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sexta-feira, 3 de julho de 2020

Abstenção lusitana – Quo vadis? (parte II/II)


Abstenção lusitana – Quo vadis? (parte II/II) (28/10/2015)


B. ... à democracia do futuro

Princípio da representatividade alargada – com ou sem bonificação?

28. Portugal não é uma federação nem tem instituída a regionalização administrativa; a identidade lusa é una, como a História demonstra. A salvaguarda dos interesses das partes (regionais) são uma extensão dos interesses do todo (nacional); as quatro décadas de democracia provam isso. Como sobredito no ponto 5, na Assembleia da República os parlamentares levantam o indicador ou a mão consoante o que as cúpulas lhes ordenam, independentemente do círculo eleitoral de origem e até do efeito negativo que o sentido de voto partidário produz nas zonas onde foram eleitos.

29. Importa dealbar o sistema atual, e colocá-lo ao serviço dos eleitores e não das (maiores) organizações políticas. Não se trata duma afirmação demagógica ou lapalissiana, nem duma crítica velada ou gratuita. Há que eleger os deputados com base no escrupuloso respeito pelo princípio da representatividade alargada. Este consiste na eleição dos deputados em função do número de votos a nível nacional, e por isso implica o desaparecimento dos (22) círculos eleitorais.

30. Estando o busílis do assunto escrito desta forma, parecerá uma mudança radical. Nada disso, porquanto serão os próprios partidos a assegurar que os deputados das suas cores advêm das diferentes áreas – do território continental e insular e do estrangeiro –, e a definir os critérios de seleção dos elegíveis parlamentares. Sobre as caras dos deputados e a sua proveniência espacial haverá certamente um rol de alternativas, que não cumpre agora mencionar.

31. Como é óbvio, somente se pode conhecer com exatidão os deputados eleitos quando terminar a contagem dos votos válidos e o apuramento global for oficialmente publicado. Antevê-se pois que os inconvenientes intrínsecos à aplicação do princípio em análise residam no emagrecimento do mediatismo das noites televisivas dos rescaldos eleitorais, por um lado, e na necessidade de se enveredarem os esforços para que o escrutínio termine o mais rapidamente possível, por outro.

32. Relembre-se que, por força dos votos dos patrícios residentes na diáspora, apenas em 14 de outubro, portanto uma dezena de dias após a realização do plebiscito, os resultados – mesmo que não definitivos – estavam disponíveis no sítio da Internet da Comissão Nacional de Eleições. Copioso tempo, por mais justificações que haja, até porque basta ter presente que a emigração pesou 0,5% da totalidade dos votos válidos (e 2,5% do universo dos cidadãos recenseados), e que a votação efetuada no espaço do Continente e das Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores foi tornada pública na madrugada imediatamente após o fecho das urnas.

33. Admite-se que, com a resistência das lapas partidárias que se colam desesperadamente à rocha do sistema vigente, e com o olhar de soslaio quer dos principais órgãos de comunicação social, quer do séquito de astrólogos e comentadores do sobe-e-desce, a proposta em apreço de reformulação das regras existentes não vislumbre réstia de esperança. Se tal suceder, serão novamente preteridos os interesses do povo e da democracia, por conseguinte qualificadas de banalidades – povo e democracia – ante os superiores desígnios dum punhado de caprichos.

34. Não obstante a invulgaridade do modelo recomendado neste post, ele revela-se de imprescindível aplicação. É deveras preocupante continuar-se a assistir ao crescimento consistente da resignação política e cívica (manifestada reiteradamente nas urnas) e a manter uma postura pusilânime, sem vigor para transformar em ação a demagogia instalada. Mas agora o objetivo é passar das palavras aos números concretos, de modo a aferir a (i)lógica e a (in)validade – conforme os gostos – da metodologia sugerida.

35. Para ilustrar o (de)mérito do princípio da representatividade alargada, socorreu-se dos resultados das duas últimas legislativas, sobre os quais incidiram quatro cenários. Dois derivam da aplicação da proporcionalidade direta ao número total de deputados: sobre 230 parlamentares (que a lei nacional hoje estabelece), e sobre 180 (no pressuposto da desejável concretização da redução de 50). Sob o escopo de a proposta contribuir para a estabilidade governativa, os restantes dois cenários baseiam-se na atribuição dum bónus de deputados à força política vencedora. Para os cenários de 230 e de 180 deputados consideraram-se, respetivamente, prémios de 40 e de 30 mandatos.

36. Note-se que a figura da bonificação para o partido mais votado não constitui qualquer inovação bizantina. Pelo contrário. Segue a linha instituída na plaga que foi o berço mundial da democracia – a Grécia. Lá a benesse é de 50 deputados, portanto equivalente a 1/6 do total de 300 parlamentares. Com o intuito de assegurar semelhante peso, usaram-se os bónus identificados no final do parágrafo anterior. Sublinhe-se todavia que – por oposição, como se verá, ao que foi efetuado no cenário II atinente às eleições de 2015 – no regime grego a recompensa não é concedida quando as organizações concorrem coligadas, para promover a identidade partidária.

37. Se o sistema de bonificação avançasse em Portugal, previa-se que, almejando pelo triunfo eleitoral, as duas maiores forças, PPD/PSD e PS, não se acamaradassem com quem quer que fosse, para não arriscar perder o potencial benefício adicional. Contudo provavelmente permaneceria a coligação entre o PCP e o PEV, não por eles estarem afeitos e até aferrados um ao outro, mas por não ser expectável tal coligação sair vitoriosa das legislativas – e assim não incorrer no risco de desperdiçar o bónus –, e desse modo habilitar-se ao aproveitamento dos «votos sobrantes», como se abordará mais à frente, em (e) do ponto 44.

38. Dos dois quadros seguintes constam os resultados dos cenários. A análise estendeu-se às legislativas de 2011 para demonstrar que o vezo eleitoral não é esporádico mas, ao invés, sistémico e endógeno ao regime em vigor.


Quadro 2




Quadro 3

39. No tocante ao sufrágio de 2011 – quadro 2 –, ressalta que o sistema vigente contemplou exclusivamente cinco partidos ou coligações. Ora, aplicando o princípio avançado neste texto, os cinco subiriam para 13, no cenário I, ou para 11, nos demais cenários. Quanto às legislativas de 2015 – quadro 3 –, mantém-se o número de cinco forças políticas abrangidas (dado que, apesar de ter existido uma organização estreante, passou a haver duas coligações com assento parlamentar), aumentando a meia dezena para 14, nos cenários I, II e III, ou para 12, no cenário IV.

40. Acaso se entenda dever fixar um número mínimo de votos para que uma força política designe um deputado, o princípio da representatividade alargada conserva a validade. Porém esta esvanecer-se-á no caso de o limiar que vier a decidir-se ser superior ao número médio de votos do partido ou da coligação triunfador.

41. Assim, relativamente às recentes eleições legislativas, e tendo em conta que 19.548 foi o número médio de votos necessários para que a coligação do PPD/PSD e do CDS/PP elegesse 102 deputados – e, pior do que isso, o correspondente número desceu para 16.210 para os mandatos do PPD/PSD nos círculos da Madeira e dos Açores –, não é crível que o número mínimo exigido estivesse desfasado dessas realidades. Nesses termos, só as forças políticas PPM e JPP – para além do PURP, do PPV/CDC e do PTP – não poderiam ficar representadas na Assembleia da República (por o número de preferências ter sido inferior a 15 mil, em qualquer um deles).

42. Em relação ao plebiscito de 2015, para efeitos da afetação, ao CDS/PP e ao PPM, dos votos recolhidos pela coligação desses partidos nos Açores, utilizou-se o peso que os mesmos obtiveram separadamente nas legislativas de 2011. Também no que toca às eleições de 2015, ensaiou-se a decomposição da votação captada pela coligação vencedora. Para tanto, admitiu-se que 15% dos votos na coligação provieram do eleitorado democrata cristão. Note-se que em 2011, tomando por referência a votação, no arquipélago da Madeira, no PPD/PSD e no CDS/PP, o número de preferências nesta última organização partidária representou 22%, contra aproximadamente 23% para o território agregado de todos os círculos eleitorais.

