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sexta-feira, 3 de julho de 2020

Esquerda e Direita no Século XXI – Reflexões (V) (parte III/III)

Esquerda e Direita no Século XXI – Reflexões (V) (parte III/III) (31/03/2017)


Esquerda e direita no séc. XXI? – Pergunta pouco útil, ou talvez pior do que inútil


A equidade e a eficiência

Após as tentativas – pelos vistos não cabalmente sucedidas – de dividir a política em dois extremos, parece que, desde há décadas, aquilo que nas sociedades democráticas mais robustas (ou eminentemente democráticas e civilizacionais, como têm sido aqui designadas) poderá melhor destrinçar a esquerda e a direita cinge‑se ao confronto profícuo entre a equidade e a eficiência. Isto porque a equidade e a eficiência são acarinhadas, (consciente ou) inconscientemente, pelos agentes políticos, por consistirem na menina dos olhos da esquerda e da direita, seguindo essa ordem. Não será redutor se se adiantar que a equidade da esquerda tem dado primazia à distribuição da riqueza e dos rendimentos gerados, enquanto a eficiência da direita tem posto o enfoque na produção da riqueza e na geração de rendimentos – geração esta marcada com o intuito de maximização dos rendimentos dos detentores dos meios de produção, e não tanto do benefício coletivo dos rendimentos gerados.

Esta associação direta – para o campo da política – da esquerda à equidade, por um lado, e da direita à eficiência, por outro, terá uma semelhança com o que John Rawls efetuara, em «Uma Teoria da Justiça», para o domínio da justiça, porquanto ele construiu uma abordagem segundo a qual a justiça ideal assenta no respeito máximo e equilibrado dos princípios da equidade e da eficiência. Assim sendo, a semelhança brota pois, inevitavelmente, da utilização versátil dos critérios da equidade e da eficiência. Com efeito, para este documento e em termos políticos, o que importa realçar resume‑se ao papel exercido, pela equidade e pela eficiência, na concretização da verdade democrática, o âmago do bem comum.

Ou seja, se a equidade e a eficiência são dois vetores direcionais, como que se dois carris se tratasse, contribuindo para que o comboio não descarrile e prossiga sem percalços o seu percurso até à chegada programada do supremo bem comum, não há motivo racional para que a política seja diferente da justiça (incluindo a de John Rawls). Nas sociedades eminentemente democráticas e civilizacionais, a ponderação adequada daqueles dois vetores deve ser enveredada para o maior número possível de áreas para além da política: da justiça à concertação social, da segurança social ao combate à pobreza, da saúde à educação, entre tantas outras áreas. Se o comboio da justiça, da concertação social, da segurança social, do combate à pobreza, da saúde e da educação atingem incontestavelmente melhor o bem comum quando orientados pela equidade e pela eficiência, é inequívoco que o mesmo sucede com a política, o epicentro da vida em comunidade.

A equidade e a eficiência são os ingredientes naturais das democracias consolidadas, ou seja, das sociedades eminentemente democráticas e civilizacionais. Leia‑se o seguinte excerto do documento «Humildade para entender o futuro da democracia», de 23 de dezembro de 2013, publicado em 28 de dezembro: «Fazendo uma viagem rápida à história mundial, podemos concluir que, apesar de a crítica constituir uma das características humanas a valorizar – porque vai evoluindo, tornando‑se útil para a sociedade –, não releva devidamente para a qualidade democrática. Somente com apreciações proporcionadas, apoiadas na equidade e na eficiência, é possível alcançar tal qualidade.»

Como os dois parágrafos anteriores objetivamente espelham, a importância da equidade e da eficiência não advém de meros motivos teóricos. Equidade e eficiência são fundamentais porque certamente incorporam o maior valor de pensamento acrescentado: o espírito crítico. Uma sociedade é tanto mais rica quanto melhor souber substituir a cáustica crítica vã pelo humilde espírito crítico. Quanto mais este for interiorizado pelos eleitores, mais se esbatem as diferenças entre a esquerda e a direita.

A esquerda é mais utópica. Tem ótimas ideias para atingir o bem comum, ainda que normalmente sem rigor e responsabilidade, dado descurar a análise técnica e financeira, e nem se importar de não certificar‑se que as ideias são exequíveis e não acabam até por prejudicar o benfazejo interesse comum. Pelo contrário, a direita é mais oportunista. Adota ótimas estratégias para atingir o bem pessoal ou corporativo, mas regularmente recorre à opacidade de argumentos e aos subsídios que ironiza e critica, sem se incomodar que muito do empreendedorismo falsamente transpirado está pejado de negócios de lesa‑pátria e negociatas de lesa‑crime que ferem de morte o erário público e o gentio indefeso.

Nos Estados modernos, vulgo Estados sociais suportados por economias mistas, não há lugar à esquerda e à direita nos moldes enraizados e estigmatizados. Neles é imprescindível, cada vez mais, espírito crítico para articular a realidade – crescentemente dinâmica e complexa – com a verdade. A pronta colocação dos óculos da esquerda ou da direita materializar‑se‑á na entrega do ouro ao bandido – entenda‑se: bandido da direita ou da esquerda. Se ambos podem estar certos, ou eventualmente errados, então algo de ilógico prevalece.

Daí que, ao fitar unicamente o seu ângulo, e não atender à diversidade de ângulos alternativos, a defesa afincada da esquerda ou da direita redunda na fragilidade da sua posição e no fortalecimento da posição do adversário. Rectius, ela – esquerda ou direita – expõe‑se, com entusiamo exclusivo, à defesa dos seus argumentos ideológicos, descurando a proteção dos mesmos ante as investidas dos oponentes que defendem acerrimamente argumentos ideológicos contrários. Pessimamente vai a política quando - retome‑se o penúltimo parágrafo – a falta de rigor e de responsabilidade é extensível outrossim à direita, e os negócios e as negociatas assentes na má‑fé contaminam também a esquerda.

