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sábado, 4 de julho de 2020

Covid-19 em Portugal – A necessidade de um cenário otimista e a urgência de uma redistribuição realista

Covid-19 em Portugal – A necessidade de um cenário otimista e a urgência de uma redistribuição realista (03/05/2020)



A. O desafio dos próximos meses

Uma imagem vale mais do que mil palavras, mas por vezes acrescenta‑se valor à imagem se esta contiver algumas palavras. É o objetivo da imagem de cima. O título do gráfico será esclarecedor quanto à mensagem que lhe está subjacente.
No tocante à evolução da Covid‑19, pode defender‑se a ideia de que Portugal granjeará a tranquilidade vendo a pandemia controlada no seu território se, nos próximos três meses de condicionada e gradual normalidade, for registada uma diminuição diária de 6% no número de novos casos da doença e de 3% no de mortes a ela associada. Trata‑se de um cenário bastante otimista, pois pressupõe que os cidadãos consigam, num período equivalente a meia dúzia de estados de emergência – os tais três meses –, o que foi impossível durante metade desse período, tempo em que estiveram sujeitos ao triplo estado de emergência declarado pela Nação.
O otimismo advém outrossim da ambicionada taxa de diminuição do número de casos (de 6%). Desde que foi atingido o número máximo de casos diários (em meados do segundo estado de emergência) até ontem (o término do terceiro e último estado de emergência), registou‑se uma descida diária média de 4,8%. Quanto ao decréscimo do número de mortes após o pico – número registado escassos dias depois do número máximo de casos diários –, a taxa foi de 3%. Com base no histórico de registos oficiais, a maior correlação (de 0,93) entre a série de novos casos e a de mortes diárias ocorre com o desfasamento de seis dias, como é notório visualmente através do gráfico. (Informe‑se, em abono da verdade, que não foram usados os valores diários em si mesmos, mas a média dos valores do próprio dia e dos três dias anteriores, de forma a dissipar o atraso e outras imprecisões nos registos diários, e assim captar melhor o efeito da tendência das séries de dados.)
As barras realçadas com as cores vermelha, laranja e amarela referem‑se aos três estados de emergência. As barras seguintes representam a projeção de (a redução de) novos casos diários, efetuada sob a salutar esperança do otimismo controlado – porque depende do afinco cívico dos cidadãos –, e por isso apresentadas com a cor azul‑celeste. A segunda fase – após a dos repetidos estados de emergência – será decisiva, literalmente (ainda mais) de vida ou morte. Comparando a distribuição dos dados reais (observados até ao fim do triplo estado de emergência) com a distribuição total (que inclui os dados reais e os projetados até ao próximo 3 de agosto), constata‑se o muito que está por conquistar.
A distribuição dos dados reais é pouco assimétrica nos casos diários (‑0,14), e de facto assimetricamente negativa nas mortes diárias (‑0,94), evidência de que ainda não se chegou à fase em que se consegue definir o perfil clássico da evolução da pandemia, que tem uma nítida assimetria positiva, mais acentuada no número de ocorrência de novos casos. Se o cenário de redução diária – de 6% ou 3%, conforme as séries – for alcançado, então o coeficiente de assimetria inverter‑se‑á, de negativo para positivo (1,14 e 0,77, respetivamente para os casos e as mortes diários). Quanto ao achatamento – medido pela kurtosis (ou antes, pelo excesso de kurtosis face à distribuição normal) –, não se admitem alterações significativas de sinal daqui em diante (com os futuros casos e mortes diários), dada a circunstância de ambas as distribuições dos dados reais já terem conhecido o seu pico.
O prolongado período de emergência que durou um mês e meio teve duas fases que o gráfico confirma: um pouco mais de metade serviu para controlar o crescimento repentino e abrupto da doença pandémica; a parte sobrante conheceu o início do longo caminho da descida que que se pretende rápida mas que teimará em ser lenta, sobretudo no atual contexto em que esse caminho está formalmente desimpedido do estado de emergência. O Estado concedeu‑nos, por imposição pedagógica, que aprendêssemos com as situações de emergência; agora nós temos o único direito de dever aceitar as lições do sacrifício e responder, em nome de todos os portugueses, que saberemos, sem mais situações de emergência, contribuir para o bem da Nação.

B. Uma comparação entre Portugal e outros países

Analisado superficialmente o estado da pandemia em Portugal, convém identificar a posição em que o nosso País se encontra face a outros. O quadro seguinte exclui uma perspetiva e inclui outra. Com efeito, porque o mais relevante são as vidas que se perdem, o quadro ignora a abordagem dos novos casos diários da doença identificados, mas em contrapartida adiciona a taxa de letalidade (entendida como o rácio entre o número acumulado de mortes e o de casos identificados). Ademais, substitui a dimensão diária do número de mortes pela dimensão acumulada de mortes. De resto, para a frequência de mortes causadas pela doença apresentam‑se resultados semanais, para aferir o sentido do distanciamento de Portugal face a 23 de países, alguns deles incluídos no quadro por a dimensão da sua população ser próxima da nossa. Para a taxa de letalidade apenas aparece a informação reportada à do último dia do derradeiro estado de emergência, por ter em conta números agregados (de mortes e de casos, como foi mencionado neste parágrafo).





























