Mostrar mensagens com a etiqueta Fado. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Fado. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Teresa Silva Carvalho, Manuela de Freitas e «Balada para Um Súbdito»


Teresa Silva Carvalho

Fadista e cançonetista, compositora, mensageira de causas justas, assim pode ser resumidamente descrita Teresa Silva Carvalho no domínio artístico. Para o seu repertório de meia centena de fados e canções gravados em disco – excluindo as regravações –, Teresa Silva Carvalho foi bastante seletiva na escolha dos poetas em cujas palavras pretendeu colocar, através da voz e da música, o seu espírito criativo e o seu sentimento cívico.

Escolheu uma qualidade poética superior, e pontualmente chamou a si temas populares. Para além disso quis diversificar, interpretando um poema de cada autor, conquanto tenha repetido alguns deles. Cantou duas vezes Florbela Espanca e Mário de Sá-Carneiro, e três vezes Fernando Pessoa. E cantou cinco temas diferentes da autoria do seu amigo José Afonso (em 1977) – portanto, não contando com a gravação, outrossim em 1977, do tema «Verdes São Os Campos», também uma criação de José Afonso (com letra de Luís de Camões e música do próprio de José Afonso) – e da sua amiga Manuela de Freitas (em 1969 – 3 vezes –, 1971 e 1976).

Manuela de Freitas

Para o público, Manuela de Freitas é mais conhecida pela vida de atriz dedicada ao teatro do que pelo papel de letrista de fados e canções maravilhosos. Em 1972 foi co‑fundadora do teatro «A Comuna - Teatro de Pesquisa». Depois do 25 de Abril, trabalhou nesse teatro com José Mário Branco, após o regresso deste do exílio, o seu companheiro a partir de 1979 e a quem ensinou a gostar do bom fado. Antes de tudo isso já o fado se havia entranhado no corpo e na alma da atriz, fado que tornou não somente a sua representação ainda mais enfática, como também a sua escrita ainda mais singular.

Conforme consta do texto redigido por Manuela de Freitas intitulado «Ofícios Inquietos» – incluído no livro «O Fado e o Teatro» (2013), co‑produzido pelo Museu do Fado e pelo Museu Nacional do Teatro (Museu Nacional do Teatro e da Dança desde janeiro de 2015) –, «Como o actor se torna autor do texto que representa, o fadista torna‑se autor do fado que canta.» As palavras de um fado ou de uma canção estão para o texto de uma peça, assim como a música do fado ou da canção cantado pelo artista está para a encenação representada pelo ator.

«Balada para Um Súbdito»

Com o aprumo artístico que a caracteriza, Teresa Silva Carvalho representou em apenas cerca de dois minutos e um quarto a peça musical «Balada para Um Súbdito», um poema escrito por Manuela de Freitas sob a forma de redondilha menor, composto por cinco quadras de incisiva crítica social, musicado pela própria artista, e integrado no seu quarto EP, editado em 1971 pela discográfica Movieplay. Depois de três EP – um em 1967 e dois em 1969 –, todos contendo fados tradicionais (com exceção do fado musicado composto por Teresa Silva Carvalho para o soneto «Amar» de Florbela Espanca), o citado EP de 1971 não dispôs de qualquer fado; das quatro faixas, três foram musicadas por Teresa Silva Carvalho, entre elas a «Balada para Um Súbdito».

A riqueza e a versatilidade do poema são tais que é possível sintetizá-lo plenamente recorrendo aos dois primeiros versos da primeira quadra e aos dois últimos da derradeira quadra: «Para ter umas luvas / As mãos amputei / Só a morte é minha / Que a vida é do rei»

É difícil acreditar que essa canção social e politicamente tão acutilante não haja sido censurada. Porventura a censura entendeu que Manuela de Freitas, por ser tão direta na imagem colocada nas suas palavras simples e transparentes, tenha escolhido como alvo a monarquia, e não o poder ditatorial (que viria a estatelar-se cerca de três anos mais tarde, em 1974). Tratar-se-á de uma hipótese não confirmada, mas certamente bastante lógica e plausível, por estar alinhada com a estratégia de contracensura só ao alcance de poucos poetas e interiorizada por um punhado de artistas.

terça-feira, 1 de março de 2022

António Mello Corrêa… with «the Saudade name»




António Mello Corrêa… with «the Saudade name»

 

 

António Vasco Ahrens Teixeira de Mello Corrêa, better known as António Mello Corrêa in the fado world, was born on May 25, 1944, in the dissolved parish of Santos‑o‑Velho in Lisbon. Using his distinct flair, he recorded 38 different tunes. He died in the same parish on All Saints’ Day in 1982. He was 38 years old, and it had been missing for 38 years.

 

 

From the fado gatherings until the departure for Africa

 

His interest and vocation in fado began at a young age, which could be attributed to the fact that his mother, Paulina Pombo Teixeira (Paneca, as she was known in the neighbourhood), was a skilled fado singer. «From a Young Age, I Was a Fado Singer», a poem written by his friend Mimela Cid (Maria Manuel Cid), expresses such interest and vocation in fado: «Fado has not lost me / Nor have I found it / Because it was not my merit / But rather a gift from God / And I never sought him out». In a nutshell, the last verse of the fado lyrics declares that «I was born to be a fado singer».

Because he was enthusiastic about fado, a terrific conversationalist, a fantastic listener, a pleasant mood, and a kind guy, he mostly hung out at gatherings with others who shared the same interests, where mutual appreciation and kindness bloomed. His first fado experiences occurred while he was in his teens and met fado singers from the same Madragoa neighbourhood.

At a time when his voice’s versatility was not well recognized, Carlos Pinto da Rocha (Portuguese guitar) and José Carlos da Maia (fado viola) were the first amateur musicians to join him at fado gatherings. Luís Barros, who could play the fado viola as well as the Portuguese guitar, was the first to record António Mello Corrêa’s tones. The fado singer is joined by amateur musicians Luís Barros on fado viola and João Azevedo Neves on Portuguese guitar in the photo on page 27 (1965).

In 1965, fado gatherings spread to Ribatejo. Meetings in Golegã became more regular, and they were held in the home of the maternal grandparents of a neighbour and childhood friend Eduardo Vantacich (Chipá). Some people would congregate there to have a delicious fado marialva [whose lyrics describe horses and fighting bulls]. João Torre do Valle (Zina)—acoustic Portuguese guitar player—, José Carlos da Maia—fado viola player—, and José Pracana—who was still learning to play the Portuguese guitar at the time, receiving his first lessons from Carlos Pinto da Rocha—were routinely transported by the same friend’s car.