Nas sociedades democráticas – na efetiva aceção da expressão, onde a liberdade é um substantivo ativo – do séc. XXI (e do séc. XX), quem se reconhece de imediato como apologista da esquerda, porventura será por defender, incondicionalmente, a diminuição das desigualdades e o aumento da justiça social, e por conseguinte quase idolatra de forma inquestionável o papel do Estado enquanto agente central de tudo e supremo de todos. Ao invés, quem se identifica perentoriamente como filiado na direita, talvez seja por confiar, sem hesitação, no primado da iniciativa privada e na utilidade da otimização dos recursos, e portanto com enorme facilidade ultraja o Estado quando este, ao interferir com a liberdade e o interesse individuais, interseta o livre funcionamento dos mercados. É deste modo que tem geralmente funcionado a perspetiva dicotómica no nível mais primário e tosco da política, ou melhor, da politiquice.

Bem diferentes, a esquerda e a direita resilientes e modernas – que, como se compreende, somente as sociedades eminentemente democráticas e civilizacionais conhecem –, devem não só sopesar os critérios acima referidos da equidade – materializada na sustentabilidade do bem comum, no reforço da responsabilidade social do Estado e na redução das desigualdades entre os cidadãos – e da eficiência – consubstanciada no respeito pelo bem individual, na promoção dos direitos e das liberdades dos cidadãos e na defesa da iniciativa privada –, como também mensurá‑los adequadamente e transmitir os custos e os benefícios (não apenas económicos) decorrentes das suas opções. Isso corresponderia, de facto, a defender conscientemente políticas de esquerda ou de direita.

A verdade democrática

A esquerda e a direita a que se tem assistido (pelo menos em Portugal) são frequentemente demagógicas e incoerentes; falta‑lhes verdade (democrática, e não dogmática). Por exemplo, situando‑se o cavalo de batalha, sobretudo no reduto da esquerda, na redução das desigualdades de rendimentos e no aumento das oportunidades, não se percebe porque ela não reconhece a importância de taxar as heranças, tanto mais que as desigualdades justificadas pelo esforço e pelo mérito individuais são muito menos iníquas (desde logo fiscalmente) do que as desigualdades herdadas do berço e nascidas do mérito alheio. A primeira forma de desigualdades de rendimentos é a Estrada da Beira, enquanto a segunda é a beira da estrada. Parecem semelhantes, mas são completamente diferentes, às vezes até em liberdade e honra.

Parece que a dita esquerda, que por excelência encabeça as fileiras quando cisma que alguém irá desfraldar a bandeira do humanismo (mas sustentado com equidade), é lamentavelmente pouco ativa e bastante seletiva quando esse humanismo não se enleia no oportunismo individual das massas. Esta última expressão parece contraditória, mas foi intencionalmente empregue, para exprimir que para a esquerda há vários níveis de humanismo. Neste aspeto particular faz lembrar a atuação recorrente de vários sindicatos, que tratam com diferente desvelo os trabalhadores que lhes estão afiliados.

Para além do mais, e sendo óbvio que o peso excessivo (e insustentável) da dívida pública nacional sacrifica acrescidamente os mais desfavorecidos e as pessoas das classes sociais mais baixas (e, como os estudos demonstram, dos seus descendentes vindouros), não se compreende o porquê de essa dita esquerda – ou centro‑esquerda, ou centro‑centro‑esquerda, ou centro‑esquerda‑esquerda – rejeitar as medidas fraturantes que passam por tributar o património e a riqueza. Não se vislumbra réstia de justificação lógica para que ela ainda não tenha interiorizado que a tributação será excecional, levada a cabo unicamente para atingir os dignos objetivos da diminuição drástica da aterradora dívida pública e da correspondente urgente libertação de recursos, e assim possibilitar, sem egoísmos nem egocentrismos, o fomento do crescimento e do emprego, o que beneficia as gerações atuais e – não menos importante – futuras.

Logo, se existisse verdade democrática e fosse óbvia a separação entre a esquerda e a direita, os partidos políticos oponentes não convergiriam, mesmo que discreta e sub‑repticiamente, no repúdio das duas medidas evocadas nos parágrafos precedentes – taxar (regularmente) a transmissão de heranças e (excecionalmente) o património e a riqueza acumuladas –, essenciais para a esperança e o amanhã nacionais. Estas medidas estão melhor fundamentadas no documento «Zerar para ressuscitar e criar oportunidades sustentáveis», de 13 de dezembro de 2013, publicado em 19 de janeiro do ano seguinte.

Ademais, no caso português, se surgisse uma ínfima preocupação com a verdade democrática, então há muito que a lei eleitoral teria sido alterada, de maneira a acomodar a multiplicidade de pensamentos políticos. A maioria do eleitorado não se satisfaz por saber se existe esquerda ou direita, e ainda menos pretende ficar refém de qualquer partido que se julga dono de uma parte (ou da totalidade) da esquerda ou da direita. Deseja tão‑só optar, e ver o resultado das suas opções, materializado em número de deputados, preferencialmente fieis às promessas proferidas pelos partidos nas campanhas eleitorais.

Em Portugal, os 230 deputados eleitos para a Assembleia da República estão atualmente divididos em seis cores partidárias – PSD, PS, BE, CDU, CDS e PAN –, façanha apenas superada logo nas primeiras eleições legislativas do pós‑25 de Abril (contendo na altura a Assembleia Constituinte sete forças políticas). Na Holanda, os 150 deputados da Câmara dos Representantes (elegível para formar Governo) refletem, após as recentes eleições, 13 forças políticas – possível porque, ao contrário do que sucede no território das quinas, nos Países Baixos há somente um círculo eleitoral para efeitos do apuramento da representação proporcional: o círculo nacional.