Tomando o nosso País como referência – daí aparecer sempre o número 1 nas colunas da mortalidade acumulada –, os algarismos inferiores ou superiores à unidade indicam, em cada momento, os países melhores ou piores do que o nosso, respetivamente. Por exemplo, em 25 de março, o número de mortes (por cada cem mil habitantes) nos Estados Unidos da América era 76% do número correspondente registado em Portugal. Volvidas pouco mais de cinco semanas, em 2 de maio, o indicador ultrapassou o dobro.
Propositadamente não constam do quadro dois países muito atacados pela doença há mais tempo, por se admitir que a informação que disponibilizam às autoridades internacionais não é tão credível ou rigorosa como a existente na generalidade dos países: China e Irão. Basta ter presente que a China, o berço do vírus, anunciou em 17 de abril a morte de quase 1300 pessoas devido à doença, quando nos 52 dias anteriores a média diária de mortes anunciadas fora de somente 14 – e no 53.º dia precedente houvera o registo de 150 mortes. Para além da China e do Irão, e também pelo motivo de fraca credibilidade ou rigor da informação, foi excluído o Brasil, país que – a par de outros – ao início mostrou total displicência perante o aviso da pandemia.
O quadro evidencia alguns países onde a negligência parece ter sido abundante. Apesar de não pretender tecer comentários acerca dos dados no tocante à comparação entre a situação portuguesa e a dos outros Estados, gostaria de abrir uma exceção. Refere‑se à posição honrosa do País em matéria de taxa de letalidade, só possível graças à conjugação de dois fatores: a eficácia do Serviço Nacional de Saúde e a contenção da doença. É elementar munirmo‑nos da consciência de que quanto mais depressa os portugueses quiserem a todo o custo esquecer a tormenta e retomar, no que ainda for possível, a sua vida normal, mais difícil ou impossível será a contenção da pandemia, e mais provável será o Serviço Nacional de Saúde não conseguir lamentavelmente responder às necessidades (vitais) dos portugueses. Por conseguinte, a manutenção da letalidade em níveis baixos como aqueles que nos têm orgulhado depende do Serviço Nacional de Saúde mas, em primeira e última instância, da consciência dos cidadãos enquanto povo uno.
Sobre o quadro, há ainda duas observações a tecer. A primeira prende‑se com a comparação entre a evolução positiva verificada na Noruega, por oposição à evolução negativa vivida na sua vizinha Suécia. Em 18 de março, a mortalidade causada pela doença (corrigida pela população) verificada na Suécia situava‑se (somente) quase 40% acima da mortalidade norueguesa; em 2 de maio já havia disparado para 530%.
A segunda observação refere‑se à Coreia do Sul. A postura adotada para debelar a propagação da doença foi modelar. Por isso, e também para permitir uma mais fácil comparação com o caso lusitano, é apresentado de seguida um gráfico com a evolução dos dados reais (igualmente até 2 de maio) nesse país asiático.






Na Coreia do Sul constatou‑se, na semana imediata após ter sido atingido o número máximo de ocorrências da Covid‑19, uma descida vertiginosa do mesmo – tal explica o valor de 3,84 para o excesso de kurtosis. A partir dessa descida houve um período de relativa manutenção do número de casos, o que justifica o enviesamento claramente positivo da distribuição (2,16). Já quanto à distribuição do número de mortes, pode verificar‑se que praticamente não existe assimetria (0,04). Em pouco tempo a população conseguiu controlar a doença no seu espaço. Não haverá motivo nem para duvidar dos dados oficiais transmitidos pelas autoridades sul‑coreanas, nem para não seguir o seu exemplo, independentemente do que de positivo o nosso Portugal tem vindo a adotar.

