPEJ, Portugal tinha, em média, quase 16 processos por cada centena de habitantes. Do total de processos pendentes, pouco mais de 1/5 relacionavase com conflitos judiciais em matéria civil e comercial, portanto quase 4/5 respeitavam a processos civis e comerciais não litigiosos e a outros processos não penais, litigiosos ou não. Esta última fração ilustra o quanto há por empreender para reduzir a burocracia e otimizar os recursos.

As conclusões não foram muito diferentes quando as fotografias tiradas aos países se restringiram ao tempo necessário para a resolução de conflitos civis e comerciais de primeira instância, bem como – fração de 1/5 identificada no parágrafo antecedente – ao número dos respetivos processos que estavam pendentes. Um regime que assente em justiça lenta – e com a agravante de ser cara – é quase tão injusto como outro que condescenda com a absolvição dos culpados. Os dados do relatório supramencionado puseram a nu a magnitude da desvantagem competitiva de Portugal na área da justiça – alinhada, aliás, com a desvantagem existente noutras áreas –, para além de revelarem o estado incipiente e ténue da nossa soturna democracia.

Contudo é forçoso complementar, em abono da verdade, as conclusões referentes a Portugal destacadas nos parágrafos anteriores. A CEPEJ avançou dois elementos que explicaram parcialmente a desprestigiante posição do País – o número de juízes e o número de advogados. Por um lado, o facto de termos o pior registo quanto à duração de resolução dos processos e ao número de processos pendentes não significava que a produtividade dos juízes nacionais fosse a pior, dado que Portugal encontravase na média europeia no que imputava ao número de juízes profissionais (i.e., a tempo inteiro) por cada 100 mil habitantes. Entre os 27 estadosmembros da UE para os quais existia informação, estávamos na 14.ª posição, ou seja, precisamente no meio da tabela. Em 2012 tínhamos menos de 200 juízes por milhão de habitantes. Em 20 desses 27 países o correspondente número de juízes situavase no intervalo de 100 a 300.

Por outro lado, verificouse que, para os mesmos 27 estados, Portugal ocupava a sétima posição no tocante ao número de advogados por cada por cada 100 mil habitantes – em 2012 havia à volta de 2700 advogados por milhão de habitantes. Para efeitos de comparação com a nossa posição respeitante ao número de juízes indicada no parágrafo de cima, informese que o país que ocupava a 14.ª posição em termos do número de advogados tinha pouco mais de mil advogados por milhão de habitantes.

A proporção entre o número de juízes e o de advogados em Portugal é sintomática da burocracia retrógrada do nosso regime e dos procedimentos jurídicos intrincados, enfim, algumas das causas justificativas da ineficácia e da ineficiência da justiça. Com base em dados de 2010, havia 9,7 advogados por juiz no espaço da UE (excetuando Chipre, Malta e Reino Unido, por ausência de informação comparável à dos restantes países) – a mediana era 5,1. Nesse ano Portugal registou a quarta proporção mais elevada, com 14,1 advogados por juiz – em 2012 o rácio foi semelhante ao de 2010.

Aliás, o gráfico seguinte evidencia a existência duma ligação forte entre o tempo necessário para a resolução de processos judiciais e o universo de advogados – apesar de nem sempre a realidade dos regimes dos vários países ser totalmente comparável. Essa ligação traduzse num coeficiente de correlação de 0,72. Por falta de informação, a Bélgica, a Irlanda e o Reino Unido não foram incluídos no gráfico. Visto que, para 2012, em apenas 20 países havia dados para o tempo de resolução dos processos – vide primeiro parágrafo desta secção –, para calcular tal coeficiente aproveitouse a correspondente informação relativa a 2010, no pressuposto razoável que a realidade em 2012 não diferia muito da de 2010. De qualquer modo, considerando exclusivamente os 20 países atrás enunciados, a correlação acentuavase, passando para 0,83.