43. Por conseguinte, não existe motivo objetivo para refutar a hipótese de os resultados eleitorais na Madeira continuarem a ser uma proxy para estimar o peso que o CDS/PP deteria se tivesse concorrido isoladamente. Visto que nas legislativas de 2015 o CDS/PP obteve, na Madeira, quase 14% do total de votos nos dois partidos, então aplicando 15% – apenas mais um ponto percentual do que 14% – às escolhas depositadas na coligação entre o PPD/PSD e o CDS/PP, e adicionando as preferências pelo CDS/PP nos arquipélagos da Madeira e dos Açores, pressupôs-se que os democratas cristãos alcançariam cerca de 6% da votação global, o que se traduziria em 15 deputados (contra 24 em 2011).

44. Para a concretização dos cenários, seguiram-se os passos abaixo descritos.

(a) Dividiu-se o número total de votos válidos – excluindo portanto os votos brancos e nulos – pelo número de deputados a eleger deduzido, quando aplicável, da bonificação, i.e., divisão por 230, 190, 180 ou 150, consoante os cenários.

(b) Como o número de votos por mandato daí resultante é decimal, o mesmo foi truncado à parte inteira.

(c) Procedeu-se ao quociente entre o número de votos válidos afeto a cada força política e o número inteiro de votos por deputado calculado através de (b).

(d) Atendendo a que o número de deputados extraído de (c) é decimal, truncou-se igualmente o resultado à parte inteira.

(e) Por se ter truncado o número de votos por mandato, e assim o número dos deputados repartidos segundo a etapa (d) ser inferior ao número de parlamentares mencionado na fase (a) – 230, 190, 180 ou 150 –, os deputados por eleger foram distribuídos pelos partidos e pelas coligações com maior número de votos sobrantes.

(f) Por fim, no caso de haver atribuição de prémio ao vencedor das eleições, este foi adicionado ao número de deputados decorrente da aplicação dos passos anteriores.

45. Para não subsistirem dúvidas, explique-se como, em 2011, no cenário IV, o número de parlamentares que as organizações PPD/PSD e PTP teriam obtido se cifraria em 90 (PPD/PSD) e um (PTP). O exercício não foi seguido para 2015 tão-somente por opção, devido ao facto de a força política vitoriosa corresponder a uma coligação e por isso – em nome da identidade partidária – não dever usufruir do bónus.

(a) 5.356.612 votos válidos / 150 mandatos = 35.710,7;

(b) 35.710 corresponde à parte inteira de 35.710,7;

(c) 2.159.181 votos / 35.710 votos por deputado = 60,46 deputados para o PPD/PSD, e 16.895 / 35.710 = 0,47 deputados para o PTP;

(d) 60 é a parte inteira de 60,46, e 0 a de 0,47;

(e) Mediante os procedimentos precedentes, seriam distribuídos 143 parlamentares, cabendo 60 ao PPD/PSD e nenhum ao PTP. Ou seja, ficariam sete mandatos por alocar às organizações políticas. Como 2.159.181 - 35.710 x 60 = 16.581 e 16.895 - 35.710 x 0 = 16.895 correspondem às oitava e sétima maiores diferenças de votos não utilizados – votos sobrantes mencionados na parte final de (e) do parágrafo 44 – aquando da distribuição dos 143 deputados, o último parlamentar ficaria adstrito ao PTP (16.895 > 16.581);

(f) Dado que o PPD/PSD foi o partido que registou o maior número de preferências, desfrutaria do proveito de 30 deputados, o que perfaria o total de 90.

Democracia por inteiro

46. A lei vigente alimenta o aumento persistente da abstenção. Para inverter, sem rebuço nem abulia, o statu quo, cumpre inevitavelmente desligar a máquina que mantém vivo o centralismo democrático e, ao invés, pôr a funcionar o princípio da representação parlamentar efetiva, ou melhor, alargada. No nosso burgo os votos não têm sido tratados do mesmo modo, pelo que é fundamental derrear as regras atuais. Os dois singelos exemplos extraídos do último plebiscito, respeitantes ao círculo eleitoral de Portalegre e à diferença de menos de seis milhares de votos se ter traduzido em quatro deputados, para além da panóplia de inconsistências quantificadas no quadro 1 da primeira parte do post, são sintomáticos da fragilidade do regime nacional e portanto da premência de o reformular.

47. Se as organizações políticas – sobretudo as mais poderosas – pretenderem, a  contento da verdade e com aprumo de vontade, perscrutar as causas da abstenção e entrar no âmago do combate ao seu crescimento, então uma medida primacial consiste em mudar de paradigma e instituir uma exata e fiel ligação proporcional entre o número total de votos – independentemente do território proveniente – e o número de mandatos parlamentares. Os partidos devem moldar-se aos eleitores e estes aos melhores interesses da Nação, bastando para tal que, uns e outros, se dispam da inércia estrutural com que se têm vestido. É unicamente um apelo de índole democrática, que vai da política à cidadania.

48. A democracia tem de ser vista como uma virtude concedida aos povos e jamais aos partidos – mesmo que estes tenham encabeçado o seu nascimento ou crescimento –, de onde os políticos deverem estar ao serviço do povo e não dos partidos. A reforma da lei eleitoral tem-se revelado a espada de Dâmocles das organizações com assento parlamentar, sem exceção. Temem que o chão lhes possa tremer com alguma mudança (às vezes infundadamente – vide ponto 22). Ainda que resiliente, a democracia não se compadece com temores dessa natureza. Enquanto o regime permitir que se proteja por inteiro os partidos em detrimento da democracia, os partidos permanecem inteiros mas a democracia esmigalhada.

49. Em termos de utilidade para a formação de opiniões, indiscutivelmente carece mais um parlamentar duma qualquer força política minoritária – e porventura problemática, por não se encontrar alinhada com a referência do que é considerado politicamente correto –, do que dois deputados do arco da governação, esteja ou não garantida a estabilidade governativa (vulgo, a maioria absoluta). A diversificação nada tem a ver com maiorias ou minorias; antes com o valor da pluralidade.

50. O primeiro parlamentar – podendo até ser o último abencerragem do estalinismo ou do fascismo – contribui para o debate de ideias (boas ou más, aos olhos da esmagadora maioria), ao passo que os dois deputados do arco geralmente não passam de marionetas arqueadas e acéfalas. As democracias eficientes não vivem de arcos nem de tangentes de governação, mas sim de secantes, que cortam e atravessam diferentes perspetivas, outrossim democráticas e dignas de serem representadas em função do peso das opções do eleitorado.

51. Pese embora não se terem produzido comentários aos quadros 2 e 3 constantes do parágrafo 38, nomeadamente por esses serem autoexplicativos, há a realçar que qualquer dos cenários apresentados é claramente melhor do que o regime vigente. Sendo o voto simultaneamente armipotente e benigno, o princípio da representatividade alargada incorpora a solução adequada para traduzir a liberdade expressa pela população nas urnas. Eis porque a representatividade alargada não é um bodo concedido pela lei à democracia; constitui antes a mais singela exigência democrática. Quem discordar destas conclusões tem de reconhecer que para si, na sua desfocada óptica, ao início os votos são todos iguais mas no fim uns acabam por ser mais (des)iguais.

52. Para além disso, os cenários com bonificação são seguramente os preferíveis. Compatibilizam a governabilidade (associada às maiorias absolutas) com a pluralidade de identidades partidárias (permitida pela escrupulosa proporcionalidade entre escolhas dos cidadãos e mandatos parlamentares). Para ilustrar o contributo dos bónus com vista a promover a estabilidade política, atenda-se ao cenário II do quadro 2.

53. Nesse cenário, com a votação obtida em 2011, o PPD/PSD não precisava de coligar-se para governar com maioria absoluta – e ficaria por uma unha negra (de 315 votos, 16.895 - 16.581 + 1) de a alcançar no cenário IV. E, admitindo que – conquanto não desejavelmente, como se subentende do que foi reforçado –, ao contrário da Grécia, seria possível atribuir o prémio de vencedor a uma coligação, nas eleições de 2015 o PPD/PSD e o CDS/PP alcançariam a maioria absoluta no cenário II. A análise dos quadros também prova que a redução do número de deputados, se for articulada com uma genuína representatividade, em nada interfere com a governabilidade.