Como é demonstrado no texto «Abstenção lusitana – Quo vadis?», publicado em 19 e 20 de outubro de 2015, se em Portugal se transformasse a miríade de 22 círculos eleitorais num único, passaria a haver 15 partidos com assento parlamentar, o que conferiria vitalidade e dignidade a todas as vozes, independentemente do nome de batismo que os seus dirigentes (im)pusessem, e das avaliações e formulações subjetivas quanto ao índice democrático dessas vozes. Como nesse texto de outubro de 2015 se esclarece, não é preciso entrar e cair no sofisma da dicotomia entre esquerda e direita para ser totalmente possível conjugar governabilidade com diversidade política. É urgente, sim, sair de tamanho sofisma. Em democracia, a sonolência prolongada do eleitorado (que, muitas vezes com maior legitimidade sentimental ou emocional do que lógica ou racional, está preso, quer à esquerda quer à direita) conduz, a prazo, tanto ao aumento da abstenção – comprovado pelos dados –, como ao esvaziamento da democracia – o que conduzirá por sua vez à sua consequente infertilidade.

Realce‑se que a mera existência de um pluralismo parlamentar – por oposição ao bipolarismo forçado – confere profundidade democrática, mas não é condição suficiente para assegurar verdade democrática – a qual resulta, como oportunamente explanado, da combinação dos critérios da equidade e da eficiência. Importa até reconhecer que, não tendo os partidos qualquer preocupação com uma verdade de jaez tão honrado como a democrática, é inevitável que, com o aumento do número de partidos com representação parlamentar, cresça a política‑espetáculo – i.e., a politiquice –, e não a política‑utilidade.

Assim, quando a política é honesta e responsavelmente exercida, podem existir tantos «partidos da verdade» – referência explícita ao antepenúltimo parágrafo da primeira secção – quantas as forças políticas que se apresentem (ao eleitorado) em função das combinações resultantes dos diferentes pesos atribuídos à equidade e à eficiência. Face ao exposto, estando as propostas políticas solidamente baseadas na verdade democrática, nenhum partido e nenhum eleitor é mais democrático do que outro - e mesmo não havendo verdade democrática.

Deveras mais útil do que defender a esquerda ou a direita, será pugnar pela verdade, senão a ilustre verdade democrática, ao menos – retome‑se a parte final do quinto parágrafo anterior – a cívica verdade eleitoral, antecâmara da primeira. «Dos políticos exigem‑se ações equilibradas, que sejam o mais possível tecnicamente corretas e socialmente equitativas. O pior de tudo é, antes das eleições, anunciar‑se um programa hipnotizante e bem embrulhado e, após o poder estar conquistado, tomarem‑se decisões opostas às propagandeadas – indigna conquista do poder.» – vide «Liverdade», post publicado em 3 de maio de 2014. Se ao menos os cidadãos exigissem a verdade eleitoral, há muito que a esquerda e a direita poderiam ser minimamente verdadeiras (na perspetiva democrática).

Nas democracias do séc. XXI, a pergunta lacónica «Esquerda e direita?» fará sentido – ou antes: justificar‑se‑á – para quem (ainda) estiver aferrado às ideologias dogmáticas e à vontade cega que elas carregam. Quando a tónica é posta, não nas ideologias e nas demagogias, mas no pensamento e na verdade criadora que dele decorre, desaparece a maior parte do sentido que a pergunta aparenta conter. Quem pensar (na) verdade antes de tentar responder àquela pergunta, verificará que, nas sociedades do séc. XXI, a esquerda e a direita são faces da mesma moeda, una e indivisível, cujo valor será tanto maior quanto mais elas se conhecerem e respeitarem, em prol da virtuosa nação e da sua nobre e pobre gente.

Esquerda e Direita no Século XXI – Reflexões (V) (parte II/III)

Esquerda e Direita no Século XXI – Reflexões (V) (parte II/III) (31/03/2017)


Esquerda e direita no séc. XXI? – Pergunta pouco útil, ou talvez pior do que inútil





Conceitos ora rígidos, ora flexíveis

Apesar de a pergunta inscrita na epígrafe do presente documento confinar‑se ao séc. XXI – «Esquerda e direita no séc. XXI?» –, recue‑se cinco décadas, até 1967, à guisa de introdução, e pouse‑se a análise em dois espaços: Portugal e União Soviética. Para simplificar, foque‑se a atenção na liberdade de expressão, um dos basilares direitos cívicos. Aos olhos de cada um dos regimes desses dois Estados soberanos, como foi qualificado um cidadão que pugnou por tal liberdade? E o que lhe aconteceu por pretender pensar livremente?

Tanto ao cidadão português como ao soviético esteve reservada idêntica sorte: a prisão e, consoante a intensidade do anseio de liberdade, a tortura e a morte. A única diferença residiu nos rótulos colocados a esses dois fraternos utópicos da liberdade, apenas porque os regimes em apreço situavam‑se em lados diametralmente opostos – opostos em termos ideológicos, embora coincidentes quanto à violação da liberdade de expressão (e demais géneros de liberdade). Para o modelo político de Salazar, um indivíduo que sonhasse sequer com a liberdade era intitulado de comunista, ao passo que, para o modelo de Brejnev, era apodado de fascista.

Mantenha‑se o relógio parado em 1967. Para o regime de direita vigente na lusitana Metrópole, os combatentes africanos que lutavam honradamente contra as tropas portuguesas na guerra colonial e reivindicavam o (tardio) direito à autodeterminação eram considerados como sendo a encarnação do Diabo, vestido de vermelho e adornado com a foice e o martelo ao peito. Nem era necessário ser combatente e amigo do seu destino. Os seres mais pacíficos, que ao mínimo sinal de ordem e respeito imposto pelo regime salazarista ousassem pestanejar, eram diabolizados, por muito distante que fosse o ponto do Ultramar onde se encontravam.

Passadas duas décadas, em 1987, já com a independência das colónias assegurada, e estando ao rubro as guerras civis angolana e moçambicana, o binómio esquerda‑direita nos dois países lusófonos espelhava a oposição inflamada de ideias intrínsecas ao período da Guerra Fria. As ideologias que se digladiavam nessas guerras civis variavam consoante as forças beligerantes envolvidas fossem apoiadas por países do bloco soviético ou do norte‑americano.