O coeficiente obtido aumentava de 0,72 para 0,82 se fosse excluído da análise o Luxemburgo – um dos cinco países cujos dados sobre o número de advogados e sobre a duração dos processos em primeira instância reportam, respetivamente, a 2012 e a 2010. Trata‑se dum território com características peculiares que distorcem a comparação com os outros estados no que se refere ao número de advogados. A peculiaridade prende-se com dois factos, a saber: o peso da atividade financeira luxemburguesa exige um denso contingente de staff jurídico, e o Tribunal de Justiça da UE está sedeado no Grão‑Ducado. O gráfico poderá ilustrar ainda que a maior propensão cultural dos países do sul da Europa para a litigância (face aos seus parceiros da UE) traduz‑se na solicitação acrescida do serviço de advocacia, o que conduz ao congestionamento dos tribunais e à necessidade de mais tempo para encerrar os processos judiciais.

Exemplos de boas práticas internacionais


Embora não haja modelos jurídicos perfeitos, uns são deveras mais imperfeitos do que outros. É duvidoso – senão sofismável – evocar formas específicas de organização judicial unicamente porque surtem efeito num país. Como foi realçado anteriormente, o que releva é a importância que os cidadãos depositam na justiça. Na secção em apreço apresentamse dois exemplos comprovativos de como esterilizar com êxito a cloaca da corrupção e da burla, tipos de crimes bem conhecidos em Portugal, república onde os prevaricadores conseguem esquivarse às malhas da lei e da justiça.

Seria bom que os juízes portugueses fizessem um curso intensivo de justiça efetivamente independente, em especial para não se deixarem instrumentalizar pelo poder político e para aprenderem como se tem mão pesada com os barões corruptos e os restantes traidores da democracia, mesmo que sejam proeminentes empresários, autarcas, deputados ou ministros (incluindo os chefes da ordem ministerial). Tenhase presente – como acontece no nosso País – que é redutor cingir a independência dos juízes ao facto de estes serem recrutados (excluindo os juízes com os cargos mais elevados), não por nomeações, mas sim por concursos públicos, através dos quais são selecionados os candidatos que demonstrem maior mérito para o exercício da função. Conviria que aquele curso fosse ministrado pelos intrépidos e impolutos juízes italianos que desmembraram o polvo mafioso da corrupção e transformaram em cinzas os tradicionais partidos do poder – operação Mãos Limpas, iniciada no início dos anos 90.

É certo que a hercúlea luta só foi possível porque em Itália existe, na verdadeira aceção da expressão, independência do poder judicial face ao poder político, condição fundamental para garantir permanentemente que os juízes tomem, em pura consistência – sublinhese –, decisões justas (mesmo que depois se revelem erradas, pois o erro é inerente ao processo de tomada de decisões). Para tanto será necessário que a classe política abdique do domínio que tem sobre o poder judicial e o ceda a este último, o que se antevê ser alcançável somente quando o povo português, exaurido pelo chicote e jugo da corrupção, dos favorecimentos e das demais golpadas, assim reclame viver num genuíno Estado de direito. Importa estar ciente que a cruzada italiana contra a corrupção não teria surgido se não fosse o gentio exasperado, na rua, a disparar firmemente o gatilho da revolta, ante a saturação que o assolou decorrente dos custos crescentes da maleita dos subornos e da submissão da administração pública às jogadas imundas da generalidade da horda política.

Por outro lado – segundo exemplo –, não se podem abstrair as virtudes invulgares intrínsecas ao sistema jurídico norteamericano, apesar de ele por vezes confrontarse com erros gravíssimos (designadamente quando inocentes são condenados à morte). O sentido pragmático de justiça e a obsessão pela igualdade dos cidadãos perante a lei, consubstanciados no desejo de reparar rapidamente os danos causados pela violação dos direitos individuais, fazem dos Estados Unidos da América uma referência em matéria de eficiência.

