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terça-feira, 28 de julho de 2020

Humildade para entender o futuro da democracia (Documento completo)

David Dinis(1)

A. Das ditaduras consolidadas às democracias desenvolvidas


Cada ordenamento político tem o seu ADN, desde logo porque da mera crítica ao espírito crítico dista uma vastidão. A crítica espontânea e não fundamentada é fácil, e por isso nada acrescenta. A crítica que, embora não seja tão linear como a anterior, aborda sofisticamente a realidade – uma parte da verdade é analisada de maneira séria e a outra é omitida ou tratada de modo deturpado – também não vale muito.
O futuro exige ser livre e aberto. Ora, a crítica espontânea e não fundamentada engana‑o, enquanto a sofística o encana. O futuro obtém‑se essencialmente com espírito crítico, o símbolo do auge democrático. É desmesuradamente mais difícil do que a crítica, pois requer trabalho e organização. No fundo ele consiste na crítica construtiva, resultante da complexa articulação entre crítica, verdade, razão e sensatez.
Fazendo uma viagem rápida à história mundial, podemos concluir que, apesar de a crítica constituir uma das características humanas a valorizar – porque vai evoluindo e tornando‑se útil para a sociedade –, não releva devidamente para a qualidade democrática. Somente com apreciações proporcionadas, apoiadas na equidade e na eficiência, é possível alcançar tal qualidade. No quadro seguinte atrevo‑me a resumir simplificadamente uma abordagem acerca das combinações entre a crítica e o espírito crítico.




Se houvesse um democrómetro para mensurar a densidade democrática, certamente registaria um valor significativo quando a crítica e o juízo crítico atingissem índices bastante elevados, situação que ocorre apenas em modelos democráticos maduros – estádio (D). Nas democracias desenvolvidas o hiato entre os resultados da crítica e da análise crítica é reduzido. O mesmo sucede nos regimes totalitários, independentemente da sua natureza – estádio (A) –, só que nestes tanto a crítica como a análise crítica assumem níveis deveras diminutos. As ditaduras consolidadas são um buraco negro onde o temor impede sonhos e pensamentos, castrando qualquer opinião não coincidente com a doutrina instalada, desde a crítica amarga e ignóbil ao julgamento crítico exemplarmente fundamentado.
Os estádios (A) e (D) são os polos políticos. A sequência (A)‑(B)‑(C)‑(D) refletirá o sentido de evolução dos sistemas onde prevalece o respeito pela lei e pela ordem. Contudo, ao longo daquela evolução este respeito nem sempre existe. Por outras palavras: durante o desenvolvimento político não é rara a ocorrência de momentos onde a violação da lei e da ordem, o caos e a anarquia alastram e vulgarizam‑se – embora não seja expectável que surjam nos estádios (A) e (D), ou seja, acontecerão principalmente em ditaduras inseguras ou em democracias frágeis.
Na passagem do estádio (B) para o (C) há ganhos e perdas: ganha‑se no volume da crítica e perde‑se na respetiva qualidade. Quando a crítica não sustentada se banaliza perde credibilidade. É vulgar, pois a democracia traz a voz do povo para a rua; todos desabafam, tantas vezes sem razão. Entre esses dois estádios irrompe um vulcão infinito de sonhos acumulados. São estes sonhos (nascidos nas ditaduras decadentes) que, ao expandirem‑se, transformam o embrião da democracia num ser autónomo.