Avançando mais duas décadas, chega‑se ao séc. XXI. Em Angola, provavelmente os mesmos «combatentes africanos que lutavam honradamente contra as tropas portuguesas na guerra colonial» – penúltimo parágrafo –, outrora acusados de serem de esquerda (pelo então dominante modelo político de direita), incriminavam os seus patrícios de serem de direita, pelo simples motivo de estes se terem atrevido a exigir o elementar mas augusto direito de liberdade de expressão. Ou seja, os conceitos de esquerda e de direita eram rígidos; e paradoxalmente relativos, pois dependiam não dos valores e das ideias que cada conceito incorporava, mas tão‑somente da relação de forças entre o poder instituído e as vozes discordantes. Era assim em 2007, e assim continua a ser em 2017, em Angola e não só.

Portanto, parece que o significado dos vocábulos «esquerda» e «direita» será – ainda que inútil e deturpadamente – inequívoco em duas situações. São elas: ou em regimes totalitários ou ditatoriais, de esquerda ou de direita; ou em regimes híbridos que, sendo democráticos pelo facto de estarem legitimados pelo plebiscito popular, tardam em conseguir compreender o significado da diferença de opiniões e da liberdade de pensamento.

No séc. XXI e nas sociedades eminentemente democráticas e civilizacionais, onde o pluralismo político não se restringe ao populista "centrão" indefinido – por outras palavras: onde não vinga o bipartidarismo exclusivo –, os conceitos de esquerda e de direita são flexíveis, e por isso difíceis de identificar a olho nu, pelo que revestem pouca (ou nenhuma) utilidade. O centro é o mesmo, pelo menos semanticamente, que o centro‑esquerda e o centro‑direita, que por sua vez não se distinguem nem do centro‑centro‑esquerda e do centro‑centro‑direita, e nem do centro‑esquerda‑esquerda e do centro‑direita‑direita. Nas outras sociedades (explicitadas no parágrafo anterior) – i.e., nas que não são democráticas, ou que sobrevivem com a cegueira patológica de a sua democracia não reconhecer o âmbito dos direitos humanos –, tais conceitos são rígidos e totalmente erróneos, pelo que a questão «Esquerda e direita no séc. XXI?» será pior do que inútil; será prejudicial, por dar azo à confusão e à contrainformação.
O anacronismo dos conceitos

Se até tempos idos os termos «esquerda» e «direita» poderiam ser claros – porque referiam‑se a realidades concretas e delimitadas –, hoje são bastante dúbios, dada a panóplia de ideias que cada um deles introduz, ao ponto de, na essência, haver raríssimas pessoas que sejam genuinamente de esquerda ou de direita, à luz da ditosa verdade democrática que hoje e no futuro aqueles termos devem carregar. Soa a provocação esta afirmação. Todavia, provocatória é a associação que costuma fazer-se – em rigor a associação tem sido incomparavelmente mais usada e abusada pela esquerda do que pela direita –, de dividir a multidão de um território em dois grupos, o dos pobres (e remediados) e o dos ricos (e privilegiados), e afetar o primeiro à esquerda e o segundo à direita.

Sempre houve quem forçasse o raciocínio de ligar a horda aos partidos da esquerda, e o escol aos da direita. Mas nunca foi assim que a esquerda e a direita funcionaram. Mais: há quase dois séculos e meio, altura em que, à luz dos registos históricos, nasceram oficialmente os antagónicos conceitos de esquerda e de direita – aquando da Revolução Francesa –, a esquerda era a fação dos republicanos, e a direita a dos monárquicos. Já não é assim.

Em seguida, a divisão passou pelo posicionamento dos cidadãos quanto ao reconhecimento da religião e do papel de Deus: os laicos eram os esquerdistas – para Karl Marx, a religião era o ópio do povo –, e os religiosos (e aderentes ao catolicismo) eram os direitistas. Já é quase nada assim. Mais tarde, a separação passou para as áreas das classes sociais e das formas de propriedade dos meios de produção: os trabalhadores (ou empregados), adeptos das nacionalizações das empresas e das coletivizações dos meios de produção, eram colocados no lado da esquerda; e os patrões (ou empregadores), partidários da iniciativa privada e da privatização dos meios de produção, eram encaminhados para o lado da direita. Já é (muito) pouco assim.

Aliás, se continuasse assim, e atenta a desproporção – inevitável, cumpre sublinhar – entre o número de pobres e o de ricos, jamais a direita chegaria a ver a luz do dia. Se continuasse assim, a esquerda há muito estaria sepultada em regimes monárquicos. Se continuasse assim, em regimes (sejam republicanos ou monárquicos) cuja prática católica não está disseminada pela maioria das pessoas, as sementes da direita seriam irremediavelmente estéreis. Se continuasse assim, inclusive em regimes monárquicos ou com forte implantação católica, a esquerda dizimaria completamente a direita, atenta a dimensão desproporcional entre os empregados e os empregadores. Ao invés, se a divisão entre a esquerda e a direita fosse traçada sob o critério da intervenção direta do Estado (enquanto agente produtivo), a esquerda teria de renascer - dado o peso (quase) negligente do setor empresarial estatal, ante o do setor privado. Enfim: há que mudar de bitola, ou melhor, substituir os conceitos por algo que incorpore lógica.

Dado que o espaço dos conceitos tem vindo a ser profundamente modificado, torna‑se difícil defini‑los. Face ao que a evolução da realidade tem oferecido, constata‑se que eles não passam geralmente de placebos para ex(er)citar a alma dos eleitoreiros, por serem o vapor que move a politiquice. Importa apurar o que, na essência, divide os cidadãos no campo político, no pressuposto de que estes sabem conviver em democracia – sublinhe‑se que é fulcral ter sempre presente a condição de existência de regimes eminentemente democráticos e civilizacionais, o alfa e o ómega para as abordagens reformuladas (de esquerda e de direita) revestirem algum sentido, o sentido sustentável.