É paradigmático o caso Madoff – esquema financeiro em pirâmide do tipo Ponzi que envolveu cerca de 65 mil milhões de dólares (montante correspondente a quase 0,5% do Produto Interno Bruto norteamericano de 2009, não obstante parte do valor ter sido posteriormente recuperado). Em menos dum mês Bernard Madoff foi detido e acusado, e impôsselhe provisoriamente uma pena de prisão de 30 anos. Na altura comentouse ironicamente que, se fosse em Portugal, não chegavam 30 anos para deter e acusar o indivíduo, sendolhe aplicada no fim uma pena de prisão máxima dum mês.

Como é sabido, Madoff cumpre uma pena de 150 anos de prisão, não tendo o processo excedido sete meses – desde que o escândalo rebentou até à sentença final, em junho de 2009. Ao invés, aqui as megaburlas e os escândalos financeiros que se presem – que chegam a avultar milhares de milhões de euros, como foi o caso BPN, cujas perdas acumuladas em 2012 suportadas pelo erário publico já ascendiam a aproximadamente 4,5% do Produto Interno Bruto português desse ano – arrastamse ad æternum nos tribunais, sendo punidos, numa primeira fase, apenas pela precipitada avaliação da comunicação social e pela pachorrenta e amnésica opinião pública, e depois, no máximo, com cócegas de poucos meses de prisão efetiva.

À guisa de desafio


A burocracia, a par das permanentes diligências préjudiciais e dos sistemáticos requerimentos e recursos unicamente dilatórios, vem beneficiando as partes financeira e politicamente mais apetrechadas, e portanto tem uma significativa quotaparte de responsabilidade pelo descrédito da justiça nacional. Conforme salientado, o atual mau funcionamento pode ser debelado se nascer vontade política para o efeito, especialmente se se secar a fonte das inúteis manobras processuais. Para além disso, caberá ainda aos políticos o papel de moralizarem a justiça, seja enterrando a sua capacidade ardilosa de alterar as leis para delas poderem usufruir – até que em legislaturas subsequentes outros políticos corrijam os erros cometidos, repondo as leis antecedentes –, seja instituindo um sistema jurídico verdadeiramente independente, que jamais possa ficar subjugado aos caprichos dos interesses partidários – retomese a referência constante do segundo parágrafo da secção anterior, de que o acesso aos cargos jurídicos superiores continua submetido às escolhas dos políticos.

Mas a culpa não morre solteira. Acima de tudo, e reafirmando o que já foi expresso neste texto, será indispensável que o eleitorado abandone a apatia relativamente ao destino da democracia e reivindique um intenso e contínuo nível de justiça. Ademais, o nosso sistema não passará da cepa torta enquanto permitir que uma boa porção dos advogados – por inerência da natureza dos seus clientes, é certo – continue a abraçar e a louvar uma justiça serôdia ou travestida, cujo fito principal é atrasar ou impedir os processos judiciais. Por outras palavras: o caminho da luz ocorrerá quando os advogados (forçados ou não pela lei) tiverem a mente flexível para, nas ocasiões em que as palavras “justo” e “legal” não rimarem totalmente, derem primazia à primeira. Será um trabalho bastante árduo tentar inverter o statu quo, o qual só será efetuado quando a comunicação social e a opinião pública atingirem a maturidade cívica e concertarem esforços para a mudança de rumo.

Continuando na identificação da origem da culpa, há que incluir os juízes. Eles devem ser chamados à colação, tanto por desautorizarem (e por vezes, na prática, humilharem) colegas dos tribunais de instância inferior – e, assim, deixaremse cair na teia dos vícios –, como por não terem o distanciamento necessário e entrarem na defesa dos interesses corporativos – ao não punirem adequadamente os colegas que mancham a justiça. No que respeita a este último aspeto, convém frisar que a aferição da qualidade das decisões dos juízes – que impreterivelmente tem de ser feita por pares imparciais – não melindra a sua independência; apenas assegura a credibilidade do aparelho judiciário.