C. Uma medida redistributiva realista

Para encerrar esta breve análise, e porque convém que o País seja prudente e admita (por mais apelos que se façam e por mais consciente que seja a população) que depois de terminada a primeira vaga pandémica – otimisticamente não antes dos próximos três meses – virá uma ou mais réplicas de semelhante magnitude, há que pensar nos efeitos passados e futuros. Terminada a série de estados de emergência, importa fazer um balanço. O que ficou? Ficou e ficará uma economia atordoada, uma sociedade fraturada e um Estado empobrecido (desde logo para procurar atenuar o tsunami do desemprego).
Não será portanto racional aguardar que o Estado acuda a todas as súplicas. Sem querer desenvolver muita a sugestão que apresento adiante, indico que, tal como sucede com as pessoas, é nas horas difíceis que se conhecem as democracias. O Estado não pode dar mais do que dispõe. Deve é fazer o que está ao seu alcance para garantir que aquilo que a Nação tem possa chegar a todos, de modo a manter a dignidade dos seus habitantes.
Um parêntesis: tenho publicado posts que incluem recomendações fraturantes, não obstante tentar sempre pautá‑las pelo indispensável equilíbrio entre a eficácia e a equidade. Recordo o documento que terá causado mais celeuma a quem teve a paciência de lê‑lo: «Zerar pararessuscitar e criar oportunidades sustentáveis»de 13 de dezembro de 2013, anunciado no blogue do FRES em 19 de janeiro de 2014. Continuo a defender as ideias anatemizadas inscritas nesse documento. Esta referência não serve para repescar o documento, mas tão‑só para salientar que cabe ao Estado estabelecer as medidas mais adequadas que promovam o equilíbrio social e o bem‑estar da população. Retome‑se então o assunto da redistribuição acima citado.
Nunca se falou tanto em layoff como agora. Atrás dele acentuar‑se‑á, sem surpresas, o desemprego e a desigualdade. Para atenuar os efeitos sociais perversos da crise que o Mundo atravessa, o Estado português pode e deve adotar, entre outras medidas, uma estritamente redistributiva, que nenhum impacto terá no erário público: criar um imposto extraordinário, ou melhor, uma sobretaxa progressiva de IRS, cujos sujeitos passivos são os cidadãos que têm a ventura de não ver os seus rendimentos sobremaneira afetados, sendo a receita destinada em exclusivo àqueles que não foram bafejados por igual fortuna e que, por não conhecerem tal fortuna, foram obrigados a passar graves privações causadas pelo corte de rendimentos.
Para pôr a medida em prática basta desenhar o molde e colocá‑lo na máquina tributária, que identificará quem tem a pagar e a receber. Revestindo a medida um caráter fiscal, o deve e o haver será calculado em 2021, com base nos rendimentos auferidos (e não auferidos) em 2020. É óbvio que o benefício fiscal – repita‑se: atribuído apenas a quem foi atingido pela redução violenta de rendimentos, mediante critérios proporcionais em função da receita que possa ser cobrada – tem de ser deduzido dos montantes que o Estado tenha atribuído, nomeadamente a título de subsídio de desemprego.
Trata‑se de uma medida fácil, ainda que possa haver obstáculos de natureza técnica não tão simples de ultrapassar, em especial a identificação dos limites a considerar, para uns, no processamento da sobretaxa progressiva de imposto e, para outros, no recebimento da respetiva receita cobrada. Porém, tão ou mais importante do que o montante em causa – urge estar ciente que esse montante será exíguo face ao necessário para permitir recuperar o nível de rendimento pré‑crise de um ingente contingente de cidadãos – é a intenção e o sinal dados pelo Estado. De facto, com a medida proposta, o Estado conseguirá aumentar a magnitude da coesão nacional, valor que carece de constante atualização, ao contrário da caridade, sentimento habitualmente de curta validade.
Os próximos meses ajuizarão se valeu a pena o sacrifício a que os portugueses estiveram sujeitos, traduzido nas trágicas consequências sociais que daí advieram. O Estado luso, que tudo tem levantado o que está ao seu alcance para tentar minimizar os efeitos nefastos desta crise na vida dos seus patrícios, jamais poderá abrandar os esforços enquanto não se avistar a luz que leva ao destino ansiado. É nesse sentido que a medida redistributiva descrita na exposição em apreço constitui, entre outras que as instâncias da Nação sabiamente encontrarão, uma mensagem pragmática de esperança que a maioria do povo por certo compreenderá e reconhecerá.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Muita Pátria e pouco Povo

Muita Pátria e pouco Povo (03/08/2015)


Pátria e povo

Portugal é um Estado detentor duma vincada unidade territorial e duma ancestral identidade cultural, características que lhe permitem constar da lista das nações europeias mais antigas. A História confirma o denodo lusitano, ou melhor, o ímpeto aceso duma população que jamais subalternizou o nobre valor da independência nacional, pagando com a própria vida o desejo de afirmação da sua soberania. Inúmeras são as demonstrações de osmose refulgente, fruto da verticalidade dos portugueses – de todas as classes sociais, saliente-se – na defesa incondicional da pátria-mãe.

Em qualquer país, a pátria e o povo constituem as duas partes da mesma moeda unimetálica. O anverso e o reverso do país são íntimos e cúmplices, comunicam entre si de forma permanente e invisível, ou não fossem feitos de igual matéria e espírito, enfim, de idêntica energia, como sucede com os lóbulos do mesmo cérebro ou os aurículos e os ventrículos do mesmo coração.

Porém por vezes assiste-se a situações em que a moeda é bimetálica. Bimetálica não por ser constituída por uma liga que contém mais do que um metal mas por a cara ser composta por um metal diferente da coroa, como se se tratasse de duas moedas autónomas mas justapostas. Este bimetalismo verifica-se atualmente em Portugal. Observa-se um desfasamento de mau sabor, mais amargo do que salgado, entre a Pátria e o Povo. Verifica-se uma disfunção orgânica: o Povo pensa com o coração e sente com a cabeça.

Já ou ainda

Há o sentimento de muita Pátria mas (já ou ainda) de pouco Povo. É totalmente diferente «já» não haver ou «ainda» não haver tal sentimento de Povo. Com efeito, em várias épocas «já» ocorreram importantes episódios reveladores de que a Pátria e o Povo se congraçam entre si. Sublevações populares e exaltações contra as classes poderosas são o epítome das lutas sociais, de resto algo frequentes desde a Idade Média. Ao invés, têm ocorrido tantos outros casos de movimentos de resposta protagonizados por grupos privilegiados. Recorde-se um destes casos.

Em era de transição para a Idade Moderna, Portugal assistiu a uma conjura deveras silenciosa – ao ponto de até nos dias de hoje não reunir o consenso dos historiadores –, que terá culminado no assassínio, por envenenamento, do rei D. João II, o Príncipe Perfeito. Perfeito para o exigente gentio. Perfeição quadrilátera: apoiante da populaça, vacilante com a burguesia, desconfiado perante o prelado e hostil à nobreza.