B. Espanto, desencanto e encanto


Qualquer democracia nasce de um processo metamórfico que procura elevar a utopia ao patamar da verdade. Depois de um período em que predomina o espanto, as democracias assistem a ciclos alternados de desencanto e de encanto. Enquanto a fase do espanto é emotiva, as do desencanto e do encanto revestem um caráter tendencialmente racional. Os cidadãos, individual ou coletivamente, atribuem ao desencanto e ao encanto a importância que melhor entenderem. O teor das sucessivas manifestações democráticas ocorridas nessas duas últimas fases, bem como a duração e a intensidade das mesmas, permitem caracterizar e distinguir as democracias.
A primeira etapa para a construção democrática – o período do espanto – é bela e transcende, de uma forma infantil – na aceção inocente da expressão –, a própria lógica. Assiste‑se a uma espécie de processo experimental em que as palavras dos poetas descodificam‑se e superiorizam‑se face aos argumentos dos advogados; as melodias dos músicos até então votadas ao silêncio ecoam e impõem‑se perante as análises dos economistas; as obras erguidas pelos escultores livram‑se das algemas e dos grilhões e suplantam os projetos dos engenheiros. Enfim, o mundo velho controlado por ilustres políticos, nomeadamente advogados, economistas e engenheiros encartados, fica totalmente diferente; não porque as coordenadas tenham sido reinventadas mas sim porque os sentidos do Homem livre rompem o lazarento véu do passado.
Durante o posterior desencanto impera a crítica – numas ocasiões – e o espírito crítico – noutras. É um momento de ebulição onde salta a vontade – desde que honesta e bem‑interessada, que é a única meritória – de mudar e, acima disso, de melhorar. Melhorar o bem de todos, pois se as melhorias forem boas para o conjunto, necessariamente serão para a esmagadora parte dos elementos que o compõem. O oposto não é verdade, ou seja, o bem de um punhado não significa forçosamente o bem de todos. Se o próprio Adam Smith do séc. XVIII, criador da tese da mão invisível, assistisse à civilização contemporânea, compreenderia com facilidade que as leis naturais da Física não são transponíveis para os sistemas socioeconómicos como entendera. Ele e o tenaz oponente Karl Marx do séc. XIX estariam equidistantes da realidade, ainda que situando‑se em posições antípodas.
As democracias que seguem o caminho da generalizada crítica irrefletida estão mais vulneráveis ao totalitarismo popular. Não há dúvida que, por emanarem do voto soberano do povo, são democracias tão legítimas como as restantes. No entanto não se pode afirmar que estejam em níveis semelhantes aos das democracias desenvolvidas, pois estas últimas firmam‑se em eleitores esclarecidos e lúcidos, isto é, em opiniões públicas informadas e cientes das efetivas consequências – imediatas e mediatas – das suas decisões. Daí a referência ao ADN com que se iniciou este documento.
Todas as democracias têm defeitos, inclusive as consideradas sólidas que, para a maioria das pessoas, representam a verticalidade máxima da organização social e política atingível pela inteligência humana. Quando os defeitos forem eliminados, conhecer‑se‑á outra área que extravasa a democracia. Entrar‑se‑á no reino da utopia, e portanto – dado que esta é insustentável e como tal serve de lastro para as atrocidades antidemocráticas – na imposição do autoritarismo e na cerceadura do pensamento.
Cada cidadão consegue usar corretamente o seu apurado juízo crítico e identificar um rol de imperfeições em qualquer democracia. É normal e benéfico. Tanto é benéfico para o cidadão como para a democracia – porque a fundamentação crítica (e não a crítica em si mesma) desenvolve o raciocínio e contribui para o desenvolvimento da sociedade.
Depois do desencanto, o encanto vem. Os cidadãos são capazes de conviver com as decisões mal tomadas, pois percebem que a democracia também contém erros. Acabam por agradecer ao sistema que lhes permite manifestar publicamente a sua opinião. Na fase do encanto examinam‑se as virtudes democráticas e passa‑se pelo humilde pensamento de comparar a realidade (imperfeita) com a vida (hedionda) se não houvesse democracia. Os sujeitos acusadores do regime têm capacidade para aferir que sem a luz da democracia a sociedade seria doentia e estéril.