Em regimes eficazes, a independência é incompatível com a impunidade. A ausência da aferição atrás identificada lembra as situações de juiz em causa própria, que comprovadamente provocam mau resultado. A inamovibilidade dos juízes é uma condição que deve estar relacionada com a competência, ou antes, deve ser excecionada em casos de comprovada incompetência; caso contrário, permitirseá que, no limite, a desresponsabilização seja vitalícia, o que é a antítese da própria justiça. Para tanto, os agentes envolvidos têm de estar preparados para fomentar a competência e eliminar de facto a impunidade – não através do levantamento de processos disciplinares que pouco ou nada produzem de material. Haja povo criador e ousado que assim pense e que queira atacar sem rodeios os corporativismos.

Repetindo a pergunta que intitula a primeira secção da parte I deste texto: aplicasenos o círculo virtuoso «sic lex, sic judex» ou o círculo vicioso «sic intentio, sic judex»? Nem sempre é a força da lei que norteia os vereditos; nalgumas ocasiões o norte é dado pela má intenção, seja de quem faz as leis, seja de quem as aplica. Com efeito, não é invulgar que duas ações de equivalente matéria jurídica assistam a desfechos divergentes ou antagónicos, consoante a capacidade financeira das partes, o peso político dos arguidos e o entendimento dos juízes. Para que não houvesse dúvida quanto ao grau de liberdade que vigora num Estado de direito, nunca se deveria colocar aquela pergunta, pois ela indicia uma violação mordaz da república, e ainda mais da verdade que brotou – mas não vingou como se ansiava – do arroubo do povo e dos militares em 1974.

A descriminalização dos pecadores representa a condenação ignóbil da Justiça. Réquiem por Ela, Senhora da fulgurante liverdade. Uma vez elevada ao lugar que tarda, celebrese a sua descida ao mundo dos homens, somente sonhada ou com genuínos e duradouros pactos de regime, ou com a renovação da magistratura e a insurreição da população. No fundo – ou o sistema jurídico não fosse o esteio máximo da democracia –, será a aurora doutra cruzada que ficará na História de Portugal: a operação Mãos Dadas com Abril.

O réquiem pela justiça e a operação Mãos Dadas com Abril (parte I/II)

O réquiem pela justiça e a operação Mãos Dadas com Abril (parte I/II) (28/06/2014)




«Sic lex, sic judex» ou «sic intentio, sic judex»?


É consabido que a adequação do brocardo «tal lei, tal juiz» ao sistema jurídico português situase algures entre a carne e o peixe, porquanto em múltiplas situações desconhecese o que prevalece: se o espírito (ou a letra) do legislador ou o desejo do juiz. A justiça deve ser entendida como a aplicação escrupulosa da lei – lei justa, preferencialmente. Porém, são inúmeros os casos em que, por uma coleção de razões, ela depende dos caprichos de quem a aplica. Daí a validade da expressão «tal vontade, tal juiz» – traduzida livremente como «sic intentio, sic judex» – para refletir de certa maneira a realidade lusitana.

Ainda que nos textos que tenho publicado no blogue do FRES - Fórum de Reflexão Económica e Social sejam escassas as observações tecidas ao nosso aparelho judiciário, recebi pessoalmente alguns comentários – ora velados, ora declarados – sobre as mesmas. Foime transmitido que determinadas abordagens expressas são genéricas, opacas e, por vezes, agressivas. Ademais, fui criticado por não identificar medidas para o problema da justiça, ao contrário do que fizera com outros temas sensíveis, com destaque para o modelo autárquico, os direitos adquiridos, as parcerias públicoprivadas e a dívida pública.

Aqueles comentários referiamse concretamente às observações constantes do post Império dos enteados ou democracia empalada? Nele escrevi que, «Alheios ao facto de as ervas daninhas minarem as terras e os canteiros e sugarem as plantas vizinhas, os tribunais impõem irrecorríveis autos de absolvição, homologando o conjunto de espécies botânicas que frutuosamente destina o império que domina. Com arbitrária e autoritária decisão, os eminentes cangalheiros – ou antes: os ilustres canibais da lei – assumem o papel de carrascos pioneiros que mandam a justiça para a prisão. No fundo, são juízes conselheiros do dinheiro, que confirmam a utilidade das experiências inovadoras de resultado desconhecido. Não importa o resultado, desde que para cobaia se nomeie a grei.»