54. Os interesseiros habituais, ao entenderem que a democracia é uma coutada que só a eles pertence, opõem-se, tenaz ou sub-repticiamente, às ideias de mudança, relacionadas em especial com a representatividade efetiva, a concessão de bónus e a redução do número de deputados. Já que os grandes partidos se fazem de surdos, ao menos que os pequenos não se façam de cegos. Que uns e outros não aprisionem a cristalina liberdade da razão. Os dados estão lançados para a condução de tamanha façanha. Com as contas das eleições definitivamente fechadas e o subsequente baile quase a fechar, retire-se a cabeça da areia. Caso se prefira a luz à ilusão.

Abstenção lusitana – Quo vadis? (parte I/II)

Abstenção lusitana – Quo vadis? (parte I/II) (19/10/2015)


A. Do futuro da democracia...

Crescimento democrático da abstenção

1. Enquanto ainda está acesa a fogueira iniciada no passado dia 4 de outubro, comece-se a dar uso às brasas já formadas. Assim, convém em primeiro lugar atualizar o gráfico do post«O povo, as saturninas parlamentares e a democracia desalinhada», publicado em 29 de janeiro de 2014. Para realçar – conquanto não num sentido nobre – o decréscimo da participação eleitoral dos cidadãos, acrescentou-se a taxa de variação do número de votantes, tendo por base a afluência às urnas nas primeiras legislativas da III República, realizadas em 1975.


2. Por simplificação, dispensa-se tecer comentários ao gráfico acima apresentado, pois a fazê-lo haveria impreterivelmente, em grande parte, uma reprodução do que fora escrito no supracitado post. Porém, quanto aos novos dados, respeitantes à taxa de variação da participação nos sufrágios, constata-se que a respetiva evolução, ora descontínua – até 2002 –, ora decrescente – a partir de 2005 (e por mero acaso após as primeiras legislativas subsequentes à aplicação da Lei n.º 19/2013, de 20 de junho) –, encontra pouca explicação quer na desatualização dos cadernos eleitorais, quer em razões demográficas.

3. Com efeito, tal evolução dimana sobretudo do alheamento cívico e político dos portugueses aquando dos atos de votação, evidência em si demonstrativa de que o já grisalho sistema eleitoral nacional está aquém das necessidades. Eis o motivo que espoletou a curiosidade para entrar-se em latitudes distantes das do regime vigente, regime que tem sido aliás objeto de várias abordagens de análise, por parte do FRES e dalguns dos seus membros, as quais apontam para a gesta de reformular a lei eleitoral. As propostas aqui expostas são complementares às demais; umas não prejudicam as outras, atendendo a que todas elas direcionam-se para o fito de elevar a transparência da democracia lusitana a um patamar superior, compatível com aquele que a Nação merece.

4. Relativamente ao número de votos exercidos em legislativas da era do pós-25 de Abril, importa sobressair que no último plebiscito registou-se o nível mais baixo de todos, fixando-se num decréscimo de 3,2% face ao sufrágio de 2011. O nó górdio tem de ser desatado, pois não é crível que a abstenção pare de crescer se o sistema permanecer nos moldes atuais, com os vícios legais que encerra. A lei protege as forças políticas da alternância do poder, que subentendidamente se autodefinem como os proprietários do couto da democracia bicípite e bicolor – ainda assim melhor do que uma única cabeça e cor, é verdade –, e por isso flébil e insossa.

5. Cientes da falácia em redor da qual o regime orbita, uma legião de pessoas responde abstendo-se. A multidão sabe que é uma pura ilusão acreditar que os deputados exercem o seu papel defendendo os interesses regionais correspondentes aos círculos eleitorais que os elegem. Salvo raríssimas exceções, os parlamentares têm uma reação mimética, alinhando-se com as orientações das organizações a que pertencem, independentemente da sua raiz territorial. Perante este facto inequívoco, urge refletir acerca das alternativas eficazes, não para alterar a unidade intrapartidária mas, ao invés, para conferir pluralidade efetiva ao hemiciclo.

6. Por estranho que a comparação possa parecer, as democracias rutilantes devem revestir uma natureza fiduciária tão vincada quanto a depositada em quaisquer sistemas financeiros credíveis. As crises de confiança, embora bastante mais frequentes do que o esperado, que perpassam tanto democracias opacas como sistemas financeiros enfermiços, não desvirtuam a comparação. Por a lei eleitoral constituir um ingrediente essencial para impor a fiduciaridade, é fácil concluir que o modelo nacional não transpira vitalidade.

(Des)proporcionalidade da votação

7. Antes de se avançar para o cerne da mudança, acrescentem-se dois episódios concretos das recentes legislativas, reveladores da brenha da lei eleitoral, ou melhor, da duvidosa lógica mas do comprovado desequilíbrio das regras atuais sobre os mandatos para a Assembleia da República. O primeiro prende-se com o círculo de Portalegre, o mais reduzido de Portugal – a par dos dois círculos da emigração, da Europa e de fora do continente europeu –, que contribui com um par de deputados.

8. Com o presente regime, não admira que nesse distrito do Alto Alentejo o resultado obtido nos sufrágios redunde num acontecimento praticamente certo, em que de modo invariável se verifica uma divisão paritária dos deputados entre socialistas e sociais-democratas (ou eventuais coligações por eles promovidas). Sem ser necessário dispor de capacidades premonitórias, qualquer indivíduo consegue antecipar que o desfecho final terá uma probabilidade unitária, não por uma questão de fidelização dos votantes mas porque – repita-se – o quinhão de Portalegre se cifra em dois deputados.

9. No distrito portalegrense poderia ocorrer o caso extremo de haver apenas opções em dois partidos – até aí tudo normal, se tal brotasse da livre escolha dos conterrâneos –, e um deles ficar com um mandato recolhendo somente 33,4% das opções do eleitorado. O outro parlamentar estaria adstrito à organização política que granjeasse 66,6% do número de votos – percentagem que, apesar de substancialmente maior, seria inferior ao dobro de 33,4%.

10. A realidade nas últimas eleições não foi tão grotesca. Mesmo assim, naquele distrito alentejano o hiato entre os socialistas e os sociais-democratas e democratas cristãos foi de quase 15 pontos percentuais (42,4% - 27,6%). Por conseguinte, tendo os primeiros obtido mais 54% de preferências do que os concorrentes – 25.037, contra 16.303 –, a diferença de 8734 votos acabou por ser irrelevante em Portalegre. Repare-se então o que aconteceu quando a distância foi ainda mais exígua, e com isto entre-se de imediato no segundo episódio aludido no parágrafo 7.

11. Comparem-se agora o número das escolhas depositadas isoladamente no PPD/PSD – na Madeira e nos Açores – e globalmente – nos círculos do espaço nacional e nos dos locais da emigração – no PAN. O PPD/PSD atraiu nas regiões insulares 81.054 votos; no continente, nas ilhas e no estrangeiro o PAN recolheu a preferência de 75.140 cidadãos. Todavia a diferença de 5914 entre as duas forças traduziu-se em quatro deputados: cinco para o PPD/PSD, e só um para o PAN.

12. Como demonstrado, a metodologia eleitoral adotada em Portugal comporta um défice de representatividade na genuína aceção. Há pois que repensar o que significa a proporcionalidade parlamentar, ou de que percetível objetividade se pretende revestir. Coloca-se a questão de aferir se é equilibrado um sistema em que 81.054 escolhas refletem cinco vezes mais do que 75.140. Rectius, importa validar os casos em que, por um lado, 8734 cruzes nada riscam para a atribuição de mandatos e, por outro, 5914 pesam quatro deputados.

13. Numa perspetiva alternativa, constata-se que o PAN precisou de 75.140 votos para alcançar o seu único representante, enquanto ao PPD/PSD, exclusivamente com os votos na Madeira e nos Açores, bastaram 16.210 por mandato (parte inteira de 81.054 / 5). A coligação entre o PPD/PSD e o CDS/PP precisou de 19.548 votos por parlamentar escolhido. No plebiscito houve sete forças políticas que, não obstante terem registado mais do que 16.210 votos (e mesmo 19.548), não elegeram qualquer deputado – o espectro vai de 20.749 (PTP + MAS) até 61.632 (PDR).