The Golegã gatherings were widely attended, and word quickly spread among the region’s fans, who began hosting fado gatherings in nearby Chamusca, adhering to the proverb «my friend’s friend is my friend». The first hostess was the poetess Maria Manuel Cid, who gathered a large group of fado acquaintances in her house’s «barn»—a moderately sized warehouse (where groceries and agricultural items were stored) that, after cleaning, sorting, and blanketing, was ready to hold a fado gathering. In addition to António Mello Corrêa, Zina, José Carlos da Maia, and José Pracana, the group included Maria Teresa Cavazzini (the hostess’ sister), Teresa Tarouca, Manuel Andrade, Carlos Guedes de Amorim, João Ferreira‑Rosa, Fontes Rocha, and others.

Following that, fado gatherings were held at Herdade Isidro dos Reis’ «barn» on several occasions. Mercês da Cunha Rego, Teresa Silva Carvalho, Carlos Zel, and Joaquim do Vale (Covinhas) were regular guests. Fado sessions were organized in the same venue to raise money for charity organizations.

António Mello Corrêa was always prepared to offer his fado to good causes, most notably to aid firefighters’ associations. He was asked to sing by the firefighters of Golegã and Chamusca on several occasions.

He has realized that, given his loyal companions since boyhood, he should act on his hunch and start singing in public, but without his parents’ knowledge. He did it in the Taberna Ideal, a tavern on Rua das Trinas (street number 67) near his home, whose premises later became the religious Solar da Madragoa. During fado nights, the house cast was placed on the door to entice customers. António Mello Corrêa chose the name António Roque as his artistic identity, so that his parents, especially his father, José Corrêa de Mello (Dom José, as he was known because he was born into an aristocratic family), would not notice him when they passed by the front door. His disguise was short‑lived, with his father delivering a sharp warning to Bettencourt, one of the tavern’s partners. José’s rage was reflected in Bettencourt’s shirt collars. Because his father did not want his beloved son trapped in the dreadful world of fado, Bettencourt’s ears picked up harsh comments.

The teenage fado singer’s determination triumphed against his father’s austerity. Two phases and two approaches were used to offer the speedy and customized response. First, to show his gratitude for the opportunity provided by good friends Jorge and Bettencourt (the tavern’s owners) and, as a result, to condemn his father’s austere attitude, António Mello Corrêa not only continued to sing in the Taberna Ideal, but also in the subsequent and famous Solar da Madragoa, which featured, among others, the fado singer António Rocha.

Second, António Mello Corrêa enlisted the help from his loyal companies formed during the aforementioned Ribatejo gatherings. In the middle of the 1960’s, he recorded an EP released by the prominent Philips label, on which he performed fados written by Maria Manuel Cid (writer of three of the four songs) and Manuel Andrade (of the same age as the fado singer, and who fatally died shortly after, in 1966). The musical accompaniment on this disc came from Raul Nery’s famous Guitar Ensemble. It was the first collection of themes created by the fado singer.

The record would mark a watershed moment in the young fado singer António Mello Corrêa’s career, demonstrating his commitment to rigorous fado as well as the development of a distinct style. Consequently, his debut EP served as an affirmation album from the beginning of his career, which was plainly disrupted due to the completion of compulsory military service, which could no longer be postponed (or rather, delayed as it is explained below).

António Mello Corrêa made two contacts with the troop. For the first time, he volunteered for the Air Force. He have given up recruiting to join this branch of the military, so it was nothing more than an idea. The fado addiction was one of the main reasons for this dropout.

The second passage, on the other hand, was extremely effective and long-lasting: 44 months. Buddies have persuaded him to sign up and complete his compulsory military service in order to avoid being labelled a refractory because he had given up on voluntary conscription and, at the age of nearly 22, had not yet been called into the troop.

He enlisted in the Army in May 1966 and paid a significant interest penalty as a result for his lateness. Initially, he was based in Santarém. After a few months of recruiting training, he was assigned to Tavira for the militiaman sergeant’s course. His primary motivation was the fado, not the army. Therefore, it is understandable that he has had a low grade in the course, and consequently he has been “deported” to Madeira, a Portuguese island, to train a team of mostly unruly soldiers. He was surrounded by the sea and far away from fado. After that, he was assigned to the Colonial War. On August 6, 1967, “his” Companhia de Caçadores (hunters company) number 1739 (and also the Companhia de Caçadores number 1740, both mobilized by the Funchal Independent Infantry Battalion) boarded the Troop Transport Ship «Vera Cruz» (which had left Lisbon the day before with others military companies). The company proceeded on to Cabinda after arriving in Luanda, and the mission was only completed in late 1969.

During the overseas conflict in the Portuguese Congo (i.e., Cabinda), the veins of fado swelled without limit away from his Lisbon. While the protracted confinement in the Maiombe forest exacerbated many troops’ homesickness for their homeland and the anxiety about the unknown future, it bolstered two personal attributes in militiaman António Mello Corrêa: the supreme sense of brotherhood and the intrinsic fado soul. As his departure for the fado region approached, he decided to recall the military season in Cabinda by packing one of the residents of Maiombe’s green sea: a female baby monkey (which later had to change residence, from Madragoa to the Lisbon Zoo).

 

 

From the consolidation of professionalization until the post‑April 25th

 

When he returned to the metropolis in January 1970, he knew exactly what he intended to achieve with his life: fado. After that, he was determined to make up for the time he had spent away from his dear Lisbon and his beloved fado (almost three years of absence) as quickly as possible. He could not have foreseen—and no one else could have guessed—that the decade would be busy, joyful, and full of accomplishments and undertakings.

He rose quickly to prominence in the fado circuits, thanks in part to the aforementioned album, which had been edited before he joined the troop and functioned as a golden calling card. It is no surprise, then, that when he returned from Africa, he was asked to sing in prestigious fado houses. Therefore, he was hired to join the cast of the renowned Taverna do Embuçado (Disguise’s Tavern) in Alfama, which was headed by João Ferreira‑Rosa—one of the attendees of the longing fado gatherings in Chamusca—, a fado singer who had founded the luxury restaurant with the support of the wealthy couple João Santiago (João Jorge Santiago Corte‑Real, owner of the Santa Catarina Palace) and Manuela Cintra at the end of 1965. Its cast included top‑notch musicians, namely Fontes Rocha and Pedro Leal.

When old friends needed him, he responded enthusiastically and with the seriousness with which he has always been associated. So, José Pracana, an old friend from the gatherings and one of the partners of Arreda Bar in Cascais at the time, invited António Mello Corrêa to join the cast.

António Mello Corrêa was singing and charming in fado houses at the same time he was recording in the studio. As a result, several discs were made. On the three successive EPs, all released by the Philips label, Maria Manuel Cid wrote five of the twelve fados; Manuel Andrade wrote two of the twelve fados. He was accompanied by Jorge Fontes’ Guitar Ensemble on the first vinyl; Raul Nery, António Chainho, José Maria Nóbrega, and Joel Pina on the second vinyl; and Raul Nery, António Chainho, and Joel Pina as well as Pedro Leal, who replaced José Maria Nóbrega, on the third vinyl. In consequence of that trilogy of EPs, the Fontana label edited the fado singer’s first LP, with the fado singer already acknowledged.