Acrescentei que «O pensamento de lentidão precisava de ser preso e julgado – mas não em tribunal, pelo que atrás foi indicado – pelos delitos comprovados de veleidade e de ausência de orientação. Entretanto, assistese à justiça órfã a crescer e à crucificação da moral tardiamente enxertada.» Logo, pareceme que, embora dum modo algo sarcástico, não fiz mais do que enfatizar a inequívoca demonstração dos crónicos e perversos préstimos da justiça à nossa democracia. As entrelinhas deste parágrafo e do anterior encerram diversos aspetos, os quais serão esboçados no presente post (que se encontra dividido em duas partes). Por estarem envolvidos assuntos interrelacionados, tornase impossível autonomizá-los e expô-los separadamente, o que seria desejável para evitar incorrer na desagradável repetição de ideias.

Além de estar afastado dos meandros e de dispor de diminutos conhecimentos acerca da matéria judicial, seria arrogantemente ingénuo – salvo a contradição – se propusesse soluções concretas para assegurar a eficácia e a eficiência dos sistemas jurídico e legal nacionais. Tanto mais porque, não obstante meio mundo já ter estudado e investigado aprofundadamente as matérias técnicas, as sucessivas reformas e contrarreformas – nem sempre articuladas entre si – das décadas recentes persistem em hibernar, isto é, acabam por ficar goradas as inúmeras tentativas para inverter os resultados desanimadores da justiça e a imagem deplorável que estes provocam na sociedade portuguesa. O facto de não atreverme a invadir o domínio da tecnicidade que os problemas exigem não significa que me abstenha de manifestar uma perspetiva de resolução global dos mesmos.

Voltando ao primeiro parágrafo, verificase que, com relativa frequência aquando das decisões tomadas, impera a intenção ou a vontade, e não a lei ou o direito. Têm sucedido vários casos onde os juízes dispõem de poder evidente para aplicar a força justa da lei – como por exemplo em ocorrências de corrupção e de burla – mas incompreensivelmente acabam por claudicar. Por alguns juízes – felizmente a exceção não dita a regra – não ousarem impor a sua competência (de forma consciente ou não), vai engordando a indelével constatação que a justiça é enviesada consoante as partes envolvidas nas ações judiciais e por isso tem sido inimiga da liverdade – liberdade com verdade. Está instalada a sólida convicção que os vícios enraizados serão unicamente dissipados com um corpo de magistratura corajoso, uma comunicação social isenta e uma opinião pública esclarecida.

Factos sem argumentos


A justiça é um fator nuclear para o fomento do crescimento e do emprego e para a consolidação democrática, até porque dependem de si, respetivamente, a efetiva atração de investimento sustentável e a concretização do princípio da igualdade de oportunidades. A efetiva atração de investimento sustentável é incompatível com uma série de fatores repelentes alojados na área jurídica – nas outras (entre as quais a área fiscal) dominam diferentes cardápios de obstáculos.

Os fatores vão desde a persistente morosidade para que os credores consigam valer os seus legítimos direitos até ao endémico embaraço processual. Este propicia a cristalização duma cadeia de vicissitudes, designadamente a vulgarização de procedimentos dilatórios e o crescimento do caudal de ações judiciais pendentes, sem contar com a intransponível proliferação de processos prescritos. Usase e abusase da figura dos recursos, esmagadoramente para atrasar a sentença final – de preferência, para apostar na prescrição –, e não para tentar impor a justiça.

A ineficácia judicial é um dos principais custos de contexto que os investidores – nacionais ou estrangeiros – colocam na equação antes de avançarem com as suas decisões. Para eles, a certeza e a celeridade jurídicas podem ser tão ou mais importantes do que os benefícios fiscais. O relacionamento transparente com as instituições públicas constitui um requisito elementar para a criação dum ambiente favorável ao investimento e à competitividade, ou seja, à geração de riqueza e bemestar.