14. O regime atual transporta desequilíbrios de diferente jaez: um primário e um secundário. O desequilíbrio primário ou de primeira ordem deve-se à violação da rigorosa proporcionalidade direta, pelo que, uma vez resolvido, automaticamente o secundário desaparece. Assim é porque o desequilíbrio primário só se dissipa com o abandono dos círculos eleitorais. Como tal, apenas encontra solução na implementação do princípio da representatividade alargada, cujo modus faciendi será alvo de desenvolvimento na segunda parte do presente post, inclusivamente para poder certificar-se que as imperfeições do modelo vigente são facilmente ultrapassáveis.

15. O desequilíbrio secundário ou de segunda ordem assenta na inconsistência que brota desse modelo vigente, em especial por não haver um critério uniforme aquando da determinação do número de deputados por círculo. O quadro seguinte, particularmente as quatro últimas colunas, confirmam a baderna democrática que os votantes portugueses têm de suportar, na qual reina a indefinição ou aleatoriedade de critérios. Desnuda por isso, ainda mais – para além da «pura ilusão» espelhada no ponto 5 –, o logro da relação de proximidade entre eleitores e eleitos.

Quadro 1
































16. O quadro evidencia a calva da ilógica ressoante do regime luso. Constata-se que o critério adotado para efeitos da distribuição dos deputados por círculos eleitorais repercute-se em concreto no hiato entre o número de deputados eleitos para a Assembleia da República e o correspondente número caso o critério fosse o total de votos válidos ou o total de cidadãos recenseados. Pelo que é possível inferir mediante o quadro, ter-se-á imposto um terceiro critério: o critério desconhecido.

17. Repita-se que o quadro 1 foca unicamente o desequilíbrio de segunda ordem que, como subentendido do parágrafo 14, não é o mais grave. Nesse parágrafo foi salientado que o desequilíbrio mais gritante, de primeira ordem, prende-se com a existência dos círculos eleitorais per se, pelo que, conforme se anunciou, será ultrapassado com a concretização do princípio da representatividade alargada.

18. Contudo – vide duas derradeiras colunas –, o facto de, para o círculo extraeuropeu, haver ou dois deputados a menos ou um a mais do que os eleitos considerando, pela mesma ordem, ou o critério do número de eleitores inscritos ou o do número de votantes, é por si só exemplificativo de que a lei em vigor é, no mínimo, assustadoramente duvidosa. Note-se que, em contraste com o caso atrás exposto, para os círculos de Lisboa e do Porto, contabilizar-se-iam menos dois deputados do que se esperaria em função do número de votantes e mais dois (em Lisboa) ou um (no Porto) se a referência fosse o número de recenseados.

19. Os desvios constantes das última e penúltima colunas do quadro foram obtidos por aplicação da metodologia usada para efeitos do princípio da representatividade alargada que, como também mencionado no ponto 14, será apresentado na segunda parte deste post. Tais desvios constituem a ponta do iceberg no tocante à violação da representatividade de facto, uma das regras básicas de funcionamento das democracias. A existência de sete distritos para os quais os desvios são simultaneamente nulos – em ambos os critérios, o dos votantes e o dos inscritos – em nada atenua os desequilíbrios intrínsecos à legislação vigente.

20. A propósito, retome-se o caso verificado no círculo de Portalegre. As terceira e quarta últimas colunas atestam que há uma massa de 25% dos eleitores votantes – e de 20% dos inscritos – que não são captados pela proporcionalidade subjacente ao modelo português. Porém, o quadro manifesta uma gama doutros desvios, brotados da adoção do critério desconhecido invocado no parágrafo 16.

21. Em abono da verdade cumpre ressalvar que o sistema atual não mede tudo pela mesma rasa; para a conversão dos votos em mandatos, ele baseia-se, e bem, numa distribuição proporcional – método de Hondt, em concreto. O pomo da discórdia não é o método aplicado mas sim a circunstância de, no nosso regime, esse ter como esteio os círculos eleitorais, que se revelam, mais do que anacrónicos, injustos ante a realidade do País.

22. Os partidos com assento parlamentar – não apenas os grandes – têm fugido das sugestões de alteração da lei eleitoral como o diabo da cruz, convencendo-se fingidamente que elas não passam duma vã babugem, sem relevo. A obstinação e a aversão à mudança são tais que as organizações políticas mostram-se incapazes de assumir que, (incluindo) sob o prisma do número de mandatos, em vários casos até sairão beneficiadas.

23. Segundo o artigo 149.º da Constituição da República Portuguesa, alusivo aos círculos eleitorais, «Os Deputados são eleitos por círculos eleitorais geograficamente definidos na lei, a qual pode determinar a existência de círculos plurinominais e uninominais, assim como a respectiva natureza e complementaridade, por forma a assegurar o sistema de representação proporcional e o método da média mais alta de Hondt na conversão dos votos em número de mandatos.» – n.º 1 desse artigo. O n.º 2 do mesmo artigo acrescenta que «O número de Deputados por cada círculo plurinominal do território nacional, exceptuando o círculo nacional, quando exista, é proporcional ao número de cidadãos eleitores nele inscritos.»

24. Ou seja, conclui-se que constitucionalmente não decorre qualquer impedimento de os desequilíbrios (primário e secundário) desaparecerem. Tudo passa por alterar a lei hierarquicamente inferior – aquela «lei» a que reporta o n.º 1 do artigo 149.º da Constituição –, unificando os 22 círculos num único: o círculo nacional. Conforme se justificará, é de toda a conveniência que este círculo integre a totalidade dos atuais círculos eleitorais fixados para os distritos do Continente, para as Regiões Autónomas e para as zonas forâneas onde se encontram os nossos compatriotas.

25. Logo, para quem defende o regime em vigor e preconiza que ele é equilibrado e justo, os casos específicos alusivos às recentes eleições provam que o equilíbrio e a justiça deslizam no fio da navalha, desdourando a democracia e acabando por dilapidar o respeito que o povo tem por ela. Os partidos, numa postura complacente e fleumática, e o eleitorado, numa atitude alienada e resignante, revelando que o poder e a chusma convivem em confrangedora osmose, assistem a episódios democraticamente hilariantes de todo o género, como se se respirasse normalidade.

26. No regime a que se vem assistindo, que tem o sumo patrocínio das duas maiores organizações políticas e a incompreensível conivência das forças de média dimensão, os pequenos partidos, sequazes figurantes, estão meramente fadados para o silêncio. Há portanto toda a vantagem em que a democracia se desince do modelo eleitoral vigente, reformulando-o e libertando-o das ineficiências que o danificam ou até envenenam. Tal modelo tem-se apoiado numa proporcionalidade diáfana e assaz insuficiente. A democracia não pode viver de aproximações nem de dogmas; tem de assentar plenamente numa desembaçada representatividade alargada.

27. Se nada for feito, o futuro da democracia será, por via da desistência do eleitorado, forçosamente o fenecimento da própria – não na forma mas na substância. Uma gente que habitou com o agonizante jugo do pensamento castrado durante quase meio século merece e tem de suspirar por uma política honesta – nem que seja no modo como são nomeados os indivíduos que devem ser os representantes da população. Querida democracia, quo vadis? A resposta está na humildade democrática.

terça-feira, 30 de junho de 2020

Ou abstenção crescente ou prospetos eleitorais simplificados (parte III/III)

Ou abstenção crescente ou prospetos eleitorais simplificados (parte III/III) (26/02/2015)



[Chegou-se então ao princípio.]


A. Estatutos para todos os gostos

1. Quantos estatutos proliferam em Portugal? Resposta difícil para uma pergunta estranha. São inúmeros os estatutos de índole corporativa – tais como os de associações, câmaras e ordens – ou de caráter profissional – incluindo os das várias forças de segurança. Os estatutos de natureza pública – se desta forma se podem qualificar – são bastante menos, porém demasiados: desde os estatutos do aluno e do trabalhador-estudante até ao estatuto da carreira docente; dos estatutos mais específicos como o do dador de sangue aos mais abrangentes como o dos funcionários públicos.

2. Dos estatutos constam deveres e direitos, entre muitas outras disposições – consoante o seu âmbito pessoal –, e como tal, se concebidos com ponderação, revestem um importante veículo de funcionamento das sociedades democráticas. Tanto assim é que a Constituição da República Portuguesa reflete a atenção que a palavra «estatuto» merece e encerra. Na lei-mãe está explicitamente prevista a existência de estatutos relativos a órgãos e instituições que são o esteio do nosso sistema republicano.