António Mello Corrêa never stopped singing and enchanting, and even idealizing, as one would expect from a brave and exceptional figure in his time. He imagined surrendering to a venue that was exclusively his, where he could share a fado in two tones, classic and charming, with friends and ardent fans of his art. He believed that fado should be free of the canons imposed by well‑known traditional fado houses.

Aside from his intentions to start his own business, a new EP was released to keep the momentum continuing. The edition, which featured Fontes Rocha, Carlos Gonçalves, Pedro Leal, and Joel Pina as a quartet of musicians, was released by the Estudio label, owned by the noted fado record entrepreneur Emílio Mateus. The album included the song «Tourito Negro» (Dark Little Bull), written by Maria Manuel Cid and composed by the gifted composer Fontes Rocha—the composer of the two songs regarded as musical fados created later by António Mello Corrêa—, which became one of the greatest hits despite not being his own creation. The thriving era of Maria Manuel Cid came to an end on April 25th, as the political breeze in Portugal got increasingly irregular.

In a short period of time, António Mello Corrêa responded to the new political movement with an EP, which was also edited by Estudio. He achieved three goals: he drew upon himself two poems written by his late friend Manuel Andrade—also the last poems of his authorship recorded by the fado singer, one of which was repeated, «Mãos Abertas» (Open Hands)—; he introduced «Maldito Fado» (Damn Fado) to the album judging, a fado written by Pedro Bandeira and Álvaro Leal, created by Alberto Reis, and made popular by Hermínia Silva’s interpretation; and he presented «Canção de Abril» (April Song), a fado with a suggestive name written by the monarchist and conservative João Ferreira‑Rosa. Fontes Rocha, Pedro Leal, and Joel Pina, professional musicians who were entirely indifferent to the new political environment, responded to the challenge by expressing their unwavering admiration for António Mello Corrêa’s friendship.

With the April 25th political movement, António Mello Corrêa would need to come up with ideas on how to make them a reality after having dreamed and envisioned so much. Rather than burying ideas in memory, he rooted them in reality. In fact, the instability at Taverna do Embuçado—a business that had previously catered for an elite clientele on the verge of losing weight in society—on the one hand, and João Ferreira‑Rosa’s subsequent intention to close the doors of this prestigious restaurant on the other hand, resulted in the exodus of most of the performers, forcing the rest of the cast and other workers to adopt a self-management scenario to avoid widespread unemployment.

The uncertain future prompted António Mello Corrêa’s long‑held desire to open a popular fado tavern, sponsored by the generous coupling of wine and friendship. Most likely, he felt compelled to create his own modest but distinctive venue that would be consecrated by the voice of the people who sang Amália Rodrigues’ hit «Oiça lá, ó Senhor Vinho!» (Hey there, Mr. Wine!). Keep in mind that in 1971, the Columbia label released an EP of Amália called «Oiça Lá Ó Senhor Vinho», the title of the first fado on the A side, written and composed by Alberto Janes.

 

 

The opening of Sr. Vinho restaurant (Mr. Wine’s) and a new record impulse

 

The envisaged outcome would be as expected: the opening of a tavern with fado as the main menu. A decision has been made. A name must be given to the finished product. To baptize the future fado retreat, he made a point of visiting Amália Rodrigues’ home to present his concept and ask her permission to use Alberto Janes’ success, «Senhor Vinho», in the voice of the diva. António Mello Corrêa did not want to go alone, therefore he took his old friend Chipá with him. According to the friend, «I like the young man so much!», Amália Rodrigues said him in the middle of the conversation. It is no surprise, then, that she readily accepted the fado singer’s proposal.

António Mello Corrêa had a lot of confidence when he decided to buy a tavern and a charcoal shop on one side and a grocery store on the other, all in the same spot, at the intersection of Rua das Praças (street number 18) and Rua das Trinas, in his typical Madragoa neighbourhood. Recognizing that fado is not just prayed in famous cathedrals, he intended to turn an ordinary food and drink tavern into a different kind of sanctuary, where he could share his devout sensitivity with the humble people who adored fado.

However, his never‑ending desire to bring fado to the people (based on an honest, democratic, and humanistic vision formed and developed before the Carnation Revolution, it should be noted) would not fit into daily living or budgetary constraints. Fado had lost its popularity. The general people appreciated it, but many were embarrassed, if not afraid, to voice their genuine feelings.

Under the emotive approach envisioned by its creator, the Sr. Vinho concept would never extend beyond the amateur entrepreneurship built by a professional fado singer. He rapidly realized that simply sharing his healthy and almost altruistic fado spirit with fado fans would not be enough to ensure the project’s success. In order to continue forward without worry of losing money, the company had to be financially sustainable first and foremost. In other words, the project’s audacity did not receive support from the post‑April 25th socio‑political situation because fado had been abandoned or even ostracized, in general, and because António Mello Corrêa was closely associated with fado marialva, alluding to bullfighting or even aristocratic images, in particular. As a consequence, transforming the facility into a viable fado retreat would require a muscular investment.

When a wealthy investor was needed, the Sr. Vinho’s mentor—the fado singer António Mello Corrêa—did not hesitate to share the ownership of his project. As a result, after several fruitless attempts to find a financial partner, in July 1975 he finally found a couple who could relate to his proposal. His partners, with whom he shared equally his personal project, brought not only business (and financial) knowledge, but also artistic brilliance, gradually transforming the space into a prestigious typical fado house. Such partners were José Luís Gordo and his wife, Maria da Fé, a fado singer who worked at A Parreirinha de Alfama (The Little Grapevine of Alfama) at the time.

Despite the fact that fado was not well recognized at the time, Sr. Vinho was warmly welcomed at the meanders, to the point where there was a scarcity of tables to accommodate the innumerable customers who had to wait another day to hear excellent fado, led by António Mello Corrêa. Therefore, Sr. Vinho grew up in the area after moving to an adjacent location, a few tens of meters away, in 1981, where it is today located, specifically at the intersection of Rua do Meio à Lapa (street number 18) and Rua das Praças. Before the venue was purchased, it was home to a deactivated industrial bakery.

From its inception in 1975 until the iconic Maria da Fé moved permanently to the new space, becoming the face of the poster, the cast was equally strong. Artists such as the fado singers Filipe Duarte, Maria do Céu (Licas)—the first resident fado singer—, and Maria da Nazaré, and the Portuguese guitar player Fontes Rocha (who has been by António Mello Corrêa’s side since the first hour of Sr. Vinho, and so closed a magnificent chapter in his career, putting an end to a dozen years of accompanying Amália Rodrigues across the world from 1962 to 1974). At the beginning, Sr. Vinho’s other musician was the fado viola player Manuel Martins, who was replaced in 1977 by Pedro Leal (a former colleague of Fontes Rocha at Taverna do Embuçado, who also chose to leave Amália Rodrigues’ group of permanent musicians).