Quando o bálsamo da praxis democrática se impõe, a esquerda e a direita entremeiam‑se e tornam‑se quase impercetíveis – a segunda frase do último parágrafo da secção anterior, que no fundo acaba por definir o "centrão", traduz um exemplo caricato do que pode ser a esquerda (ou a direita) num quadro de bipolarismo monopolista ou oligopolista. Quando o bálsamo é natural – o da verdade democrática –, esquerda e direita são os polos da mesma corrente energética. Elas reconhecem, mas não assumem, que são o hardware e o software da harmonia democrática, sem a qual a máquina social entra em disfunção. São como dois amantes inseparáveis, e de vida flexível, que se encontram na calada da noite. A vida rígida, igualmente assente em conceitos rígidos, é para diferentes tipos de sociedades – a anos‑luz da verdade democrática –, em desuso ou em vias de extinção no séc. XXI.

Esquerda e Direita no Século XXI – Reflexões (V) (parte I/III)

Esquerda e Direita no Século XXI – Reflexões (V) (parte I/III) (31/03/2017)


Esquerda e direita no séc. XXI? – Pergunta pouco útil, ou talvez pior do que inútil (#)


Conclusões e outras considerações

Inicie‑se o documento pelo final – as conclusões (acrescidas de outras considerações) –, com o intuito de tentar diminuir as reações negativas que o seu (sub)título poderá causar. Esta secção, servida como acepipe mas preparada para acabar em sobremesa, seria suficiente para abordar o assunto em presença, até porque representa cerca de 1/4 do total do texto. Porém, há momentos em que, justificadamente e em diversas circunstâncias, impõe‑se substrato adicional. A partir da segunda secção – posts referentes às partes II/III e III/III – entrar‑se‑á no núcleo do substrato.

Nos regimes totalitários ou ditatoriais, bem como nos regimes híbridos, esquerda e direita são palavras rígidas, atendendo a que o epicentro da política é o poder da autoridade e da força. Ao invés, nos regimes eminentemente democráticos e civilizacionais, esquerda e direita são palavras flexíveis, visto que o epicentro da política é o poder da verdade e da razão. Encontrando‑se nos antípodas esses dois grupos de regimes, é aceitável admitir que os dois tipos de poder que lhes subjazem estejam igualmente afastados à mesma distância.

Nos regimes totalitários ou ditatoriais, e nos regimes híbridos, o poder da autoridade e da força é autoexplicativo. Isso não sucede com o poder da verdade e da razão, aplicável aos regimes eminentemente democráticos e civilizacionais. De qualquer modo, a última secção – «A verdade democrática» – aflorará esse segundo tipo de poder. Ainda assim, e porque subsistirão dúvidas acerca do alcance das expressões – na prática sinónimas – «poder da verdade e da razão» e «verdade democrática», pode trazer‑se à colação o documento septipartido «Da semente da verdade ao fruto da liverdade», publicado entre 25 de abril e 1 de maio de 2016. A política sem verdade – repita‑se: verdade democrática (e não verdade dogmática) – cria metástases, e transforma‑se gradualmente em politiquice.

Em democracia, o diálogo entre a esquerda e a direita sempre se manteve – se com ou sem utilidade, não importa por ora. E não é preciso dispor de poderes premonitórios para afirmar que eternamente se manterá, no séc. XXI e em qualquer outro século. É certo que a esquerda foi e será mais progressista, e a direita foi e será mais conservadora, o que aliás reveste um grande contributo (de uma e de outra) para o amadurecimento e o desenvolvimento das sociedades. Porém, impõe‑se a dúvida sobre a função prática da esquerda e da direita nos dias de hoje. Os sonhos coletivos são a especialidade da esquerda; os cifrões individuais são a predileção da direita.

O problema é que assiste‑se regularmente a um diálogo de surdos, porquanto estão presentes dois vícios: a esquerda não quer ou não sabe fazer contas que mensurem corretamente o impacto financeiro das suas ideias tendentes à promoção do bem coletivo; e a direita não tem ideias para promover o bem coletivo, mas tem permanente vontade e capacidade para acertar nas contas em seu proveito, e para ocultar que as soluções por si preconizadas são bastante melhores para o indivíduo do que para o coletivo. Tais vícios extravasam a atuação dos partidos políticos; abrangem a hipocrisia crónica vincada em diversas associações sindicais e patronais.

A esquerda tem feito gáudio em autoclassificar‑se o baluarte dos pobres. Não constituirá exagero afirmar que, ao início, a esquerda tinha um pé nos pobres e o outro nos republicanos. Depois ficou com um pé nos republicanos e o outro nos agnósticos. Seguidamente manteve um pé nos agnósticos e o outro nos trabalhadores. E por fim almejou fechar o círculo, instalando um pé nos trabalhadores e o outro novamente nos pobres.

A anterior imagem da passagem de pé em pé serve unicamente para ilustrar a evolução do conceito «esquerda» – consoante as circunstâncias e os interesses em cada momento –, e portanto não deve ser entendida como uma tentativa de criar segmentos forçados e artificiais da realidade, como se os conjuntos dos pobres, dos republicanos, dos agnósticos e dos trabalhadores fossem entre si disjuntos. Análoga imagem pode ser esboçada para a evolução do conceito «direita»: terá passado dos ricos para os monárquicos, dos monárquicos para os crentes, dos crentes para os patrões, e dos patrões para os ricos.

A tradicional dicotomia esquerda‑direita aplicar‑se‑á num mundo a duas dimensões e pintado exclusivamente com duas cores, como tem sucedido em inúmeras ocasiões ao longo do tempo e em várias geografias. Nesse mundo restrito, a esquerda e a direita alimentam‑se de incoerência – incoerência de argumentos frequentemente falaciosos, como os três parágrafos precedentes indiciam. No jogo político de diferenças de pontos de vista, onde os cidadãos satisfazem‑se plenamente com a alternativa dual – cingida ao claro e ao escuro, ou ao preto e ao branco – que lhes é oferecida e permitida, o papel de árbitro é autoritariamente assumido pela demagogia.