3. A Constituição prevê concretamente os estatutos dos juízes do Tribunal Constitucional, dos juízes dos tribunais judiciais, dos magistrados do Ministério Público e do próprio Ministério Público, bem como os estatutos dos titulares de cargos políticos, das regiões autónomas dos Açores e da Madeira, das autarquias locais, da Assembleia da República e do Presidente da República. Está igualmente presente uma miscelânea de referências a demais tipos de estatutos: das empresas públicas e das fundações públicas, das comissões de trabalhadores, dos membros do Conselho Económico e Social, dos membros da entidade de regulação da comunicação social e do refugiado político. Esta miscelânea levanta a questão de avaliar até que ponto ela não está visivelmente incompleta, porquanto há uma série de matérias que, pela mesma ordem de razão, também são detentoras de mérito para integrar a Constituição.

4. Falta o estatuto do eleitor. Obviamente é impraticável haver um estatuto aplicável ao universo dos votantes, pois apenas ficariam excluídos os portugueses com menos de 18 anos de idade. À parte este irónico acepipe, [re]entremos no âmago do desafio. A Constituição terá de fixar: o dever de os cidadãos participarem nos sufrágios universais – aspeto já aprofundado pelo FRES há três anos, aquando do elenco de propostas alusivas à alteração da lei eleitoral –; e, em contrapartida, o direito de lhes ser fornecida informação transparente sobre os Programas, capaz de as pessoas tomarem decisões esclarecidas.

B. Atuais programas eleitorais

5. Os Programas Completos são uma caixa de surpresas. Se os eleitores os esfolheassem, grassaria abstenção acrescida. Ainda que analisando-os superficialmente, infeririam que, entre os partidos do poder e os da oposição, existe convergência em termos de omissão de propostas e compromissos em domínios importantes para a Nação, enquanto noutras há convergência na (red)ação. Constata-se que, não obstante esta última convergência, as propostas e os compromissos não avançam – provavelmente devido à convergência. Em síntese: os adversários tanto se digladiam, para no fundo estarem tão irmãmente sintonizados.

6. Quem analisar minimamente os Programas, constata de imediato que são um mar de música gramatical desarmonizada. No mesmo Programa prevalece a diversidade acriteriada. Proliferam a esmo medidas estruturais mescladas com intenções de cariz setorial, sem se perceber qual a lógica. Nalguns Programas há assuntos – ora fundamentais para Portugal e portanto devem ser alvo de imprescindível discussão pública, ora objetivamente irrelevantes para a esmagadora maioria dos indivíduos e como tal dispensa-se que constem dos Programas – que são algo detalhados e noutros são tratados pela rama ou nem sequer são abordados. Para além disso, existem Programas que em determinadas áreas mais parecem uma declaração acusatória aos adversários do que uma saudável exposição de opções políticas.

7. Os Programas são um chamariz blasonado que no fundo pouco engana. Trata-se duma amálgama de ideias abrasivas que conduzem ao engodo, ao desinteresse e à abstenção, e que desmoralizam os cidadãos e trucidam a confiança no regime. Os exemplos confrangedores são inúmeros. Incontáveis anseios desgarrados e lapalissianos, esculpidos com o cuidado de eliminar quaisquer mensagens desagradáveis. As minuciosas patranhas camufladas – ardilosa especialidade abundantemente servida pelos partidos (claro que não durante as campanhas eleitorais) – desaparecem dos Programas, para dissipar o mínimo risco de impopularidade.

8. Não contesto que as associações políticas sejam livres de exibir-se junto do público com a informação e sob a forma que entenderem. Se eles quiserem aferrar-se a Programas pautados pela balbúrdia, desorganizados e infundados, pejados de banalidades ou ficções, que o façam. Nas sociedades de espírito aberto há espaço para todos, sem lugares reservados, desde que não falhe nem falte o respeito, e que o disparate respeite a sensatez.

9. O ponto central consiste em compatibilizar a liberdade partidária com o direito de os cidadãos serem corretamente elucidados para que possam exercer em consciência o dever cívico de votar. É por isso que, paralelamente aos clássicos Programas Completos, no fundo dirigidos sobretudo aos próprios partidos e aos seus fiéis opositores, terão de ser produzidos manifestos simplificados, dirigidos efetivamente ao povo, o alfa e o ómega da democracia.

10. Os Programas atuais são um caso típico de publicidade enganosa, que é fortemente reprimida com pesadas multas nos Estados que protegem os direitos dos consumidores de bens e serviços. Os eleitores são consumidores dum serviço específico: a política. Trata-se da analogia que urge adotar, para benefício dos partidos e acima de tudo da democracia. A analogia não obrigaria a que fossem instauradas coimas pesadas às associações partidárias que infringissem a lei; o castigo viria com a penalização infligida pelo eleitorado, mercê da perda de receitas decorrente do acréscimo da abstenção. Contudo tenha-se bem presente que, à luz da prática lusitana, os partidos têm vindo a sair algo incólumes dessa penalização porque compensam-na com (favoráveis em causa própria) alterações legislativas ao financiamento partidário por parte do Estado, como está patente no post «O povo, as saturninas parlamentares e a democracia desalinhada».

11. Antes de caminhar em direção aos PES, não pode deixar-se de aludir a duas mechas comuns aos Programas, à guisa de suspeita de conivência tácita traçada no seio dos partidos políticos. Estou ciente que em qualquer país democrático a realidade não difere excessivamente da nossa, motivo pelo qual reconheço que seria dispensável a crítica atinente à referida suspeita de conivência. Todavia, e porque os plebiscitos em Portugal não têm contribuído para a consolidação e a reputação democráticas, é crível que uma nova arquitetura de manifestos eleitorais contrarie a abstenção solidamente reinante.

12. Retomando a dupla de mechas comuns indicada no início do parágrafo anterior: não pode escamotear-se que, se houver que identificar uma perfeita convergência entre os vários Programas, essa consiste, por um lado, na completa ausência de avaliação ou estimativa de impacto das propostas apresentadas aos eleitores e, por outro, na ocultação dos efeitos conflituantes inerentes às mesmas. Mechas que são o par de informação essencial para a tomada de decisões dos eleitores que fitam o futuro.

13. De facto, sendo variadas as necessidades e escassos os recursos, impõe defender-se a legitimidade de os portugueses conhecerem os custos financeiros e as consequências colaterais negativas das opções anunciadas. Somente assim o eleitorado poderá aferir se tais custos e consequências encontram-se aquém da utilidade que as opções conferem à Nação. Não pugnar por tal legitimidade é brincar aos sufrágios, tão grave como se as contraindicações fossem intencionalmente ocultadas das bulas dos medicamentos.

14. Se os especialistas em análise política exteriorizassem o que entendem acerca da redação dos Programas revelados ao gentio, certamente divulgariam que chegaram à conclusão que o texto não passa de camufladas imagens caleidoscópicas fornecidas aos cidadãos, e que estes são tratados pouco acima de meros párias da democracia. O teor dos manifestos eleitorais não permite outra interpretação. Os mesmos especialistas, no estrito alinhamento com a isenção que deve ser seu apanágio, acrescentariam imediatamente que tem estado à altura a resposta, sem rebuço, dada pelo povo: a abstenção crescente.

C. Termos dos prospetos eleitorais simplificados

15. A Constituição estabeleceria a obrigatoriedade de, aquando das campanhas eleitorais, cada associação política disponibilizar um documento de formato estandardizado – o PES – que permitisse a fácil comparação dos respetivos compromissos assumidos. Definiria ainda os princípios de elaboração dos prospetos, e remeteria para diploma legal de hierarquia inferior os termos concretos referentes ao seu conteúdo. Ficaria constitucionalmente instituído que os PES seriam desenhados e supervisionados por um organismo estatal. Talvez essa responsabilidade pudesse ser delegada numa unidade orgânica sob a alçada do Tribunal Constitucional (à semelhança, com o devido distanciamento, da atual Entidade das Contas e Financiamentos Políticos).