While introducing the new Sr. Vinho, it would be remiss not to mention Carlos Pinto, who was almost usually the house manager. After António Mello Corrêa died, José Luís Gordo and Maria da Fé granted him a share of the company's capital.

To bolster his image, the image of the (former) Sr. Vinho, and the fado image, António Mello Corrêa recorded a new EP and later a LP, both edited by the Estudio label. With that EP, he was able to assert himself while also raising the bar. With the support of the same musicians that played in the last EP—in particular Fontes Rocha, Pedro Leal, and Joel Pina—, the fado singer set out to accomplish three goals in his own unique way. The first goal was to reinforce the infamous song «Senhor Vinho», which was created by Amália Rodrigues and used to name his idealized fado house, as previously said. The second goal was to associate with the «Ovelha Negra» (Black Sheep), written by João Dias, a creation of Beatriz da Conceição or José Manuel Osório. The third goal was to emphasize the archaic and politically unfavourable link to the past, strengthening his affection for the bullfighting spirit and recalling a well‑known Hortense Luz’s creation: «Fado das Toiradas» (Bullfights Fado)—recorded by António Mello Corrêa with the name «O Simão Contra o Caraça» (Simão Against Caraça)—, written by Luís Galhardo and made popular by Hermínia Silva’s interpretation.

The unfavourable winds for fado were stronger than the fado singers’ good intentions. He did not, however, give up. He then released his second LP, which was a compilation of his three previous EPs. He attempted, but failed, to overcome the public’s negative perception of fado, changing the title of the aforementioned «Canção de Abril» (April Song) to a more provocative and general name: «Fraternidade» (Fraternity).

A few years later, in 1979, he recorded his third LP, which was edited by EMI and featured Fontes Rocha, José Luís Nobre Costa, Pedro Leal, and Joel Pina on the musical accompaniment. It was an album with three fados written by his partner José Luís Gordo (poet Luís Alcaria), one of which being «Quentes e Boas» (Hot and Good [chestnuts]), the album’s title—due to the success of «O Homem das Castanhas» (The Chestnut Man), a theme edited two years before and written by Ary dos Santos for Carlos do Carmo’s voice. This vinyl also included the theme from the early career EP, which was later re‑recorded by the fado singer: «Mãos Abertas». Such album also included the theme «Tinha o Nome de Saudade» (She Had the Saudade Name), written by João de Freitas.

 

 

The professional career balance

 

António Mello Corrêa, who possessed a talented spirit and a fervent soul, had 10 vinyl discs made for him, covering 40 original recordings—and 38 different songs, being «Mãos Abertas» the subject of three recordings, as noted: «Open hands, giving hands (...) My hands are like that». The first of the 10 occurred in the mid‑1960’s, with the remaining nine recording during the 1970’s. The swansong was held in 1979.

The covers and back covers of the editions that make up António Mello Corrêa’s discography as well as the song titles are attached. There is also an indication of the relevant identification (rectified, if necessary) of the authors of the lyrics and composer of the music, and an indication of the themes created by António Mello Corrêa too. He was the creator of more than half of his repertoire (20 out of 38), demonstrating the fado singer’s uniqueness. This helps to explain why, despite his brief career, he is associated with several significant successes and holds a prominent place in Fado History.

After a life full of strength and dedication to the fado cause, he died prematurely on November 1, 1982, putting an end to a bright and promising career for which the fado community would be eternally grateful. The misfortune planned for his voice to be muted abruptly and terribly in a Lisbon neighbourhood close to his hometown when he was 38 years old. He was born, raised, and died in Santos (Saints) on All Saints’ Day.

António Mello Corrêa is a well‑known fado apostle, endowed by nature or by something higher with a unique vocal talent that spans the beginning of the word to the end of sensation. Thanks to his exquisite timbre and exceptional tune, he had a range of voice that made him completely at ease, whether in the low, medium, or high notes. This unique skill allowed him to embody all the intense fado feelings that existed in his soul.

Before concluding this essay, one considers the following scenario: what would have happened to fado if António Mello Corrêa’s fate had allowed him to live longer? Keep in mind that when the dean Alfredo Marceneiro met António Mello Corrêa (who had both talent and education) at the height of his experience (and no less demanding), he immediately opened his heart to him, as if this openness constituted a safe conduct for this young fado singer to enter any fado house. Because of the close friendship between the two generations, «Mãos Abertas»—always sung in Fado Bailado by Alfredo Marceneiro—was the only song recorded more than once from the beginning to the end of António Mello Correa’s artistic career. The photo on page 28 shows how much the two fado players care for one other.

Although most people who live on fado have inexplicably forgotten about him since his death, the ink of longing for his fado has remained indelible for the past 38 years and will continue to be indelible too. In May 1994, on his fiftieth birthday, he received a posthumous tribute, with Amália Rodrigues, Maria Manuel Cid, and Victor Feytor Pinto serving on the honor committee (page 33), that was a highly dignified example of an oasis in the oblivion.

As a result, it is incumbent upon us to carry on António Mello Corrêa’s legacy. Little was known about this famed fado personality's life and career until now. We, like the fado singer, feel as though a tremendous stolen longing—«Flowers burn on the chest / Of a deceived child / And an unhappy love / Burns in the exquisite bosom [or heart] / Of a stolen longing» (verses written by the unknown poet João Rosa, in the fado lyrics «Burn Your Eyes, Woman»).

Based on what is revealed in this text, it is shown that he was a creator who lived and will always live... with the SAUDADE name.


quarta-feira, 14 de abril de 2021

António Mello Corrêa… com «o nome de saudade»



António Mello Corrêa… com «o nome de Saudade» (#)

  

António Vasco Ahrens Teixeira de Mello Corrêa, conhecido no meio fadista por António Mello Corrêa, nasceu em 25 de maio de 1944 em Lisboa, na então freguesia de Santos‑o‑Velho. Com o seu estilo inconfundível, gravou 38 temas diferentes. Faleceu, na mesma freguesia, em 1982, no Dia de Todos os Santos; com 38 anos de idade e há 38 anos de saudade.

  

Das tertúlias fadistas à ida para África

 

Manifestaram‑se‑lhe desde cedo o gosto e a vocação fadistas, ou a sua mãe, Paulina Pombo Teixeira (Paneca, como era tratada pela vizinhança), não cantasse lindamente o fado. «De Pequeno Sou Fadista», um poema escrito por Maria Manuel Cid, explica tal gosto e vocação: «O fado não me perdeu / Nem tão pouco o encontrei / Pois não é mérito meu / Foi condão que Deus me deu / E que nunca o procurei». Em síntese: «Nasci para ser fadista» – último verso do fado.

Sendo ele apaixonado pelo fado, amigo de conversar, bom ouvinte, bem‑disposto e educado, reunia‑se habitualmente em tertúlias com pessoas de igual jaez, onde dominavam as relações recíprocas de apreço e generosidade. As primeiras fadistices remontam à adolescência e aos contactos com os fadistas que viviam no mesmo bairro, a Madragoa.