Conforme sucede com as marés, o domínio severo dos fortes leva à revolta engrossada dos mais fracos. Quando estes – que, por natureza e para salvaguarda do equilíbrio social, devem constituir uma minoria – e as massas perfilham ideias comuns, a rutura torna-se iminente ou evidente, como se se estivesse em presença dum acontecimento certo. A última rutura, conquanto tardia, patrocinada pelas massas que se quiseram desinçar definitivamente da pobreza material e da miséria espiritual da ditadura carcomida, e que está gravada na memória das pessoas que prezam com sinceridade a democracia, tem no seu epitáfio a inscrição singela «Abril».

Contudo a democracia – que etimologicamente significa o governo do povo – «ainda» não se impôs. Nesta remansada ocidentalidade ela não conseguiu vincar rugas no quotidiano dos cidadãos, que continuam a alimentar o seu sonho de viver em plenitude democrática. Há o sentimento de Pátria mas (já ou ainda) não o de Povo – muita Pátria e pouco Povo, repita-se. Por outras palavras: a democracia «já» está cristalizada na teoria mas «ainda» não na prática, tal o ânimo pusilânime que transporta. Atento o exposto, levanta-se a questão de conhecer o motivo pelo qual haja um constante sentimento de Pátria e tão-só um instantâneo sentimento de Povo, agora e outrora.

Liverdade

Liverdade é a chave para tal questão, palavra inimiga da perífrase, composta por dois dos mais belos valores existentes do léxico: liberdade e verdade, as genuínas divindades imaculadas e simultaneamente pagãs. Responder-se-á, com pertinência, que a (ausência de) liverdade explica a desarticulação atual – entre os sentimentos de Pátria e de Povo – mas não a desarticulação verificada no passado, pois nunca a liberdade e a verdade puderam ser tão assimiláveis como hoje.

Todavia cumpre reconhecer que facilmente a citada palavra composta é adaptável a qualquer época, se se fizer uma abordagem extensiva dos conceitos: a liberdade à coragem da razão e do pensamento, e a verdade à defesa do humanismo e da justiça. Noutra perspetiva, a liverdade pode ser vista como o resultado da concatenação da divisa «liberdade, igualdade, fraternidade» (apoderada e ressuscitada pela Revolução Francesa) com a verdade do aforismo «um por todos, todos por um».

Há muito que o criador Povo português, bastante do qual com pequena eira e frágil beira, deu prova evidente, com desapego a si mesmo, do apego imarcescível à Pátria. Falta a Pátria retribuir e inverter o ânimo derreado do Povo. Avancem as elites voluntárias do pensamento para destronar os dogmas. Aproveitem-se os homens e as mulheres ignotos para construir o elo duradouro entre a Pátria e o Povo, sem protagonismos nem antagonismos. Os feitos e os fracassos históricos devem estar sempre presentes, para servir de lição para Portugal e para a Humanidade. Mas não mais do que isso. É neste contexto que os portugueses, incluindo os vindouros, se devem movimentar. Eles prescindem de evocar o passado.

Em qualquer coordenada do sistema espaço-tempo a liverdade revela-se uma medida válida para aferir a coesão e a sintonia duma sociedade. Quanto maior a interiorização da liverdade, maior a ligação harmoniosa entre a Pátria e o Povo. O Povo será o que ele quiser ser, ou melhor, o que o Estado permitir que ele seja. Elevando o Povo ao nível que ele merece, impera reformular as ideias. Retenha-se a expressão «a voz do povo é a voz de Deus», usando Deus não na dimensão religiosa mas antes, conforme a perspetiva da análise, na óptica panteísta ou no âmbito metafísico.

Estado e cidadania

Os cidadãos, o alfa e o ómega das sociedades, familiarizam-se a conviver com a liverdade tão facilmente como uma criança aprende a andar de bicicleta. Basta que o Estado, adulto e com vontade de ensinar, esteja focado em orientar os cidadãos e criar-lhes motivação. Neste contexto tetradimensional de espaço-tempo que ultrapassa as dimensões laboratoriais pode associar-se a Pátria ao espaço e o Povo ao tempo, cabendo ao Estado o papel de lhes conferir o volume necessário. A quarta dimensão será a velocidade do pensamento benévolo.

Recorde-se o entendimento da Senhora Liverdade acerca da própria liverdade, apresentado na evidência n.º 39 – «Verdade e independência» – inscrita no post «Viagem da Liverdade a Portugal», publicado no passado 24 de abril. «Os povos são independentes se pensarem por sua iniciativa e os seus representantes políticos seguirem a verdade. As duas condições apenas acontecem quando os cidadãos tiverem a invulgar humildade de exigirem essa verdade e reconhecerem que só assim se atinge a justiça. Quem crê que é difícil alcançar a verdade está assaz equivocado. Alcança-se com dois ingredientes simples mas valiosos: pão e educação.»