16. A lei preveria um conjunto ordenado mas não exaustivo de assuntos, relativamente aos quais as associações políticas teriam de transmitir ao eleitorado as medidas que se propõem efetivar. Tanto para os assuntos previstos na lei como para os demais que os partidos pretenderiam incluir, seriam explicados sucintamente não só os fins específicos – ou seja, despidos de palavreado vago – das medidas mas outrossim a forma de os alcançar, identificando os aguardados efeitos conflituantes merecedores de destaque. Para além disso, deveriam ser proporcionadas estimativas dos impactos (aos níveis qualitativo e sobretudo quantitativo, no tocante às despesas e às receitas), sem descurar a explicitação dos pressupostos de cálculo e das hipóteses principais utilizados nas estimativas.

17. Não seria mais do que adotar a boa prática legislativa, conquanto frequentemente violada, e que consiste numa adequada análise de custo-benefício. No fundo o PES deveria responder a três questões simples mas essenciais para esclarecer qualquer (des)cuidadoso cidadão: porquê?, como? e quanto? Se os partidos não concebessem os PES segundo os princípios constitucionais e as adicionais regras legalmente definidas, seriam excluídos do ato eleitoral. Momento para rir até rebentar as ilhargas, tamanha é a utopia – responderemos todos nós com razão, leigos ou conhecedores dos meandros políticos.

18. Utopia seja porque a materialização desta ideia arrojada exigiria inevitavelmente um alargado consenso partidário – desde logo porque, como descrito, o consenso haveria que ser realizado em sede de revisão constitucional e portanto jamais contaria com o assentimento dos partidos –, seja porque, mesmo num improvável cenário em que eles anuíssem, tudo fariam para cumprir a lei e concorrer aos plebiscitos com um prospeto de qualidade miserável. Todavia não importava que o fizessem, pois seria um ótimo cenário; punha a nu a (in)competência e o (de)mérito que cada organização política depositava na transparência da informação, assim como no (des)respeito pelos indivíduos que os elegem. Frise-se que se a exclusão do processo eleitoral não se torna possível, a aplicação de coimas também não constitui uma alternativa, como decorre do parágrafo 10.

19. Porventura o PES será um procedimento inédito a nível mundial, o que se justificará pela dificuldade de execução. Porém a dificuldade não deve impedir que Portugal enverede por notável façanha estelante e mostre que quer assumir-se como um exemplo inabalável, de democracia e de cidadania, para todos os países. O PES traduzirá o pendão da transparência; revestirá a concretização dum pensamento democrático elevado – por oposição à confusão anárquica viciada que tem brotado dos Programas Completos.

20. Os dados objetivos e relevantes constantes dos PES trariam uma aura de esperança rejuvenescida a uma democracia que começa a grisalhar-se, e seriam uma estupenda ferramenta tanto para quem se preocupa com análises isentas como para os que se pautam por análises parciais. Tais análises – umas e outras – não se restringiriam ao benfazejo confronto dos PES. Incluiriam inovadoras comparações entre os manifestos pré-eleitorais, por um lado, e as posteriores opções tomadas pelos partidos vencedores durante a legislatura subsequente, por outro. Aferir-se-ia ainda em que medida os acordos tácitos celebrados com a chusma são implícita ou explicitamente dissolvidos após os plebiscitos, aferição que permitiria mensurar a massa de brio e de memória que o povo transporta.

21. Do que foi escrito nesta secção eventualmente ter-se-á ficado com a noção de que a revisão constitucional é uma condição sine qua non para a operacionalização dos PES. Nada disso. Sem prejuízo de, para atribuir maior notoriedade e segurança aos PES, convir que a Constituição seja alterada em conformidade, os partidos têm o direito e o dever de tomarem as iniciativas que reduzam drasticamente a taxa de abstenção. Exercício que pode iniciar-se agora, orientado para as próximas legislativas de setembro ou outubro do ano em curso.

22. Enquanto «cidadãos anónimos, desinteresseiros e interessados pelos problemas que afetam a Nação» – primeira frase do post «Pluralismo de borla» –, pactuaremos com os demais portugueses críticos para constatar até onde os partidos manifestarão abertura para trabalhar humildemente em prol da democracia. Todavia temos de assumir que a elaboração dos PES requererá muito empenho. Tudo o que incorpora valor exige esforço. Ilude-se quem crê que a democracia se alimenta com pouco trabalho; se for o caso, ela acabará por morrer sem encanto e inanida, e será substituída por um modelo incomparavelmente mais flébil e nublado do que o vigente.

23. Recordemo-nos que a Constituição de 1822 (saída da revolução liberal de 1820) era considerada bastante progressista para a altura, pelo que volvidos cerca de dois séculos a História poderá (e deverá) repetir-se. Foi a menina bela dos olhos humanistas de Manuel Fernandes Tomás, que «salvou a Pátria e morreu pobre» aos 51 anos (Almeida Garrett). Morreu por trabalhar árdua e gratuitamente na elaboração da Constituição e descurar a sua já de si fraca saúde; morte que o chamou quase dois meses após a ratificação do bem-fadado diploma. Prescinde-se de patriotismo equiparável para levantar os PES; basta vontade.

24. Porém revelo ceticismo. À partida a vontade de pôr em marcha os PES ficará na mesma tulha bolorenta onde está a falta de coragem para reestruturar as parcerias público-privadas – cujo pagamento usurário dos juros (i.e., juros cobrados acima do justo valor) tem sacrificado astronomicamente o erário público em várias centenas de milhares de euros por dia (repito: por dia) –, negócios gangrenosos que aniquilam os esforços dolorosos para a maioria da população resultantes das tentativas homéricas de controlo das finanças públicas.

25. Nessa tulha está também a sonolência para reformular o sistema eleitoral, continuando os cidadãos com a sensação de que os partidos funcionam como coutadas impenetráveis à prova dos genuínos anseios do povo, o elemento cândido e fútil do nosso regime. Já que a classe política permanece fleumática e ligada à máquina (partidária), cabe ao eleitorado decidir entre a armadura dos interesses minoritários e o progresso da democracia e do futuro da Nação que cremos ser de todos.

Ou abstenção crescente ou prospetos eleitorais simplificados (parte II/III)

Ou abstenção crescente ou prospetos eleitorais simplificados (parte II/III) (19/02/2015)



D. Programas eleitorais versus prospetos eleitorais simplificados

D.1. Âmbito da comparação

26. Nas próximas duas subsecções apresentam-se, em relação a cinco temas – a saber: corrupção, violação do segredo de justiça, revisão da lei eleitoral, governos civis e orçamento de base zero –, a informação e a propaganda extraídas dos Programas. À exceção do primeiro – a corrupção, um dos assuntos nucleares em qualquer sociedade –, os outros quatro foram escolhidos sem especial critério de seleção. Procedi ao exercício de recolha e tratamento de elementos unicamente para ilustrar que é impossível admitir que a generalidade dos portugueses consegue calcorrear os Programas e efetuar um trabalho semelhante para as dezenas de temas neles divulgados.

27. Para tanto repesquei os Programas Completos que as principais associações políticas mostraram aos cidadãos nas legislativas de 2011, especificamente – ordem decrescente dos resultados nas urnas – os do Partido Social Democrata (PSD), do Partido Socialista (PS), do Centro Democrático Social (CDS), do Partido Comunista Português (PCP) e do Bloco de Esquerda (BE). Os cinco partidos obtiveram 91,5% do total de votos exercidos (excluindo assim a abstenção, que atingiu uns assustadores 42%). Para o efeito assumiu-se que a votação no PCP correspondeu à depositada na coligação de comunistas e ecologistas, pelo que se pressupôs que as organizações políticas integrantes da mesma – o PCP e o Partido Ecologista “Os Verdes” – estavam perfeitamente alinhadas entre si.

28. Depois do exercício de recolha e tratamento mencionado na última frase do parágrafo 26, e para aferir a importância dos PES, na subsecção D.4 esboça-se [esboçou-se na primeira das três partes do post] o que poderia advir dos prospetos aplicados aos sobreditos cinco temas, construídos mediante os elementos fornecidos pelos partidos nos seus Programas. Reconheço que é um domínio arrojado e controverso, atentos os motivos [que serão] explicitados na secção C. Todavia uma controvérsia do género, que eleva a qualidade da cidadania, é preferível a matérias consensuais subtilmente impingidas, tais como a mistura inútil de (parca) informação com (abundante) propaganda, que denigrem a imagem da política.