C. A nossa maravilhosa geringonça democrática


Aterrando no passado da democracia lusitana, podemos associar a etapa do espanto ao período dominado pelos excessos de criança – quanta pena temos dos tempos de petiz em que quase nada nos era proibido – e terminado quando concluímos que a utopia era impossível alcançar, por distintos e supremos que fossem os sonhos e as ideias. A repreensão e o açoite surgiram cedo, em 1978 e 1983, com os programas financeiros do Fundo Monetário Internacional. Seguiram‑se os ciclos de contínuos (des)encantos.
A democracia em que vivemos é maravilhosa. Maravilhosa não por ser imaculada – até porque nenhuma compreende tal nível de perfeição, embora umas sejam mais pecadoras do que outras – mas sim porque é a nossa – o bastante para ter uma característica especial – e porque houve tantos milhares de patriotas que lutaram e padeceram por ela. Há a relembrar que tais ousados amigos voluntários da Pátria despiram‑se da cobardia e da resignação fáceis, pondo à disposição do próximo tudo o que de melhor tinham: a vontade e a força de transpor o genuíno desejo de liberdade política.
Se efetuarmos uma simples autocrítica, identificamos matérias em que objetivamente a lusa democracia se destaca quer pelo lado positivo, quer pelo negativo. Saindo por breves instantes da discrição, devemos reconhecer a área da saúde como um aspeto onde a democracia portuguesa tem sido literalmente maravilhosa. Cumpre enaltecer a demonstração civilizacional e humanista do Serviço Nacional de Saúde (independentemente das falhas que subsistem).
Ao invés, salienta‑se a má lição crónica que a área da justiça tem dado à democracia (não obstante o esforço por vezes hercúleo para tentar inverter os vícios do sistema judicial). A indisfarçável tendência de justiça dicotómica para pobres e ricos (conforme o dinheiro disponível para comprarem a sua defesa) e os impunes crimes financeiros de lesa‑pátria são dois exemplos. Portugal não consegue livrar‑se do subdesenvolvimento judicial enquanto o vulgar cidadão não entender que: o ato de lesar o Estado prejudica‑o sobremaneira, ao contrário do que lhe parece; a injustiça não é muito pior do que a justiça tardia; e um sistema judicial eficaz e célere é uma variável explicativa fundamental para a criação de riqueza e emprego.
Para viver em democracia não chega pintar com tinta transparente as grades da liberdade de pensamento. Para que a democracia não seja uma geringonça mas sim uma máquina credível é imprescindível que a população sinta o peso crescente da responsabilidade. A qualidade da democracia afere‑se nomeadamente pelo modo como se exige a consolidação da efetiva liberdade de oportunidades – sem a qual o princípio democrático do respeito pelo próximo é oco, opaco e cínico – e se usa a liberdade de expressão.
A exigência – enquanto atitude cidadã – manifestada pelos eleitores é essencial para a democracia avançar. Todavia a crítica e a vontade manifestadas pelo povo não fazem progredir a sociedade se a maioria optar pelo lado oposto ao que a razão e o bom‑senso preconizam. A meu ver é essencialmente isto que distingue as democracias; explica o motivo por que há sociedades onde os avanços são regulares e outras em que os avanços são frequentemente interrompidos por estagnações ou até retrocessos. A consistência democrática compadece‑se com perenes juízos críticos, e não com repentinos – mesmo que efémeros – estados de desencanto à base da crítica impolida.
Com efeito, a democracia terá tanto mais qualidade quanto melhor a concertação nas fases de encanto e sobretudo de desencanto. A união de esforços na etapa do desencanto é uma condição necessária mas não suficiente para empreender a democracia; é preciso que haja abundante audácia e sustentação crítica para tapar as adversidades do sistema. Na situação específica destes quase 40 anos de experiência democrática, parece que um dos grandes problemas é que cada português usufrui da democracia amadoramente e à sua maneira – e não de uma forma coletiva e articulada com os restantes. É legítimo, bem sei. Tão legítimo como natural é o resultado do individualismo e da desarticulação, que está patente às pessoas que não são cegas de espírito.
Quem pensa que a democracia se restringe à promoção da pluralidade de opiniões, ou é ingénuo ou é ardiloso. Há portanto que levantar o espírito crítico e pô‑lo em marcha, ao serviço da Pátria. Para que a democracia se fortaleça e navegue em velocidade de cruzeiro é necessário que conjugue adequadamente o voto e a liberdade de pensamento com o conhecimento e a responsabilidade.