Os primeiros a acompanharem‑no nas tertúlias fadistas foram os amadores Carlos Pinto da Rocha, à guitarra, e José Carlos da Maia, à viola, numa altura em que a versatilidade da sua voz ainda não tinha sido cabalmente identificada. A primeira pessoa que tirou os tons de António Mello Corrêa foi o músico Luís Barros, que sabia tocar quer viola, quer guitarra. Na foto da página 27, tirada em 1965, o fadista está acompanhado pelos amadores Luís Barros, à viola, e João Azevedo Neves, à guitarra.

A partir de 1965 as fadistices expandiram‑se para o Ribatejo. Passaram a ser regulares os encontros na Golegã, em casa dos avós maternos do seu vizinho da mesma idade e amigo de infância Eduardo Vantacich (Chipá). Aí reuniam‑se algumas pessoas que iam conviver e saborear um bom fado marialva. O mesmo carro do amigo transportava habitualmente também o guitarrista João Torre do Valle (Zina), o violista José Carlos da Maia e José Pracana (que nessa altura ainda andava a aprender a tocar guitarra, recebendo as primeiras lições de Carlos Pinto da Rocha).

As tertúlias na Golegã deram brado, e rapidamente a fama contagiou os apaixonados da região que, levando à prática a norma «o amigo do meu amigo, meu amigo é», começaram a organizar tertúlias fadistas na contígua Chamusca. A primeira anfitriã foi a poetisa Maria Manuel Cid, que reuniu um grupo extenso de amigos do fado no «celeiro» da sua casa – um armazém de razoável dimensão (onde eram guardados os mantimentos e os instrumentos agrícolas) que, depois de devidamente limpo, arrumado e coberto com mantas, estava preparado para erguer tertúlias. Para além de António Mello Corrêa, Zina, José Carlos da Maia e José Pracana, do grupo faziam parte Maria Teresa Cavazzini – irmã da anfitriã –, Teresa Tarouca, Manuel Andrade, Carlos Guedes de Amorim, João Ferreira‑Rosa, Fontes Rocha, entre outras personalidades.

Mais tarde, diversas vezes as tertúlias instalaram‑se no «celeiro» da Herdade Isidro dos Reis. Mercês da Cunha Rêgo, Teresa Silva Carvalho, Carlos Zel, Joaquim do Vale (Covinhas) foram também assíduos frequentadores de tais encontros. Nalgumas ocasiões realizaram‑se na mesma herdade sessões de fado com o intuito de angariar fundos para fins de solidariedade.

António Mello Corrêa estava sempre pronto para dar o seu fado às boas causas, nomeadamente em benefício de associações de bombeiros. Diversas vezes os bombeiros da Golegã e da Chamusca pediram‑lhe para atuar.

Fruto das boas companhias desde a adolescência, ele entendeu que deveria pôr em prática o seu instinto: começar a cantar em público, mas sem os pais saberem. Fê‑lo numa taberna que ficava mesmo ao pé da sua casa – a Taberna Ideal, cujas instalações deram lugar, pouco depois, ao religioso Solar da Madragoa, na Rua das Trinas (nº 67). Quando havia noites de fado, era afixada na porta, para atrair clientes, o elenco da casa. Deste fazia parte António Roque, o nome artístico usado por António Mello Corrêa, para que os pais – mais concretamente o seu pai, José Corrêa de Mello (Dom José, assim era tratado, pois vinha de uma família titular) – não o descobrissem quando passassem à frente da porta. Porém, foi disfarce de breve dura, terminada com uma valente descompostura pregada pelo seu pai ao Bettencourt, um dos sócios da taberna. Os colarinhos de Bettencourt sentiram a ira de José, e os ouvidos registaram duras palavras proferidas por quem jamais queria ver o seu querido filho no antro pecaminoso do fado.

A vontade do jovem fadista venceu a austeridade do pai. A resposta, célere e especial, foi dada em dois planos e em duas fases. Em primeiro lugar, e imediatamente para deixar claro o agradecimento pela oportunidade dada pelos bons amigos Jorge e Bettencourt – os donos da taberna – e, do lado oposto, condenar a atitude austera do seu pai, António Mello Corrêa não só continuou a cantar na Taberna Ideal, como atuou regularmente no subsequente e afamado Solar da Madragoa, do qual fazia parte, por exemplo, o fadista António Rocha.

Posteriormente, e em segundo lugar, António Mello Corrêa pediu reforços às suas fiéis companhias das tertúlias ribatejanas acima identificadas. Assim, em meados dos anos 60 a conceituada etiqueta Philips editou um EP, em que António Mello Corrêa cantou fados escritos por Maria Manuel Cid – autora de três dos quatro temas – e por Manuel Andrade – da mesma idade que o fadista, e que fatalmente morreu pouco depois, em 1966. Neste vinil o acompanhamento musical esteve a cargo do prestigiado Conjunto de Guitarras de Raul Nery. Tratou‑se dos primeiros temas criados pelo fadista.

O disco viria a marcar decisivamente o trajeto do jovem António Mello Corrêa no mundo do fado; representou em simultâneo a sua fidelidade ao fado rigoroso e a criação de um estilo peculiar. Portanto, para além de ter sido o seu primeiro EP, revelou‑se o disco de afirmação logo ao início da carreira, a qual foi compreensivelmente interrompida devido ao cumprimento do serviço militar obrigatório, que já não podia ser mais adiado (ou melhor: atrasado, como se explica de seguida).

António Mello Corrêa teve duas passagens pelo serviço militar. A primeira foi quando se inscreveu como voluntário para a Força Aérea. Não passou de uma mera intenção, porquanto desistiu do recrutamento para o ingresso nesse ramo das Forças Armadas. O bicho pelo fado foi certamente um dos grandes responsáveis por tal desistência.

A segunda passagem foi, pelo contrário, bem efetiva e duradoura: 44 meses. Porque desistira do recrutamento para o qual tinha concorrido voluntariamente e porque, já com quase 22 anos de idade, ainda não fora chamado para a tropa, os amigos aconselharam‑no a tomar a iniciativa de se alistar para cumprir o serviço militar obrigatório, evitando assim que viesse a ser considerado refratário.

Em maio de 1966 integrou o Exército, tendo o atraso sido pago com juros elevados. Primeiro, assentou praça em Santarém. Findos os meses de recruta, foi destacado para Tavira, para o curso de sargentos milicianos. A sua grande motivação era o fado, e não a tropa. Por conseguinte, é normal que tenha obtido uma classificação baixa no curso, de onde ter sido “deportado” para a ilha da Madeira, para formar uma unidade composta essencialmente por corrécios. Rodeado pelo mar e separado do fado, foi então destacado para a Guerra Colonial. Em 6 de agosto de 1967, a “sua” Companhia de Caçadores nº 1739 (bem como a Companhia de Caçadores nº 1740, ambas mobilizadas pelo Batalhão Independente de Infantaria do Funchal) embarcou no Navio de Transporte de Tropas «Vera Cruz» (que saíra de Lisboa no dia anterior com outras Companhias). Chegada a Luanda, a Companhia seguiu para Cabinda, cuja missão terminou somente no final de 1969.