29. A elaboração dos PES é um processo dinâmico e de aperfeiçoamento permanente. Basta colocá-los sobre os carris, que depois eles autotransportam-se em natural e salutar movimento democrático. Uma vez disponibilizados, os indivíduos só têm de selecionar e votar nos partidos que lhes oferecem maior segurança (ou menor desconfiança). Se os nossos agentes políticos não querem perceber isto, então a evolução dos erros sistemáticos, ainda que não redunde na queda da democracia, acabará por acarretar a quebra da mesma e o agravamento do fosso face ao patamar merecido e desejável pelos verdadeiros democratas.

D.2. A corrupção vista pelos partidos políticos

30. Sendo a corrupção um flagelo que mina o funcionamento das sociedades, impõe-se a questão de conhecer as medidas que os partidos políticos nacionais pretendiam adotar para atacá-la sem tréguas. O Programa Completo do PCP foi indiscutivelmente o mais determinado e cirúrgico em termos de corrupção. Corrupção na aceção que o povo compreende e avalia: o suborno – a pústula ligada ao favorecimento ilícito e ao enriquecimento injustificado, e por conseguinte uma das causas das democracias enfermiças e carcomidas. Depois duma mensagem abrangente, e por isso mesmo vazia de substância, de que o combate à corrupção e ao crime económico constituía um dos vetores centrais para almejar «o desenvolvimento económico e o pleno emprego, a redistribuição do rendimento e a justiça social, o aprofundamento da democracia e a afirmação da independência e soberania nacionais», o partido apresentou um conjunto de propostas muito específicas.

31. Para o PCP, «Um decidido e empenhado combate ao crime organizado e à corrupção exige, antes de tudo, uma real vontade política, mas, seguramente, mais prevenção e meios, efectivos e eficazes na investigação. Em matéria de investigação criminal, a sua eficácia na perseguição do crime organizado e da corrupção torna imperioso romper com as tentativas de controlo governamental da investigação criminal; respeitar escrupulosamente a autonomia do Ministério Público e dos seus magistrados na direcção funcional da investigação e dotar os órgãos de polícia criminal com os meios materiais e humanos indispensáveis ao cumprimento tempestivo das suas missões. É indispensável a revogação da lei que governamentaliza a definição das orientações e prioridades de política criminal, verdadeiro espartilho da actuação do Ministério Público e a revalorização da Polícia Judiciária, o preenchimento dos seus quadros e o reforço dos seus meios periciais.»

32. Acrescentou que «Importa igualmente (…) reforçar o regime legal do combate à corrupção e à criminalidade económica e financeira, designadamente através da criminalização do enriquecimento ilícito no exercício de cargos públicos, do agravamento do regime sancionatório das infracções de natureza económica e financeira e do combate sem equívocos aos off-shores e ao sigilo bancário.» Com o intuito de tentar cobrir o máximo de áreas relacionadas com o problema, terminou salientando que «Impõe-se a criação de um verdadeiro Programa Nacional de Prevenção e Combate à Criminalidade Económica e Financeira no sentido preconizado pela Convenção das Nações Unidas contra a corrupção.»

33. Notou-se portanto que para o PCP o combate à corrupção era uma bandeira de marca, apesar de – mero pormenor – transparecer que os comunistas se pautavam pelo enfoque no enriquecimento injustificado associado ao exercício de cargos públicos. Fica-se com a ideia de que não seriam reprováveis outras formas de enriquecimento ilícito (desligadas do exercício de cargos políticos), em especial gerado por via da fraude fiscal – a guerra à fraude fiscal foi aliás uma matéria que surpreendentemente não constava do Programa.

34. O BE foi o outro partido que, de maneira não loquaz e bastante direta, se atreveu a olhar de frente para a corrupção. Para si (e para o PCP) corrupção e favorecimento andavam a par. Depois duma referência (impraticável, atendendo às consequências para o País) de que «devem ser rompidos os contratos [militares] manchados por corrupção ou incumprimento de contrapartidas»[– alusão implícita aos submarinos –], entrou no cerne da questão. E entrou com a humildade de sublinhar que a ideia descende dum adversário socialista. Para os bloquistas, para efeitos do combate à corrupção devia recuperar-se «a proposta de lei de João Cravinho que criminaliza o enriquecimento ilícito».

35. Ademais, o BE «compromete-se com um quadro legal favorável à investigação dos crimes de colarinho branco com cruzamento sistemático de dados e o fim do segredo bancário.» Intenções concretas e bem direcionadas, sem hesitação. O partido focou-se na essência: o enriquecimento injustificado, independentemente da origem. Abordagem apurada. De facto, como tal enriquecimento é alimentado por vários afluentes – um dos quais o da corrupção –, se na foz do rio principal se apertar a malha, então a corrupção acabará mais cedo ou mais tarde por ser detetada e apanhada quando tentar desaguar no mar, mesmo que provenha de muito longe e esteja disfarçada há muito tempo.

36. Para o combate à corrupção, o CDS não era carne nem peixe. Com postura titubeante, o objetivo era tão vago como inócuas ou pelo menos indefinidas (embora não descabidas) eram as medidas traçadas. «O combate à corrupção passa por garantir os meios humanos e materiais que assegurem uma investigação criminal capaz.» Comunicou que para além do «reforço de meios o CDS proporá: o aperfeiçoamento da figura legal do crime urbanístico (…); uma maior transparência dos contratos públicos outorgados em nome do Estado (...), através da sua publicitação integral dos contratos e respectivos aditamentos no Portal da Transparência; [e] a proibição do exercício de funções de autarcas condenados na Justiça (…).» Até com tais recomendações light, o partido que passou a integrar (irrevogavelmente) a coligação governamental não lutou pela concretização das mesmas.

37. O PSD tinha uma visão distorcida – ou redutora, no mínimo – da corrupção, porquanto para si parecia não existir enriquecimento ilícito, o que é grave para uma organização política que aspirava a ser governo, como veio a acontecer, por exprimir nefandamente ou desconhecimento, ou alheamento, ou branqueamento da realidade. Os sociais-democratas misturavam indiferenciadamente a corrupção e a informalidade económica. No âmbito do reforço do combate à corrupção e da redução da economia informal, propunham-se desenvolver uma série de «eixos de acção», indicados no parágrafo seguinte. Como se pode observar, são eixos que, em suma, agregam uma mescla de medidas algo concretas com intenções assaz ocas.

38. O partido que em 2011 veio a ganhar nas urnas – se cumpriu, ignorou ou violou o que prometera, neste momento não releva para o caso – manifestou as propostas agora transcritas. «Racionalizar a regulamentação fiscal (…), em particular simplificando o regime fiscal aplicado às micro e pequenas empresas; Aperfeiçoar auditorias às empresas (...), alargando e integrando fontes de informação e automatizando procedimentos; Reforçar as sanções por não cumprimento de regras legais e regulamentares; Reforçar a capacidade do Estado para controlar a evasão fiscal e aumentar a celeridade da sua intervenção (…); Assegurar que as regras existentes não discriminam os agentes económicos, de modo a promover tanto a eficiência como a justiça nas relações económicas; Assegurar que o Estado (…) respeita e promove as regras transparentes e não discriminatórias de mercado (…)»; e, como derradeiro compromisso, «(…) reforçar a capacidade do Estado para fazer cumprir as regras estabelecidas, de forma a penalizar de forma substantiva e célere os agentes incumpridores (…).»

39. O PS conseguiu ser de longe o pior, encarando de soslaio o problema. O Programa previa esta hilariante passagem: «O combate à criminalidade económico-financeira e à corrupção permanecerá no centro das políticas. Por iniciativa do PS, Portugal dispõe, como vários outros países europeus, de um Conselho de Prevenção da Corrupção.» Para completar o vazio de sugestões, o partido adiantou que continuaria «a apoiar o trabalho deste Conselho», e que assumiria «o combate à corrupção na sua dupla vertente: a prevenção, designadamente na administração pública e nas empresas públicas, e a repressão, através do reforço dos meios que lhe seja necessário afectar.» Para além de esses processos de «prevenção» e «repressão» revelarem esclerose múltipla de (carência de) ideias, descobre-se nas entrelinhas uma clamorosa e agonizante falta de coragem para enfrentar a doença da corrupção.