Eis a gesta inacabada pelo Estado – agente responsável pela terceira dimensão, como está implícito na parte final do penúltimo parágrafo –: ser o estribo da cidadania e fomentar o pensamento livre e em verdade. Doutro modo: assegurar que o sentimento emocional de Pátria – que os portugueses, individualmente, transportam com garbo – flua com tranquilidade para o sentimento mais racional e coletivo alguma vez realizado, o sentimento completo de Povo. Para o efeito é fundamental que os soldados do pensamento útil para a Nação e demais próceres do pensamento grandioso organizem com orgulho e prazer o trabalho de transformar em realidade a cisma de unir a Pátria ao Povo.

Nesse areópago de conciliação nacional, por se tratar dum batalhão aberto a todos os voluntários, sem condição de acesso nem joia de inscrição, podem vir outrossim os comandantes do pensamento e demais pessoas eminentes, até as eminências pardas, desde que sejam titulares de intenções sãs e apresentem-se limpos de tiques rebuçosos. Refute-se a hipótese de que se está em presença duma união político-ideológica ou ético-moral – afaste-se qualquer nuvem ou ruído do género. Aqui chegados, o âmago será claro para qualquer cidadão inconformado mas necessariamente esclarecido, despido de protagonismos e de antagonismos – reforce-se a ideia.

Trata-se duma união cívica, acima de qualquer governo ou doutrina, em que o Estado liga a Pátria ao Povo, tal como os troncos ligam as raízes às copas das árvores. É uma união objetiva, presidida pelo respeito da missão que os portugueses merecem: a defesa, entusiástica mas pura, do interesse comum. Seria anacrónico e contraproducente suspeitar sequer que este interesse passa pela coletivização dos fatores de produção. Pelo contrário. O interesse comum é monolítico, pois enleia a iniciativa privada e a aspiração individual, por um lado, ao convívio coletivo e à força do grupo, por outro.

Epopeia do séc. XXI

À guisa de conclusão e de desafio: o excelso Povo tem sido sistematicamente generoso com a Pátria mas nem sempre consigo próprio. Para si próprio tem mostrado, com alguma frequência, ser individualista, dado que está por alcançar a obra de pensar como um todo indivisível. A epopeia dos Descobrimentos deu o mote ao que o Povo é capaz de fazer pela Nação. Antes e depois pululam façanhas que evidenciam, em geral, os sacrifícios dos portugueses e, em particular, a autoimolação à deusa das deusas: a imortal Pátria lusitana.

Para cumprir a parte final do desiderato da relação umbilical entre a Pátria e o Povo duas tarefas urge alcançar: a redução das desigualdades na repartição de rendimentos, ferida impulsionadora de desequilíbrios ou até perturbações sociais; e o saneamento da dependência externa em termos de dívida pública, chaga retardadora do crescimento económico e da criação de emprego.

Tais tarefas estruturais constituem dois dos maiores alicerces, quiçá também os mais altaneiros e estelantes, da reforma que o nosso País há tanto aguarda. Tendo presente que a sua concretização assenta desde logo na mentalidade dos cidadãos anónimos e na assertividade do Estado, percebe-se a grandeza do empreendedorismo nacional que falta adotar.

Uma nação é naturalmente tanto mais Pátria quanto mais Povo ela consegue ser. Lutemos para que persista um sentimento de muita Pátria e não menos de Povo. Para alcançar o duplo desígnio resplandecente da repartição de rendimentos e da dívida pública é crucial descobrir novas formas de mestiçagem de ideias, desta feita retrovertida para o aquém-mar, dentro de nós mesmos. Serão os descobrimentos do séc. XXI, as causas nobres lusitanas, em nome da lei e da grei, onde o heroísmo passa de intermitente a permanente. É possível e até fácil. Haja Portugueses: cidadãos livres, libertos e libertadores da corrente do torpor, que desejem a liverdade.

A pobreza e as políticas redistributivas buridanianas (parte III/III)

A pobreza e as políticas redistributivas buridanianas (parte III/III) (11/07/2015)



Análise mundial

18. Apesar de – como sublinha o ponto anterior – o valor do rendimento não ser despiciendo, urge ter presente que tão importante como o rendimento em si é a coesão nacional, a qual reflete o esforço alcançado pelas nações em conseguirem repartir de forma suficientemente digna e equilibrada os seus rendimentos. Recordem-se a este propósito os quinto a sétimo parágrafos do presente post. Assim, para aferir o grau de coesão, apresenta-se de seguida um conjunto de gráficos contendo a ordenação crescente das desigualdades em 161 Estados, captadas por excelência pelo índice de Gini.

Gráfico 4.1

Gráfico 4.2

19. A panóplia de questões que qualquer indivíduo retira do precedente quarteto de gráficos conflui inevitavelmente na constatação de que os pobres e demais gentio de jaez semelhante dispensam a preocupação que alguns políticos – com palavras despidas de franco suor, respeitante à redução das desigualdades – depositam sobre o assunto da pobreza. De resto, conquanto o gentio disponha de parcos conhecimentos para escrutinar soluções que permitam dissipar ou minimizar o problema das desigualdades, transporta adequada sabedoria para obtemperar que a dimensão destas depende pouco das democracias, ou do PIB per capita, ou da competitividade, ou da religião. Depende essencialmente da ardente vontade de quem dispõe do poder (nacional e racional) para optar.