Longe da sua Lisboa, durante a guerra ultramarina no Congo Português (vulgo Cabinda), as veias do fado engrossavam‑se incontidamente. Se para muitos militares o longo período em que estiveram retidos na floresta de Maiombe aumentou‑lhes a saudade da terra natal e a angústia do amanhã incerto, para o miliciano António Mello Corrêa serviu para consolidar duas qualidades pessoais: o supremo espírito de camaradagem e a inata alma fadista. Aproximando-se a hora da partida para a terra do fado, ele quis recordar a sua passagem por Cabinda, levando na bagagem um dos residentes do mar verde de Maiombe: uma pequena macaca (que depois teve de mudar de residência, da Madragoa para o Jardim Zoológico de Lisboa).

 

Desde a consolidação da profissionalização até ao pós‑25 de Abril


Logo após o regresso à Metrópole, em janeiro de 1970, nele ficou mais do que decidida a direção ansiada para o seu futuro: o fado. A partir de então, estava empenhado em recuperar depressa os cerca de três anos afastados da sua querida Lisboa e do seu amado fado. Jamais o próprio imaginaria – porque ninguém imaginaria sequer – que iria ser uma década frenética e ditosa, repleta de êxitos e de projetos.

Ele enraizou‑se definitivamente nos circuitos fadistas, até porque o disco atrás citado, editado antes de ir para a tropa, resultara num dourado cartão de visita. Não admira por isso que, quando veio de África, tenha sido convidado para cantar em casas de fado de referência. Por conseguinte, foi contratado para pertencer ao elenco da reputadíssima Taverna do Embuçado, em Alfama, encabeçada por João Ferreira‑Rosa – um dos elementos das saudosas tertúlias na Chamusca –, fadista que fundara, com o esteio do abastadíssimo casal João Santiago (João Jorge Santiago Corte‑Real, proprietário do Palácio de Santa Catarina) e Manuela Cintra, esse restaurante de luxo no final de 1965. Contava no seu elenco com músicos de elevada craveira, designadamente Fontes Rocha e Pedro Leal.

Os amigos do passado solicitavam‑no e ele respondia positivamente com a sinceridade que sempre o caracterizou. O velho companheiro das tertúlias José Pracana, que era então um dos sócios do Arreda Bar, em Cascais, pôde contar com António Mello Corrêa no elenco.

Ao mesmo tempo que António Mello Corrêa (en)cantava nas casas de fado, ia gravando em estúdio. Assim, foram editados mais discos. Da dúzia de fados contidos nos três EP posteriores, editados igualmente pela Philips, cinco foram escritos por Maria Manuel Cid e dois por Manuel Andrade. No primeiro dos três discos, outrossim composto só por criações do fadista, foi acompanhado pelo Conjunto de Guitarras de Jorge Fontes; no segundo pelo quarteto de músicos composto por Raul Nery, António Chainho, José Maria Nóbrega e Joel Pina; e no terceiro por três destes músicos e também por Pedro Leal, em substituição de José Maria Nóbrega. Em seguida tal trio de EP originou o primeiro LP do fadista (já consagrado), editado pela etiqueta Fontana.

António Mello Corrêa não parava de cantar e encantar, de rezar o fado, e até – como constitui apanágio de quem é ousado e se distingue face a indivíduos do seu tempo – de idealizar. Sonhava entregar‑se a um espaço exclusivamente seu, onde pudesse partilhar com os amigos e os exigentes apreciadores da sua arte um fado servido em dois tons: o clássico e o castiço. Imaginava que o fado deveria galgar os cânones das tradicionais e conceituadas casas típicas.

Afora o desejo de ter um negócio próprio, na linha da continuidade foi editado um novo EP. A edição coube à etiqueta Estudio – propriedade do reconhecido empresário discográfico de fado Emílio Mateus –, e contou com um quarteto de músicos formado por Fontes Rocha, Carlos Gonçalves, Pedro Leal e Joel Pina. O disco continha uma criação que se tornou num dos grandes êxitos de António Mello Corrêa: «Tourito Negro», um fado escrito pela amiga Mimela Cid (Maria Manuel Cid) – o nono e último entregue ao seu querido amigo – e composto pelo sumo compositor Fontes Rocha – o compositor dos três fados ditos musicados criados por António Mello Corrêa. A era pujante de Maria Manuel Cid sofreu um repentino revés com o 25 de Abril, pois a brisa radicalizou‑se.

Em pouco tempo, António Mello Corrêa respondeu aos novos ares com um EP, igualmente editado pela Estudio. Nele atingiu três objetivos: chamou a si dois poemas escritos pelo falecido amigo Manuel Andrade – também os últimos da autoria deste gravados pelo fadista, um dos quais foi repetido, o «Mãos Abertas» –; trouxe para o julgamento do disco o «Maldito Fado», escrito por Pedro Bandeira e Álvaro Leal, criado por Alberto Reis e popularizado na interpretação de Hermínia Silva; e apresentou um fado com um nome sugestivo, «Canção de Abril», escrito pelo monárquico e conservador João Ferreira‑Rosa. Responderam à chamada os músicos profissionais Fontes Rocha, Pedro Leal e Joel Pina, totalmente indiferentes ao novo clima político, e convictamente consistentes com o respeito da amizade que nutriam por António Mello Corrêa.

Com o movimento do 25 de Abril, e após tanto ter sonhado e imaginado, finalmente tornava‑se imperioso que as ideias de António Mello Corrêa parassem de levitar. Não pretendendo ele que ficassem enterradas na memória, fê‑las pousar na realidade. De facto, a instabilidade vivida na Taverna do Embuçado – negócio até então orientado para uma clientela de elite prestes a perder peso na sociedade –, por um lado, e a consequente intenção de João Ferreira‑Rosa encerrar as portas desse restaurante de prestígio, por outro, originaram o êxodo de boa parte dos intérpretes, levando o restante elenco e os demais trabalhadores ao cenário da autogestão para evitar o desemprego generalizado.

O futuro no modo indefinido foi o rastilho para António Mello Corrêa pôr em prática o seu pensamento há muito enraizado: a criação de uma popular taberna de fado, apadrinhada pelo simpático casal do vinho e da amizade. Muito provavelmente pensou que teria de construir um sítio próprio, singelo mas singular, que fosse consagrado pela voz do povo que apregoava(ra) «Oiça lá, ó Senhor Vinho!», um êxito de Amália Rodrigues. Tenha‑se presente que em 1971 a etiqueta Columbia editou um EP de Amália intitulado por «Oiça Lá Ó Senhor Vinho», o nome do primeiro fado do lado A, escrito e composto por Alberto Janes.