40. Portanto, exclusivamente o PCP e o BE transpiravam probidade para debelar a chaga da corrupção. Mal da democracia em que tal ocorre. O mal não provém de serem os partidos da esquerda – ou mais à esquerda, para não melindrar suscetibilidades – que pretendem atacar efetivamente o suborno, mas antes de os restantes partidos, como que na sequência duma sombria socapa, não exporem a consciência firme de mudar o statu quo sem pestanejar. Não é de afastar a ideia de a inexistência desta consciência decorrer da circunstância de os três partidos afastados do combate à corrupção terem vindo, isoladamente ou a pares, a governar Portugal nas décadas recentes. Pura hipótese de cleptocracia que, se ainda não juridicamente homologada, pelo menos em termos empíricos jamais será refutada.

D.3. Algumas áreas de curiosa convergência partidária

Violação do segredo de justiça

41. Um dos fatores que tem contribuído para o descrédito ignóbil do sistema jurídico, e especialmente em matéria criminal, reside sem dúvida nas constantes fugas de informação devido à violação do segredo de justiça. Ante uma matéria tão nevrálgica para o funcionamento de qualquer regime judicial, três partidos – PS, CDS e BE – pautavam-se pelo silêncio atroz, i.e., a violação em causa não era minimamente digna de ser incluída nos respetivos Programas.


42. O PSD propunha encetar uma «Punição dissuasora, através de coimas proporcionais às ofensas, de quem viola o segredo de justiça, independentemente da forma como obteve a informação divulgada». De 2011 até ao momento não consta que tenha havido o mínimo de ímpeto para dar ares da sua graça. Provavelmente – e estranhamente – o problema residirá na extrema e inultrapassável dificuldade de definir as tais coimas proporcionais às ofensas.

43. Por seu turno, o PCP invocava só que era necessário «corrigir as opções tomadas pelo PS em matéria de segredo de justiça, que prejudicam seriamente a investigação dos crimes de maior complexidade». Ou seja, a sua proposta – a de «corrigir as opções tomadas pelo PS» – consiste em remeter para o contrário do que outro partido decidiu, como se isso fosse suficiente ou útil para esclarecer os eleitores. Proposta deveras ínfima para quem estava munido de ideias precisas contra a corrupção, como se explicou e fundamentou na subsecção anterior.

Revisão da lei eleitoral

44. O CDS e o BE nem sequer se pronunciaram. O PCP manifestou-se, sem hesitação, frontalmente «contra os projectos de revisão das leis eleitorais que, visando o favorecimento da bipolarização e da diminuição da pluralidade, designadamente os que se propõem reduzir ainda mais o grau de proporcionalidade do sistema eleitoral para a Assembleia da República, seja através da redução do número de deputados, seja através da criação de círculos uninominais ou da redução e manipulação da dimensão dos círculos existentes.»

45. Para o PCP, encurtar o número de deputados é sinónimo de solidificar a bipolarização, porventura por si entendida como uma forma de despotismo democrático. O partido ignorava que, na verdade, se o número de deputados for proporcional ao resultado da votação global – o que corresponde a acabar com os atuais círculos eleitorais e mudar para a regra da proporcionalidade –, garantir-se-á a plena pluralidade; 10% de votos a nível nacional traduzir-se-ão necessariamente em 10% dos deputados à Assembleia da República.

46. Ao invés, o PS reafirmou «a sua vontade de promover uma alteração das leis eleitorais para a Assembleia da República». Para os socialistas, «uma tal legislação exige um entendimento interpartidário» e, por eles, estavam – como sempre estiveram, conforme expresso no Programa Completo – disponíveis «para a construção de um consenso», desde que assegurado o «respeito pelos princípios» que julgam ser fulcrais. Não obstante, e como seria de esperar, o partido não apresentou ações específicas. Demagogia genuína, ao nível da perpetrada pelas demais organizações partidárias (não somente em relação à revisão da lei eleitoral).

47. Em contraste, os sociais-democratas revelaram alguns vetores de orientação. «No plano da reforma do sistema político, o PSD considera importante consagrar» duas medidas principais. «Em primeiro lugar, a reforma da lei eleitoral para a Assembleia da República.» Preconizava «a introdução de mecanismos de personalização das escolhas pela via do voto preferencial opcional, mecanismos esses que requerem a reconfiguração dos círculos eleitorais, de modo a combinar a existência de um círculo nacional com círculos locais menores, onde o eleitor tem um voto nominal escolhendo o seu candidato preferido, além da escolha do partido da sua preferência. A reforma manterá, essencialmente, o sistema de representação proporcional que vigora hoje, mas abre espaço à correcção de um dos aspectos em que o seu desempenho tem sido menos eficaz: a aproximação de eleitores e eleitos.»
48. Em segundo lugar, «A redução, para 181, do número de Deputados da Assembleia da República», o que permitia não só «Dar execução à revisão constitucional de 1997, a qual, ao fim de todos estes anos, continua por concretizar», assim como «Tornar o Parlamento mais operacional e eficaz.» Em suma: mais um aglomerado de balelas de amnésia sistemática. Que bem prega frei Tomás.

Governos civis e orçamento de base zero

49. Governos civis e orçamento de base zero são duas áreas onde se verificava uma invulgar e quase inédita convergência partidária do PSD, do CDS e do BE. O PS e o PCP nada referiram sobre as mesmas. Os três primeiros propunham (ou admitiam) extinguir os governos civis. No Programa do PSD fundamentava-se essa extinção por os governos civis serem «estruturas completamente anquilosadas, sem sentido e sem justificação.» Vazio de realização, como se antevia, atenta a urdidura entre os governos civis e os partidos do poder.

50. Para o CDS, «Num novo mapa politico‐administrativo, os Governos Civis podem ser extintos, devendo ser cuidadosamente redistribuídas as suas competências. Esta reforma deve fazer parte da revisão constitucional focada que o CDS defenderá.» (Mal dum país que necessita da revisão constitucional para proceder a uma singela alteração do mapa administrativo – e nada a acrescentar acerca duma organização política que tem tal perspetiva.) Por fim, o BE propunha-se eliminar os governos civis, «transferindo as suas funções para as autarquias e para o Estado».

51. Quanto ao tema do orçamento de base zero – medida constante também dos Programas do PSD, do CDS e do BE –, importa realçar que pouco após as legislativas de 2011 foi publicado o diploma que materializou a iniciativa. Tratou-se da Lei nº 52/2011, de 13 de outubro. O embrião desta Lei brotou dum projeto do BE, aprovado em Sessão Plenária de 29/10/2010. O projeto reuniu os votos favoráveis apenas do PSD – que então estava na oposição – e do Partido Ecologista “Os Verdes”, tendo havido a abstenção do CDS e do PCP e os votos contra do PS. Propositadamente não teço comentários ao resultado da votação.

52. Parece contudo que até à data a supramencionada Lei ainda não foi levada a sério. Percebe-se parcialmente que assim seja, pois tamanha «revolução orçamental» – expressão oportuna usada pelo BE no seu Programa – não pode dissociar-se das funções do Estado. Como o próprio BE escreveu, um orçamento desse género significa que «a estrutura da despesa deve reflectir as prioridades futuras do Estado, e não as tendências que vêm do passado», o que implica «um grande debate nacional sobre a reforma e as funções do Estado e o tipo de orçamento que o deve suportar.» O debate tarda em arrancar. Exemplo repetido de que o que é bom para Portugal costuma conservar-se nas calendas gregas e ser preterido pelas intrigas palacianas e saturninas parlamentares.

53. A propósito de tal debate sobre a reforma e as funções do Estado (e dos demais que são primaciais para a Nação), seria conveniente que a Constituição da República Portuguesa ousasse prever a obrigação de os partidos, aquando da apresentação dum pacote de propostas concretas, fundamentarem-nas sob o ponto de vista técnico e acompanharem-nas com a adequada sustentação financeira. A identificação das matérias em que seria imprescindível o suporte técnico-financeiro ficaria a cargo do mesmo organismo público a quem caberia a responsabilidade de regular e monitorizar os PES – vide parte final do parágrafo 15. Eis mais uma acha – para além dos PES – para o sonho da modernização da democracia, que poderá passar a realidade se o eleitorado for minimamente exigente, ou melhor, maduro e adepto da verdade.

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