20. Se as desigualdades devem ser combatidas antes ou depois dos impostos e das transferências, é matéria de importância irrelevante. Importa acima de tudo que se decida. É o que o povo, o magister eleitor, ativo ou passivo, deve exigir, para honrar a genuína verdade. Quem cogita, desrespeitando o eterno valor do tempo, terá o destino transido do asno de Buridan, para angústia ressonante dos sobreviventes.
21. No penúltimo parágrafo mencionou-se a relação entre o índice de Gini e variáveis de natureza tão díspar, que vão desde o PIB per capita ao estádio democrático, ou do tipo de religião ao grau de competitividade. Seguidamente, e a título de exemplo, analisa-se a articulação entre o índice de Gini e duas das variáveis aludidas, a saber: a democracia e a competitividade. As duas tabelas de contingência seguintes – quadros 1 e 2 – não refletem o universo dos 161 territórios constantes dos gráficos 4.1 e 4.2, por falta de informação.
Quadro 1

Quadro 2

22. Realizando o teste de chi-quadrado, rejeita-se a hipótese de haver repartição minimamente uniforme entre as nove células de cada um dos quadros de cima, ou melhor, a hipótese de existir independência entre os pares de variáveis analisados. Para cada um dos casos, o resultado da estatística obtido com base nos dados reais – 30,36 no primeiro caso, e 15,57 no segundo – pertence claramente à região crítica – região iniciada em 9,49, referência associada ao valor teórico tabelado da distribuição de chi-quadrado, com 4 graus de liberdade, (3 - 1) x (3 - 1), e um nível de significância de 5%.
23. Todavia, o facto de não se anuir à hipótese que foi ensaiada – e que conduz a não rejeitar uma possível interação das variáveis – não corresponde a admitir uma correlação relevante entre elas. Adiante-se aliás que os coeficientes de correlação entre os índices de Gini e de desenvolvimento democrático, e entre os índices de Gini e de competitividade, são, por essa ordem, -0,26 e -0,31, portanto negativos mas estatística e economicamente não relevantes. Considerando somente os Estados-membros da OCDE, os mesmos coeficientes passam para -0,53 – correlação negativa (entre a distribuição do rendimento e o aprofundamento democrático) já não insignificante – e -0,2.
24. Apesar de, como comprova o teste de chi-quadrado, não se verificar uma distribuição equilibrada entre as células, tem de se admitir a hipótese paramétrica de, entre os primeiro e segundo tercis – níveis baixo e intermédio – tanto do índice de desenvolvimento democrático como do índice de competitividade, a média dos índices de Gini ser igual, como se demonstra através da informação inscrita nos quadros 3 e 4. Os valores da estatística são -0,779 e 0,871, por conseguinte dentro do intervalo [-1,96; 1,96] referente à zona de não rejeição (associado ao intervalo de confiança bicaudal de 95%).
Quadro 3

Quadro 4

25. Os elevados valores da estatística para as outras igualdades testadas, claramente pertencentes à zona crítica referente a qualquer nível de significância aceitável, não deixam qualquer dúvida sobre a não aceitação da hipótese paramétrica citada no ponto anterior. Note-se que, atendendo às imateriais diferenças entre os desvios-padrão, as médias de 0,348 e 0,341 são nitidamente – para a escala em apreço – inferiores a 0,391 e 0,404, por um lado, e a 0,409 e 0,394, por outro. Existe portanto validade para defender que, a nível mundial, quanto maiores o aprofundamento democrático das sociedades e a dinâmica competitiva das suas economias, menor a tendência de discrepância na distribuição dos rendimentos gerados – sinal negativo dos coeficientes de correlação explicitados no parágrafo 23.
26. Se, ao invés de a informação apresentar-se desagregada em tercis, a mesma fosse dividida em quintis, por exemplo – a passagem de três para cinco níveis captaria melhor as diferenças de perfis –, mantinham-se as conclusões de (des)igualdade das médias dos índices de Gini. Foi segmentada em tercis para permitir que em cada célula houvesse pelo menos uma frequência absoluta de cinco elementos, de modo a permitir o uso robusto do teste de chi-quadrado, e para garantir a validade da utilização do teorema do limite central, que requer a existência de pelo menos 30 registos em cada um dos conjuntos – 50, para o índice de desenvolvimento democrático, e 44 e 43, para o índice de competitividade.
27. A análise efetuada redunda na constatação de que constitui uma opção do Estado definir o nível de repartição desejado, seja antes ou depois da aplicação da política redistributiva. Com o ensejo de apaniguar os mais ousados, e sob a ilusão de não afugentar a competitividade, tem-se tolerado que muitos governos ainda prefiram corrigir – repita-se o ponto 3: quando pretendem de facto corrigir – a desigualdade sobretudo a jusante, por via dos impostos e das transferências. Mero placebo político usado a esmo até porque, como se realçou, a competitividade não depende da desigualdade na distribuição do rendimento.
28. Mal dos países que amargam à força a populaça, sacrificando as profícuas sustentabilidade e coesão nacionais a efémeros objetivos económicos. Afagam a úbere razão, gladiando a competitividade com a desigualdade e esvaecendo o ânimo que conduz à tão-amada e insigne liverdade. Para quem tem medo da morte, qualquer asno minimamente astuto, e até racional, preferirá morrer carente da palha da competitividade; jamais por falta da água da distribuição do rendimento.
29. Sem querer transportar o tema para outra realidade, é aceitável relembrar que «(…) nem só de pão vive o homem mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.» Descendo do espaço divino para o campo terreno, mantém-se a validade desta passagem do Deuteronómio. Enfim: há valores cintilantes inscritos na alma, mais reais do que as necessidades declaradas pelo corpo tridimensional.