 

Fundação do Sr. Vinho e novo impulso discográfico

 

Estava à vista o resultado final: abrir uma tasca que servisse fado como prato principal. Decisão tomada. Faltava dar o nome ao produto final. Para poder batizar, em consciência, o futuro retiro de fado, fez questão de se dirigir à residência de Amália Rodrigues, de modo a transmitir‑lhe a sua ideia e pedir‑lhe autorização para utilizar o êxito de Alberto Janes colocado na voz da diva: «Senhor Vinho». António Mello Corrêa não quis ir sozinho e por isso levou consigo o velho amigo Chipá, segundo o qual Amália Rodrigues, a meio da conversa, proferiu‑lhe a seguinte frase: «Eu gosto tanto do menino!» Portanto, não admira que ela tenha concordado imediata e incondicionalmente com a ideia do fadista.

António Mello Corrêa lançou‑se com uma coragem desmedida, decidindo adquirir uma loja de taberna e carvoaria, de um lado, e mercearia, do outro – mas integradas no mesmo local –, que havia no seu bairro de sempre, o da Madragoa, sita no cruzamento da Rua das Praças (nº 18) com a Rua das Trinas. Ciente de que não é só nas afamadas catedrais que se reza o fado com genuinidade, quis converter a vulgar tasca de comes e bebes num santuário diferente, onde pudesse distribuir a sua devota sensibilidade com a humilde gente apreciadora do fado.

Porém, a paixão infinita pela sua honesta ideia democrática e altruísta – mas nascida e criada antes da Revolução dos Cravos, sublinhe‑se –, a de abrir o fado ao povo, não condizia com o dia a dia nem com a razão financeira. O povo afastara‑se do fado; gostava de fado, mas tinha pudor, ou inclusivamente receio, em exprimir o seu verdadeiro sentimento.

O projeto Sr. Vinho não passaria, da forma emotiva como o seu autor desenhara, de um empreendedorismo amador erguido por um fadista profissional. Cedo constatou que para o projeto prosseguir em segurança não bastava a salutar vontade, quase abnegada, de ele repartir o seu espírito fadista com os amantes do fado. Para o negócio poder avançar sem a certeza do risco de queda, importava que fosse sustentável, desde logo e acima de tudo sob o ponto de vista dos cifrões. Por outras palavras: para além da ousadia do projeto não ter o apoio da conjuntura sociopolítica do pós‑25 de Abril – por o fado ter sido um pouco abandonado ou mesmo ostracizado, em geral, e por António Mello Corrêa ter estado muito associado ao fado marialva, alusivo a imagens tauromáquicas ou até aristocráticas, em particular –, seria preciso um músculo monetário que transformasse o espaço num adequado retiro de fado.

Perante a necessidade de dispor de um suporte endinheirado para o Sr. Vinho, imediatamente o fadista‑mentor não hesitou em partilhar a propriedade do seu projeto. Assim, em julho de 1975, após goradas algumas tentativas para conseguir um sócio com suficiente arcabouço financeiro, encontrou por fim um casal que pôde associar‑se à sua ideia. Os sócios com quem ele dividiu paritariamente o seu projeto pessoal trouxeram não só a capacidade empresarial (e de investimento), como também o fulgor artístico, transformando ao longo do tempo o local numa casa típica de fado de referência. Tais sócios foram José Luís Gordo e a sua mulher (a fadista Maria da Fé, que na altura trabalhava n’A Parreirinha de Alfama).

Apesar de nessa época o fado não estar bem conotado perante a opinião pública, a simpatia do Sr. Vinho foi muito bem acolhida nos meandros, ao ponto de se deparar com a falta de espaço para colocar mais mesas. Inúmeros clientes tinham de voltar noutro dia para poderem ouvir o bom fado, encabeçado por António Mello Corrêa. O Sr. Vinho teve portanto de crescer em área, com a deslocação física, em 1981, para um local perto, a poucas dezenas de metros, em concreto para o cruzamento da Rua do Meio à Lapa (nº 18) com a Rua das Praças – onde atualmente se encontra –, após a aquisição de uma padaria industrial ali existente que estava desativada.

Desde a sua criação, em 1975, até à altura em que a icónica Maria da Fé se mudou em definitivo para o novo espaço, tornando‑se a cabeça de cartaz, o elenco era igualmente de peso, tendo contado com a presença, entre outros artistas, dos fadistas Filipe Duarte, Maria do Céu (Licas) – a primeira fadista residente, cunhada de Filipe Duarte – e Maria da Nazaré, e do guitarrista Fontes Rocha (que desde a primeira hora do Sr. Vinho esteve ao lado de António Mello Corrêa, e desse modo virou uma página dourada da sua carreira, pondo termo a uma dúzia de anos, de 1962 a 1974, a acompanhar Amália Rodrigues pelos vários cantos do Mundo). Ao início o outro músico do Sr. Vinho foi o violista Manuel Martins, que em 1977 deu o lugar a Pedro Leal (ex‑colega de Fontes Rocha na Taverna do Embuçado, e que também decidiu deixar de fazer parte do grupo de músicos fixos ao serviço de Amália Rodrigues).

Constituiria uma lacuna falar no novo Sr. Vinho sem mencionar uma pessoa que foi praticamente sempre o gerente da casa: Carlos Pinto. Aliás, depois da morte de António Mello Corrêa, foi‑lhe concedida, por José Luís Gordo e Maria da Fé, uma parte das quotas da empresa.

Para reforçar a sua imagem, a do (antigo) Sr. Vinho e a do fado, António Mello Corrêa lançou um novo EP, e mais tarde um LP, também editados pela Estudio. Desses dois vinis, o primeiro deu para ele subir a fasquia e simultaneamente continuar a afirmar‑se. Com os mesmos músicos do EP precedente – Fontes Rocha, Pedro Leal e Joel Pina –, o fadista, ao seu jeito, pretendeu atingir vários fins: consolidar o famigerado tema «Senhor Vinho», criado por Amália Rodrigues – e aproveitado para dar o nome à sua idealizada casa de fado, conforme atrás referido –; identificar‑se com a «Ovelha Negra», de João Dias, uma criação de Beatriz da Conceição ou de José Manuel Osório; e vincar a ligação ao passado algo anacrónico e politicamente desfavorável, reafirmando a sua paixão pelo espírito tauromáquico, trazendo à memória o conhecido «Fado das Touradas» – ou «O Simão Contra o Caraça» –, escrito por Luís Galhardo e criado por Hermínia Silva.

Todavia, os maus ventos para o fado eram mais fortes do que os bons intentos do fadista. Mas não desistiu. Foi então editado o seu segundo LP, uma compilação que resultou dos três EP anteriores. Bem tentou, porém em vão, contornar a imagem do público em relação ao fado, alterando o título da «Canção de Abril» acima citada por um nome ainda mais sugestivo e universal: «Fraternidade».