Assim, resta concluir que a tradicional dicotomia esquerda‑direita perde o sentido num mundo pluridimensional, como sucede em tantos países, onde os parlamentos nacionais são representados por uma paleta de cores para muitos gostos, consoante as opções manifestadas pelo eleitorado e respeitadas em conformidade pela lei eleitoral. Nesses países, o jogo político de diferenças de pontos de vista é regulado sobriamente não pela demagogia partidária, mas antes pela verdade democrática.

Quando uma sociedade comunga sãmente com a verdade democrática, a dita esquerda consegue ser coerente consigo própria, e o mesmo sucede com a direita, pois a coerência é inerente à verdade democrática. Mais: as duas estão fadadas uma para a outra, em prol do bem coletivo (ou comum) citado no quinto parágrafo, pelo que a esquerda não pode advogar soluções baseadas na equidade sem ter em conta o critério básico da eficiência, nem a direita pode defender soluções orientadas pela eficiência sem acautelar o critério fundamental da equidade. Trata‑se de um problema de otimização, em que a esquerda procura maximizar a equidade, condicionada à restrição da eficiência, e a direita tenta maximizar a eficiência, sujeita à restrição da equidade.

Finalizando: em sociedades exigentes do séc. XXI – associadas a regimes eminentemente democráticos e civilizacionais –, os partidos da esquerda (dando primazia à equidade) ou da direita (concedendo prioridade à eficiência) que se prezem têm impreterivelmente de transportar uma característica comum: serem, acima de tudo, partidos da verdade. Os partidos que usam demagogicamente as meias verdades ou as mentiras não exercem política, mas sim politiquice. E os indivíduos seguidores desses partidos não são bem eleitores; são mais eleitoreiros – o mencionado documento «Da semente da verdade ao fruto da liverdade» explicita estas ideias incomuns.

Logo, parece que a insistência em continuar a resumir o debate político ao confronto anacrónico (e por vezes decadente) entre esquerda e direita – quando vazias de verdade – não vai além do mero objetivo de servir de passatempo, para distração da população. Objetivo fútil, dado que um número crescente de eleitores já tem suficiente maturidade democrática para repudiar o entretenimento político previsível e inútil, e para reclamar a salientada verdade democrática. Esclareça‑se esta questão, para evitar equívocos interpretativos.

Na arena política – ou politiqueira, para ser mais rigoroso – em que os cidadãos aceitam ou rejeitam as opções tomadas não pela sua pertinência e viabilidade, mas tão‑só em função dos partidos que as tomam, é normal que a verdade democrática viva órfã e não singre. Não é invulgar que, no terreno dominado pelo bipartidarismo, uma determinada medida seja ajuizada de positiva ou de negativa pelo mesmo partido consoante, respetivamente, este esteja no poder ou na oposição. Daí a previsibilidade e a inutilidade do bipartidarismo habitual (ou do "centrão" hegemónico), por oposição à verdade democrática reclamada por um número crescente de eleitores – portanto, não eleitoreiros.


(#) Cumpre agradecer o valioso contributo fornecido, sob a forma de espírito crítico, pela Helena Matilde Jacques Feliciano. O acolhimento das suas principais dúvidas e a resposta a algumas das suas objeções traduziram-se na melhoria do texto, tendo a redação final ficado – se bem que (44%) mais extensa – incomparavelmente bastante mais clara e fundamentada. No entanto, do acolhimento e da resposta atrás mencionados, não pode concluir-se que a Helena se identifique com o teor do documento.

Os burros e as opiniões

Os burros e as opiniões (25/11/2015)

 


Enquanto o conhecimento funda-se em factos inequívocos, a opinião alimenta-se de estados anímicos. O conhecimento reveste caráter lógico ou objetivo; ao invés, a opinião comporta jaez emotivo ou subjetivo. Daí decorre que só os burros não mudam de opinião, porquanto a mudança de opinião é inerente ao Homem livre e despido de preconceitos, mudança que depende da perceção da realidade ou da vontade de a alterar.

O campo político deve ser um excelente exemplo para as escolhas mutantes, por parte tanto dos agentes decisores como dos cidadãos eleitores. A circunstância de uma pessoa depositar o seu voto num determinado partido não significa que ela se reveja integral ou mesmo maioritariamente nesse partido. Existiram muitos indivíduos que votaram por exemplo no Bloco de Esquerda ou na coligação entre o Partido Comunista Português e o Partido Ecologista “Os Verdes” e todavia não são radicais quanto à desvinculação da NATO, da União Europeia ou do Euro, nem defendem a nacionalização da banca.

Inúmeros portugueses optaram por depositar confiança nos bloquistas ou na coligação entre comunistas e ecologistas não pelo alinhamento a posições tendencialmente leoninas mas pela concordância com ideias exequíveis que favorecem a coesão social. O atual Governo socialista – apoiado pelas forças à sua esquerda – constitui um ótimo desafio para promover e adotar, dum modo diferente e inovador, medidas que compatibilizem os princípios da eficiência e da equidade que qualquer política deve incorporar.

As forças da ala parlamentar à esquerda dos socialistas têm de aproveitar o momento – concedido pela azia do Presidente da República, sumidade que, a contragosto, acabou por (ter de) mudar de opinião – para provar que afinal é possível adicionar à política lusitana um agradável (rectius: o desejado) condimento harmonioso, o qual tem estado sistematicamente arredado do hemiciclo. O condimento não advém de convicções extremistas e fraturantes da sociedade portuguesa mas sim de opções orientadas pelos critérios do equilíbrio e da sensatez que o grosso dos portugueses, implícita ou explicitamente, assume e advoga.