A pobreza e as políticas redistributivas buridanianas (parte II/III)

A pobreza e as políticas redistributivas buridanianas (parte II/III) (09/07/2015)




Espaço da OCDE

8. Portugal é a terceira nação da OCDE que, antes da intervenção das entidades públicas em matéria redistributiva, mais desigualdades gera. Só a Irlanda e a Grécia o ultrapassam, como mostra o gráfico seguinte. Admite-se que não seja o terceiro mas sim o quarto pior atendendo a que, apesar de não haver dados sobre o efeito da política redistributiva no México, este país centro-americano é, no conjunto dos 34 Estados-membros da OCDE, o segundo com maior achaque em termos da distribuição do rendimento disponível. Porém, cotejando o índice de Gini com a taxa de pobreza, é provável que, antes de impostos e transferências, a distribuição do rendimento em Portugal seja pior do que a vigente no México, face ao resultado demasiado diminuto da política redistributiva mexicana na redução da taxa de pobreza – vide gráfico 3, no parágrafo 15.

Gráfico 1



























9. Realce-se o caso da Coreia do Sul, onde o índice de Gini antes de impostos e transferências é de apenas 0,338, de longe o mais baixo de todos – 0,537 em Portugal. A segunda posição é preenchida pela Suíça, com 0,368. O índice varia entre 0 e 1, extremos utópicos em que há perfeita repartição do rendimento nacional entre os concidadãos e existe total concentração desse rendimento num único indivíduo.

10. Do gráfico 1 consta outrossim o impacto dos impostos e das transferências na redução da desigualdade do rendimento. Ainda que partindo dum nível de desigualdade (antes da aplicação da política redistributiva) superior ao português, a Irlanda, e mesmo a Grécia, conseguem registar níveis de desigualdade finais – após as correções dos impostos e das transferências – inferiores ao lusitano. As políticas irlandesa, finlandesa e grega revelam-se as mais eficientes (entre os 32 países com informação disponível). Neste domínio, Portugal ocupa o 11.º lugar. Os dois piores lugares estão reservados à Coreia do Sul e ao Chile, que no entanto representam posições assaz diferentes.

11. Confirma-se assim que a distribuição do rendimento é um reduto da vontade política em duplo sentido: ex ante e ex post. Ou seja: vontade para os países estabelecerem o nível de desigualdade antes das correções – o nível que cada país entende como aceitável a antropófaga máquina socioeconómica criar –; e a vontade para definirem a política redistributiva que deve posteriormente corrigir as desigualdades de mercado – decorrentes do funcionamento intrínseco da sobredita máquina. Vontades compossíveis, sublinhe-se.

12. Entre a Irlanda e a Coreia do Sul – países que, apesar de antípodas no tocante ao efeito redistributivo da diminuição das desigualdades, no fim verifica-se uma diferença de somenos em termos do índice de Gini – torna-se claro que, para as pessoas que exigem ver satisfeitas as suas aspirações honrosas e inalienáveis de utilidade e valor acrescentado para a sociedade, a situação sul-coreana é inquestionavelmente preferível à irlandesa. Pugnar pelo humanismo obriga a que tantos nobres cidadãos rejeitem andar à toa de ajudas caridosas e de subsídios estatais; que queiram prescindir de tais auxílios para viverem com o mínimo de dignidade e, ao invés, reivindiquem o alfa mais alfa de todos: condições semelhantes às de que beneficia a venturosa maioria da população.

13. Pese embora o índice de Gini seja o indicador mais objetivo e equiparável que existe, pois avalia em que medida os rendimentos das nações estão melhor ou pior distribuídos entre os seus habitantes – razão por que será o indicador utilizado na terceira secção –, não é muito apreensível. Assim, altere-se por agora a referência, passando a bitola do índice de Gini para a da taxa de pobreza. Esta taxa representa a porção de pessoas que, em cada país, dispõe dum rendimento abaixo de 60% da mediana do rendimento disponível nacional.

14. O gráfico abaixo ilustra a forte (e esperada) correlação positiva entre o índice de Gini e a taxa de pobreza (ρ = 0,862), ambos após impostos e transferências, para o universo dos 34 países da OCDE. O coeficiente de correlação é sensivelmente o mesmo se se considerar que a linha de pobreza corresponde a 50% da mediana do rendimento dos cidadãos, e não a 60% desta; passa de 0,862 para 0,864.

Gráfico 2

15. Atendendo à relação entre o índice de Gini e a taxa de pobreza, é normal que uma análise similar à apresentada no gráfico 1 contudo aplicada à taxa de pobreza evidencie resultados parecidos. Conforme demonstra o gráfico 3, a Irlanda é o país com maior taxa de pobreza antes de impostos e transferências (45%), e o primeiro em termos do impacto da política redistributiva na redução da pobreza.