Volvidos escassos anos, em 1979, gravou o seu terceiro LP, editado pela EMI, acompanhado musicalmente por Fontes Rocha, José Luís Nobre Costa, Pedro Leal e Joel Pina. Tratou‑se de um vinil com três fados escritos pelo seu sócio José Luís Gordo – o poeta Luís Alcaria –, um dos quais foi «Quentes e Boas», que intitulou o disco (mercê do êxito alcançado por «O Homem das Castanhas», um tema editado dois anos antes, escrito por Ary dos Santos para a voz de Carlos do Carmo). O vinil integrou outrossim o tema que fora incluído no EP do início de carreira e posteriormente regravado pelo fadista: «Mãos Abertas». E conteve ainda «Tinha o Nome de Saudade», escrito por João de Freitas.

 

Balanço da carreira

 

António Mello Corrêa, dono de um espírito talentoso e de uma alma fervorosa, viu ser‑lhe editada uma dezena de discos, repartida por 40 gravações originais – e 38 temas diferentes, em virtude de «Mãos Abertas» ter sido objeto de três gravações, como explicitado: «Mãos abertas, mãos de dar (…) As minhas mãos são assim». Dos 10, o primeiro foi em meados dos anos 60; os outros nove durante a década de 70. O canto do cisne ocorreu em 1979.

Em anexo constam a capa e a contracapa das edições que compõem a sua discografia, bem como o nome dos fados, com a respetiva identificação (corrigida, se necessária) dos autores das letras e das músicas, e ainda com a indicação dos temas criados por António Mello Corrêa. Ser o criador de mais de metade do seu repertório – 21 em 38 – demonstra a singularidade do fadista, e explica o motivo de ele, não obstante a curta carreira, estar ligado a diversos êxitos populares e residir num destacado lugar da História do Fado.

Depois de uma vida recheada de intensidade e entrega à causa fadista, a morte prematura chegou em 1 de novembro de 1982, ceifando uma carreira proficuamente promissora que o fado tanto agradeceria. Quis a desventura que a sua voz fosse assassinada súbita e tragicamente aos 38 anos, numa zona de Lisboa perto da que o viu nascer. Nasceu, cresceu, viveu em Santos, onde morreu no Dia de Todos os Santos.

Privilegiado pela Natureza ou por algo supremo, que lhe atribuiu, do princípio da palavra ao infinito do sentimento, uma aptidão vocal invulgar, António Mello Corrêa é um dos apóstolos proeminentes do fado. Dotado de um lindíssimo timbre e de uma inexcedível afinação, possuía uma amplitude de voz que lhe facultava inteiro à‑vontade, fosse nas notas graves, nas médias ou nas agudas. Foi com esse excecional dom que ele deu corpo a toda a enorme emoção fadista que morava na sua alma.

Antes de terminar este texto, importa colocar uma questão: o que seria do fado se o destino de António Mello Corrêa tivesse permitido uma vida maior? Basta ter em consideração que quando o decano Alfredo Marceneiro, no cimo da sua experiência (e não menos exigência), conheceu António Mello Corrêa (que tinha tanto de talento como de educação), abriu‑lhe de imediato o seu coração, como que esta abertura constituísse um salvo‑conduto para o jovem fadista entrar em qualquer casa de fado. A estreita amizade entre as duas gerações justificará em parte o facto de «Mãos Abertas», sempre cantado no Fado Bailado – da autoria de Alfredo Marceneiro –, ter sido o único a ser gravado mais do que uma vez, do princípio ao fim da obra artística de António Mello Corrêa. A foto da página 28 é um exemplo do carinho que havia entre os dois fadistas.

Se bem que ele tenha sido, depois do falecimento, incompreensivelmente esquecido, de modo geral, pelas pessoas que vivem do fado, para o povo a tinta da saudade do seu fado dura há 38 anos, e continuará a permanecer indelével. A homenagem póstuma que lhe foi prestada, em maio de 1994, no exato dia do seu quinquagésimo aniversário, cuja comissão de honra foi composta por Amália Rodrigues, Maria Manuel Cid e Victor Feytor Pinto (página 33), consistiu num digníssimo exemplo de um oásis no esquecimento.

É por isso nossa obrigação perpetuar o legado de António Mello Corrêa. Até agora, muito pouco se sabia da vida e da obra desta indiscutível personalidade do fado. Tal como o fadista, sentimos uma ingente saudade roubada – «Ardem flores sobre o peito / De uma criança enganada / E um amor insatisfeito / Arde no seio perfeito / De uma saudade roubada» (versos do poeta desconhecido João Rosa, em «Ardem Teus Olhos Mulher»).

Pelo exposto no presente documento, confirma‑se que ele foi um criador que vive e viverá sempre… com o nome de SAUDADE.

 

Lisboa, 1 de novembro de 2020

 

 

Jorge Carriço

Nuno de Siqueira

Vítor de Araújo

 


(#)       O trabalho em apreço foi realizado por Jorge Carriço, Nuno de Siqueira e Vítor de Araújo, e contou com os amáveis e indispensáveis contributos de Celestino Pinto, Eduardo Carinhas, Eduardo Vantacich (Chipá), Fernando Batista, João Azevedo Neves, Mário Rainho e Valdemar Duarte (Marceneiro).





Registo discográfico, por ordem cronológica

 

1 – Cavalo Baio *

2 – Minhas Mãos *

3 – Tempos d’Outrora *

4 – Braços da Cruz *

5 – O Meu Viver *

6 – Toiradas *

7 – De Pequeno Sou Fadista *

8 – O Rouxinol da Caneira *

9 – Fado Marialva

10 – Nova Tendinha

11 – Dia de São Martinho *

12 – Fadistas do Passado

13 – Galgo de Corrida *

14 – Pranto nos Teus Olhos *

15 – A Minha Rua

16 – É Noite para Mim *

17 – Cheira a Lisboa

18 – Minha Mãe *

19 – Tamanquinhas

20 – Tourito Negro *

21 – Fado Maldito

22 – Canção de Abril *

23 – Paredes de Caliça

24 – Ovelha Negra

25 – Senhor Vinho

26 – Simão Contra o Caraça

27 – Lisboa

28 – Quentes e Boas *

29 – Mataram a Mouraria

30 – Tinha o Nome de Saudade *

31 – O Amor É Louco

32 – Sol Poente

33 – Palminho de Cara Linda *

34 – Apregoando Cautelas *

35 – Levaste Saudades Minhas *

36 – Cavalo Ruço

37 – Ardem Teus Olhos Mulher *

38 – Fado do 31

 

* Criação de António Mello Corrêa

 

Fresbook e não Facebook do FRES

Fresbook e não Facebook do FRES   (25/04/2020) O FRES - Fórum de Reflexão Económica e Social sempre foi um Grupo plural para o lado...