Se este Governo não dilapidar a confiança externa, honrando os compromissos internacionais firmados pela Nação, e no domínio interno impuser sinais assertivos e típicos duma trajetória que coadune competitividade com justiça social, então será provavelmente o melhor executivo – ou, sem exagero, um dos mais saudosos, se se preferir – da III República. A afirmação nacional e a consolidação democrática atingem-se (também) com políticas simples e eficazes.

Uma das políticas, patrocinada sobretudo pelos partidos da esquerda vincada, passa por elevar ao plano supranacional a problemática da insustentabilidade da dívida externa, de que Portugal é um dos países com doença crónica. A decisão de ultrapassar tal problemática somente com a prata da casa, nomeadamente nos termos explicitados no post «Zerar para ressuscitar e criar oportunidades sustentáveis», publicado em 19/01/2014, recolherá a oposição de pelo menos 99,99% dos cidadãos. (Preocupante unanimidade, registe-se.)

Outras políticas passam por singrar, de uma vez por todas, a figura da criminalização do enriquecimento injustificado – ainda que esta figura não esteja alinhada com os ângulos naturais ou adaptados do Partido Socialista, do Partido Social Democrata e do Centro Democrático Social –; e por alocar mais equitativamente os custos da (continuada e inevitável) austeridade, de modo o articulá-la o melhor possível com a dignidade individual das pessoas financeiramente mais vulneráveis. Como se constata, trata-se de políticas que nada prejudicam a despesa pública.

As democracias crescem e desenvolvem-se com a mudança racional de opiniões por parte da classe política e do eleitorado. As verdadeiras democracias são exigentes, exigência apenas alcançada pela reformulação de pontos de vista em nome do bem comum, ou seja, em prol da maioria de que o País é composto. Depositar a cruz sempre num determinado símbolo causa vícios, nefastos desde logo à própria democracia. Os cidadãos (independentes dos partidos) que votam sistematicamente da mesma maneira, assim como os decisores incapazes de se desinçar das ideias desligadas do tempo real, revelam sinais de coerência ou de burrice?

Por um partido não conseguir vingar a sua opinião em certos domínios não significa que adultere a matriz ideológica que o conota; significa antes que coloca na dianteira os interesses da Nação. Em função das opções e das concertações tomadas, ver-se-á quais os partidos, ou melhor, quais os políticos e os eleitores, do poder ou da oposição, que (des)carregam características jumentas.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Combate à corrupção – Coragem somente em comunistas e bloquistas

Combate à corrupção – Coragem somente em comunistas e bloquistas (30/08/2015)




A corrupção e a democracia

Ao invés do que o título do post indicia, este texto não visa ser uma apologia das ideias políticas dos comunistas ou bloquistas. Como se confirmará, o título pretende tão-só refletir objetivamente o statu quo. Se bem que não se conheçam, em qualquer país, ideologias que constituam o arquétipo da probidade, constata-se que em Portugal são anormalmente desproporcionais os cinco dedos da mão da liberdade com assento parlamentar.

A corrupção está para a democracia do mesmo modo que a escravidão está para a civilização. Não se resumem a assuntos do foro ideológico; nada se prendem com opções políticas nem com questões culturais. Numa sociedade civilizada é inaceitável a escravidão, de igual forma que numa sociedade democrática a corrupção deve ser banida. Não há meio termo. Ora, sendo a corrupção uma das maiores enfermidades que ofende a democracia, na prática tem merecido complacência desdourada por parte dos partidos do arco da governação, evidência abordada na secção seguinte.

Para os 136 territórios em que existe simultaneamente informação relativa ao desvio dos fundos públicos e à influência política na justiça – variáveis qualitativas que integram o índice de competitividade global calculado pelo Fórum Económico Mundial –, e outrossim ao estádio de desenvolvimento democrático – disponibilizado por The Economist –, regista-se uma relação positiva entre, por um lado, este estádio e, por outro, a boa utilização dos fundos públicos (0,404) e a independência do sistema judicial (0,498).

Conquanto tais variáveis qualitativas sejam algo subjetivas – por serem obtidas mediante inquéritos de opinião dirigidos aos gestores executivos de cada país (prima facie cidadãos bem esclarecidos) –, não deixam de ser sintomáticas do patamar em que as nações se encontram em termos de corrupção, isonomia e transparência. Trata-se de cidadãos que não se inebriam com brisas nublosas, promessas ocas ou programas descolados. Verifica-se uma forte correlação (0,907) entre esses dois indicadores da dimensão da corrupção: o desvio dos fundos públicos e a influência política na justiça.

A corrupção (ou a ausência dela) não está associada à esquerda ou à direita – o que signifique esta dicotomia –, mas sim e unicamente à seguinte circunstância: o exercício do poder. Basta ver o regime político antidemocrático que tem vigorado no maior Estado deste planeta – a cleptocracia russa – para comprovar o que se acaba de escrever. A pústula está enraizada em vários países de diferentes continentes, cujos povos anseiam a concessão da alforria. Antros onde se falam diversas línguas, incluindo a portuguesa, aquém e além-mar.

A corrupção e a vontade dos partidos

Quer para os já enrugados partidos da alternância governamental – Partido Socialista (PS) e Partido Social Democrata (PSD) –, quer para o figurante partido chamado quando aqueles dois não conseguem, pelo próprio pé, enfiar-se no sapato do poder – Centro Democrático Social (CDS) –, a chaga da corrupção continua a não ter suficiente mérito para ser atacada de frente, como que se consistisse num tabu. Entre as cinco principais organizações, aparentemente apenas a bicípite força corajosa – composta pelo decano Partido Comunista Português (PCP) e pelo émulo Bloco de Esquerda (BE), ora anacrónicos ora inovadores – exala uma intenção inequívoca de debelar tal chaga.