Gráfico 3

























16. Ao invés, a inefável Suíça, nada desapegada dos seus interesses neutrais e das suas visões previdentes, para além de incontestável líder internacional da competitividade reconhecido pelo Fórum Económico Mundial, é o país com menor taxa de pobreza antes das correções dos impostos e das transferências, e por isso o ténue efeito da sua política redistributiva permite-lhe atingir uma taxa de pobreza próxima da irlandesa (16%). O segundo mais baixo nível de pobreza (antes dessas correções) cabe à Coreia do Sul. Portugal situa-se a meio da tabela, com uma taxa de pobreza, após as medidas promovidas pelo Estado, de 18% (para a população total) – 17% para a população ativa e 19% para a reformada. Sem os impostos e as transferências, Portugal seria o quinto pior (entre os 33 Estados-membros com informação disponível).

17. Porém, se é um facto que a política redistributiva depende da vontade investida por cada país acerca do que deseja ser a referência nacional em relação à distribuição e à pobreza – vide gráficos 1 e 3 –, não deixa de ser verdade que algumas comparações podem tornar-se equívocas. Por exemplo, não obstante a taxa de pobreza eslovaca ser bastante semelhante à luxemburguesa ou à irlandesa, não deve negligenciar-se que o PIB per capita (corrigido pela paridade do poder de compra) eslovaco é cerca de 3/10 do luxemburguês e menos de 6/10 do irlandês. Por outras palavras: porque a taxa de pobreza é medida em função da mediana do rendimento, muitos dos irlandeses e dos luxemburgueses qualificados de pobres nos seus países dispõem de rendimentos que na Eslováquia lhes permitiriam, respetivamente, estar bem acima do limiar da pobreza e mesmo fruir duma boa qualidade de vida.

A pobreza e as políticas redistributivas buridanianas (parte I/III)

A pobreza e as políticas redistributivas buridanianas (parte I/III) (07/07/2015)



Entrada

1. Há valores cintilantes inscritos na alma, mais reais do que as necessidades declaradas pelo corpo tridimensional. Nem só de pão vive o Homem; nem só de competitividade vivem as sociedades; e nem só de palha vivem os asnos. O título do post associa políticas redistributivas com a alegoria do asno de Buridan, alegoria que porventura se baseou num paradoxo ancestral apresentado por Aristóteles. O animal, de tão cioso pelo rigor das decisões que tomava, acabou vítima dum dilema que se revelou fatal.

2. Encontrando-se igualmente esfomeado e sedento, não conseguia discernir ante a pergunta que se lhe impôs, de saber se deveria dirigir-se primeiro ao fardo de palha ou ao balde de água, indecisão que o levou à morte, inanido e desidratado. De acordo com o paradoxo aristotélico, uma pessoa escrupulosamente racional que tenha tanta fome quanta sede, por um lado, e que esteja num ponto intermédio e equidistante da comida e da água, por outro, fica amorfo de pensamentos e tolhido de movimentos.

3. Idêntica hesitação parece colocar-se a uma variedade de Estados, sem perícia para agir prontamente no que toca às medidas de combate à pobreza – admitindo o cenário de que confessam ânimo para investigar e debelar a desigualdade na distribuição iníqua do rendimento. Relativamente à eficácia do arbítrio estatal para definir a adequada dimensão da distribuição entre os cidadãos, há de tudo pelo Mundo fora.

4. Ademais, não existe evidência estatística que a distribuição do rendimento nacional se enleia forçosamente aos regimes ideológicos, ou aos sistemas religiosos, e nem sequer aos modelos de funcionamento económico. Em cada um desses regimes, sistemas e modelos abundam bons e maus exemplos, refutando-se portanto qualquer teoria referente à eventual osmose entre a pobreza ou concentração e o crescimento ou desenvolvimento.

5. Os níveis de pobreza e de desigualdade na distribuição do rendimento, antes ou após a aplicação de impostos e transferências, estão densamente nublados de opções políticas que estropiam a justiça social. Tais níveis não seguem a feromona do valor do rendimento. Não é por haver mais ou menos rendimento que se consegue distribuir melhor ou pior. Para não subsistirem dúvidas sobre este aspeto, atenda-se ao caso infra, provando que cada Estado tem literalmente a liberdade de fixar o nível distributivo que pretende para os seus cidadãos, faculdade que em sociedades democráticas se traduz no exercício de os eleitores poderem escolher a clivagem tolerada.

6. Numa sociedade com 1000 nativos que reparte igualitariamente os escassos 100 pães que tem disponíveis, cada íncola queda-se com uma décima de pão. Apesar de contabilizar pobreza, essa sociedade vive para além do pão. É coesa, o que não sucede com uma outra bem mais rica, acerba e funesta, com 1000 pães, que também tem 1000 habitantes, mas que reparte os seus pães de forma completamente diferente: 90 para 900 indígenas e 910 para somente 100 afortunados (talvez mais de pão do que de valores).
7. A única e gigantesca diferença que exala dessas duas sociedades reside no facto de na primeira todas as 1000 pessoas comerem uma décima de pão, ao passo que na segunda a mesma ração – uma décima por cabeça – atingir 90% da população. Aos remanescentes e predestinados 10% é concedida a negra complacência de se empanturrarem com a ucharia de 9,1 pães para cada augusta alma, i.e., 91 vezes mais do que cabe a cada ser da chusma.

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