A concretização do princípio da igualdade de oportunidades também se depara com fatores repelentes. Um deles reside no facto de os resultados das ações judiciais dependerem da capacidade financeira das partes, dada a consistente e robusta ligação entre os honorários dos advogados e a qualidade da defesa. Outro prendese com a influência dominante quer do poder económico sobre o poder político, quer deste sobre o poder jurídico – atendase à (latente ou efetiva) permeabilidade, face aos interesses políticos, do modelo de avaliação dos juízes – e sobre o poder legal – destaquemse os episódios de alteração de leis consoante os objetivos das maiorias parlamentares. Esta tripla cadeia de influências tem culminado nomeadamente nos crimes de lesapátria que ficam atolados na privação de pudor da Nação, protagonizados sobretudo por personagens do setor financeiro e por figuras públicas do campo político.

Um terceiro exemplo de fatores repelentes referese à impunidade, por vezes gritante, dos profissionais responsáveis pela prescrição dos processos, circunstância que não permite silenciar a perceção popular quanto ao peso do corporativismo que reina na classe da magistratura. Por a atitude displicente dalguns juízes sofrer nenhuma ou praticamente nenhuma consequência, poder-se-á concluir que na prática há profissionais de justiça que (também) estão acima da lei. O advérbio “também” tem subjacente a existência de personagens – das discretas e ignotas às públicas e proeminentes – que são peritas em tratar altivamente a lei por “tu” e em esconderemse nos labirintos da enigmática balbúrdia judicial.

Abrase um parêntesis, regressando à impunidade citada no início do parágrafo anterior. Em rigor não se pode escamotear que a taxa de instauração de processos disciplinares aos juízes portugueses foi, em 2010, de 2,5% – superior à taxa média (2,1%) e à mediana (1%) para os países pertencentes ao Conselho da Europa –, a qual terseá devido simultaneamente à melhor organização dos recursos e à vontade de fomentar a qualidade da justiça, o que é de enaltecer. No mesmo ano, a taxa de sanções pronunciadas em Portugal foi de 1,3% – acima da taxa média (1,1%) e da mediana (0,4%) para os países integrantes do Conselho da Europa –, sanções que resultaram, a nível nacional, na aplicação de multas em mais de metade dos casos. Apesar de tudo isso, é factual a nuvem de anticorpos resistentes que permanecem na relação entre a sociedade e a justiça.

Perante a amostra de fatores enunciada na secção atual, decorre a urgência de enfrentar com energia e sem hesitação os salafrários que, de maneira a proteger interesses particulares dos correligionários, modificam as leis a belprazer – com legítima aprovação parlamentar, é sabido –, assim como os compinchas que comungam com eles e ajudam a branquear as leis. Do mesmo modo, não se pode contemplar com os arautos da justiça que fazem da lentidão dos tribunais o seu hospedeiro. O que carece em Portugal não é tanto novas leis ou mais recursos, mas sim nova mentalidade e mais perseverança.

O caso especial das prescrições


Face ao rol interminável de problemas jurídicos relacionados entre si, tem sido difícil acertar nas prioridades. Durante as sucessivas legislaturas muito se tem tentado melhorar – cumpre confessar que em algumas áreas alcançouse o proveito previsto (ou próximo dele), embora não raras vezes de forma desgarrada. Parece contudo que a solução para a chaga das prescrições demora em ser valorizada como merecia, até porque, conforme consta direta ou subentendidamente da última secção, a justiça acaba, no máximo, no lugar morto da memória, seja devido a falhas do código processual ou por culpa dos próprios juízes.