Conforme não se admite o cenário em que os acomodados arquirrivais dominadores do poder, PS e PSD, parlamentam um com o outro quanto à omissão de medidas combativas da corrupção, exclui-se a hipótese de os intrépidos bolchevistas viscerais, PCP e BE, estarem amaciados entre si na luta contra a corrupção. Em abono da verdade, cumpre sublinhar que os dois últimos são os que têm entrado no âmago da guerra declarada à maleita. Sem máscaras e sem cores; munidos somente de vontade. Eis a cáustica realidade.


A propósito da mão da liberdade, traga-se à colação as ideias acerca da corrupção apontadas nas legislativas de 2011 por cada um dos cinco dedos – quadro da secção D.4 do post «Ou abstenção crescente ou prospetos eleitorais simplificados (parte I/III)», de 12 de fevereiro p.p. Dado que estes prospetos são uma miragem senão mesmo uma utopia, proceda-se a um exercício semelhante ao constante do citado post, baseado nos programas ou manifestos eleitorais relativos ao sufrágio das próximas legislativas de 4 de outubro. O quadro seguinte resume as medidas expostas por cada partido, inscritas nos programas e manifestos elaborados para efeitos das legislativas de 2011 e 2015.

Em 2011, o PS era a organização política que transmitia menos ânimo para enfrentar a corrupção. Estranhamente a situação não se alterou em 2015. No poder ou na oposição, os democratas socialistas, dos eméritos aos ignotos, ou ingenuamente não veem o problema ou ardilosamente não querem vê-lo, enganando-se a si próprios e sobretudo ludibriando o eleitorado. Quanto ao consentimento implícito da corrupção, o cenário é praticamente igual no tocante ao PSD e ao CDS. Com um ninho de pseudo-ideias ou ideias ténues, lamentavelmente tão opacas como as do PS, os partidos da coligação continuam a tentar fazer uma pega de cernelha ao vil problema.

Deveras pouco para quem tanto altivamente apregoa o futuro e almeja pela elevação democrática. Para as legislativas deste ano, a palavra «futuro» foi citada com alarde 26 vezes no programa da coligação entre o PSD e o CDS, e 27 no do PS. O número de referências foi 14 e cinco, respetivamente no programa do PCP e no manifesto do BE. Muitos parecem ignorar que com a corrupção é certo um futuro atrofiado – ou «anquilosado», para exumar o termo empregue pelo PSD com o objetivo de criticar os governos civis, mas certamente de uso mais apropriado se se pretendesse atacar sem tréguas a corrupção.

A corrupção e o desejo dos eleitores

Com base na importância que os cidadãos atribuem ao confronto com a corrupção – na aceção lata, portanto sob todas as maneiras na qual se manifesta –, sugere-se que os eleitores comparem as ideias partidárias em cada momento, i.e., 2011 e 2015, e assinalem as medidas concretas propostas com a pontuação e a sinalética que entendam apropriadas. Sublinhe-se que o polvo alimenta-se e camufla-se de diversas formas, de onde ser imprescindível considerar-se ilícito o enriquecimento injustificado, independentemente da sua origem – por exemplo o suborno (ou seja, a corrupção no sentido estrito da palavra), o peculato ou a fraude fiscal.

Recorde-se, a propósito, a parte final do parágrafo 35 do post «Ou abstenção crescente ou prospetos eleitorais simplificados (parte II/III)», de 19 de fevereiro p.p.: «(…) como tal enriquecimento é alimentado por vários afluentes – um dos quais o da corrupção [leia-se: suborno] –, se na foz do rio principal se apertar a malha, então a corrupção acabará mais cedo ou mais tarde por ser detetada e apanhada quando tentar desaguar no mar, mesmo que provenha de muito longe e esteja disfarçada há muito tempo.» Quem invoca a criminalização do enriquecimento injustificado acerta na muche; tem celsa coragem para vencer a contenda travada contra a corrupção.

Assim, ante a relação umbilical entre corrupção e democracia, é fácil concluir que, em Portugal, são apenas o PCP e o BE que pugnam pela batalha contra a corrupção, e naturalmente irradiam o desejo ardente que o País se desince da promiscuidade entre a política e a justiça. Os três partidos que têm partilhado o poder central – PS, PSD e CDS – revelam-se avessos ou indiferentes nessas matérias. Esquisito modo de praticar a democracia. Tríplice que redunda em encabeçar a morte da esperança que qualquer democracia, por mais dócil que seja, deveria frutuosamente multiplicar.

Note-se que daí –  importa realçar – não se pode inferir que as pessoas ideologicamente mais esquerdistas (e por defeito enquadradas com o PCP e o BE) sejam sempre crismadas de honestas nem que todos os indivíduos com diferente ideologia sejam apodados de corruptos. Afaste-se a candura de fazer essa generalização, e de extrapolar a situação portuguesa para as demais nações. Como se salientou ao início, a corrupção não é o reflexo dum malsão pensamento político ou cultural. Pelo Mundo uma miríade de casos de corrupção foram cimentados – e quantos ainda permanecem – por grupos de diversificado jaez, desde as forças mais progressistas ou mesmo revolucionárias às forças mais conservadoras ou até reacionárias.

Dado que a construção da democracia é um processo evolutivo e complexo, hoje em dia Portugal encontra-se numa fase em que o combate firme à corrupção é a válvula que falta limpar para que laborem normalmente os motores da democracia sustentável, em geral, e do investimento eficiente promotor de crescimento e emprego, em especial. Para bem do ensinamento dos patrícios de hoje e sobretudo do amadurecimento dos portugueses vindouros.

Aqui chegados, não admira por isso que haja democratas não-alinhados a inúmeras ideias do PCP e do BE ou mesmo antagonistas delas em variados domínios (desde logo no campo económico) que, não em vão mas forçados ante as convicções derreadas, e coagidos por um sentimento patriótico de anticorrupção, venham a bandear-se discernidamente para esses partidos por uma questão de voto útil. O voto útil para a credibilidade e vitalidade da democracia, e não o voto útil sob a tradicional mas deformada perspetiva, assaz mais cleptocrata do que democrata, com que o eleitorado tem sido cevado.


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