É invariável a conclusão de que nenhuma lei, por perfeitamente elaborada que esteja, consegue sobreporse à máfé. Se se quiser assumir com honestidade o desiderato de debelar aquela gravíssima chaga que mina severamente a confiança no aparelho judiciário e a credibilidade da democracia, há que eliminar a via instintiva e errada que às vezes se ouve proferir: o alargamento dos prazos de prescrição. Seria pura ilusão crer em tal remédio e, pior do que isso, com o tempo a doença manterseia, o que constituiria motivo de chacota. Somente com uma cultura de justiça, por parte dos legisladores – vulgo políticos –, dos juízes e demais agentes judiciários e, sobretudo, da multidão de contribuintes angustiados com o castigo da injustiça, é exequível suplantar determinantemente as burocráticas manobras de entretenimento.

Importa afastar a carpidura extrema de que com um número acrescido de agentes de justiça e com mais meios materiais e tecnológicos se atinge a tão ambicionada eficiência do sistema. Todavia não se pretende com isto omitir as dezenas de situações merecedoras de insatisfações em matéria dos recursos afetos ao serviço público da justiça. É incontornável, a título de mero exemplo, o vexame de o Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa não dispor dum simples equipamento digitalizador de documentos (scanner) – recordese a entrevista concedida pela procuradorageral adjunta do Ministério Público, Maria José Morgado, a jornalistas da Antena 1 e do Diário Económico, em 14 de dezembro de 2013. É indesmentível que as condições físicas de trabalho dos juízes – porventura da esmagadora maioria deles – são indignas para o exercício das suas funções. O novelo de exemplos é bastante extenso, pelo que se dispensa a sua apresentação.

Repitase: a tardia conquista da eficiência não é (infelizmente) tão dependente da quantidade de recursos como se defende com alguma insistência – “infelizmente” porque se a problemática se resumisse aos recursos, então poderíamos sentirnos algo felizes (atendendo a que no figurino internacional não nos distanciamos da média). Em primeiro lugar, convém lembrar que a otimização dos recursos constitui um vetor básico para assegurar a eficiência – e portanto deve ser equiparada a uma necessidade primária. Em concreto, não faz sentido citar a quantidade de recursos sem antes esgotar a organização – quiçá revolução – processual que urge encetar, ou seja, sem antes afetar adequadamente os recursos disponíveis aos processos judiciais, de maneira a maximizar a sua utilidade e produtividade – talvez libertando os juízes das bagatelas de ações que consomem uma boa parte do seu precioso tempo.

Em segundo lugar, e retomando a parte final do antepenúltimo parágrafo, é obrigatório reconhecer que a cultura democrática de justiça está ligada ao caráter do povo. Este ou temna, ou quer têla, ou então julga que vive bem sem ela. Se as populações fossem unicamente constituídas por pessoas honestas e sensatas, não seriam precisas leis e muito menos tribunais ou profissionais de justiça. Como a realidade não se compadece com tamanha utopia, pede-se tão-somente que cada um de nós pense com elevação cívica: que tenha a consciência de que o bem público deve ser tão respeitado como o bem privado, nomeadamente no que toca à utilização escrupulosa dos recursos sob os critérios da eficiência e da equidade; e que interiorize que o alastramento de crimes tão vis como a corrupção e a burla colapsam a competitividade do País e, por essa via, amputam a esperança e dilapidam o futuro nacionais, dos cidadãos atuais e dos vindouros.

Não basta que os portugueses repudiem brandamente as práticas imorais e de má conduta. Isso não lhes concede especial legitimidade para o lamento. Há que transformar a tradicional rejeição numa inovadora reação, i.e., em ativa e moderna cidadania. Tal como a água, os males correm para onde os deixam entranhar. Parafraseando a ancestral máxima de Edmund Burke, o mal avança cada vez que o bem fica quieto. De que lado está cada um de nós: das forças dinâmicas do mal ou das forças estáticas do bem? Quem responder rapidamente a esta questão, ou assumese sem pejo militante do partido do mal, ou reconhece que não se lhe aplica qualquer das duas hipóteses – mas sim a terceira alternativa válida, que reside nas extraordinárias forças dinâmicas do bem. Demorar alguns segundos a responder significará estar alinhado com o mal, por omissão de atitude. Faltanos ação. Penitencio-me.

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