D. A idade adulta do 25 de Abril


Para o grosso da população é tentador proferir incondicionalmente as máximas «Viva o 25 de Abril!» ou «25 de Abril sempre, fascismo nunca mais.» Embora a custo, não atuo desse modo, pois entendo que as frequentes referências ao 25 de Abril tornaram‑se anacrónicas. Os acontecimentos que rodearam a primavera de 1974 constituem um romantismo sublime mas já passaram, e por isso têm um lugar reservado na História e na RTP Memória. O 25 de Abril deu o mote; tivemos quatro décadas para o desenvolver.
Recordar é viver; mas viver requer muitíssimo mais. Mesmo que sejamos idólatras, convém que selecionemos os alvos e separemos as águas, sob pena de sermos profundamente injustos com quem merece. Logo, dou vivas ao gentio anónimo que concedeu toda a sua energia e sabedoria ao nascimento da democracia, e em troca eu desprezo os comandantes da democracia – com destaque para os obreiros da sua gestação – que ainda não ensinaram aos eleitores como distinguir a crítica do espírito crítico.
Concretizo a separação dos elogios das reprovações, a qual serve simultaneamente para manifestar o meu entendimento acerca do que deve ser o futuro da nossa democracia. Assim, vivam os que sucumbiram pela liberdade e os que, havendo sobrevivido, souberam sair em tempo oportuno, nobre e desinteressadamente, da fase do encanto. Abaixo os que, tendo inclusivamente lutado pela liberdade e pago com o corpo e a alma, aproveitaram‑se dela em proveito próprio, como que a Nação lhes fosse devedora pelo contributo que deram aquando da batalha coletiva travada contra a ditadura.
Abaixo quem se resigna ante o corporativismo e os negócios – perpetrados com a aceitação e o compadrio, ou a irresponsabilidade e a incompetência dos decisores estatais – que, à custa dos contribuintes, beneficiam uma franja da população. Vivam os que usam a força dos argumentos para exigir que o Estado trate os seus cidadãos como seres iguais, e não deserde nem lapide o futuro da gente banal e ignota em prol de um punhado de almas que teve a sorte de ser reconhecida pela sua inteligência emocional de saber levar a água ao seu moinho.
Abaixo a amorfia de coerência, que hipoteca a esperança e troca o futuro maciço pela vã ilusão do presente. Abaixo a descaracterização de pensamento, que fomenta a formulação de críticas sem ter o mínimo cuidado de descobrir as soluções, e que espalha a ignorância e ateia a ganância. Viva quem está afastado dos estereótipos (de esquerda, direita ou centro) e munido de perspicácia bastante para identificar adequadamente o rumo do bem comum. Viva o lote do povo educado e consciente, que não se fica pela rama nos comentários proferidos.
Abaixo os democratas – cujo raciocínio, por maior que seja, é diminuto ante a dimensão do seu umbigo – que alimentam a onda do desconhecimento e da desinformação, em vez de avisarem a plebe incauta que a procela a arrastará. Vivam os cidadãos dotados de responsabilidade e de respeito pela dignidade do próximo, que têm a ímpar ousadia de pôr a razão ao serviço do interesse geral, mesmo que a mensagem fira de morte tanto a conveniência pessoal como o populismo ou o totalitarismo popular.
Prestes a atingir 40 anos, a democracia portuguesa ainda permanece em formação e num estado algo incipiente. Assim, e na sequência do que se referiu no penúltimo parágrafo da secção A, não estaríamos a salvo de um revés. Contudo, depois de 48 anos de trevas, o cenário de rutura com a democracia será obviamente impensável, até porque estamos inseridos na União Europeia – com todos os juízos que se possam tecer, é uma união – e noutras organizações internacionais que congregam países democráticos. A evolução democrática é por conseguinte uma viagem de sentido único.
Face ao exposto, após arduamente superada a ditadura e desvendado o carril da liberdade, resta‑nos a tarefa de consolidação da democracia. O caminho mantém‑se longo. Pese embora as tamanhas e impensáveis façanhas já alcançadas e alguns viciosos e retrógrados tabus enfim derrubados desde 1974, estamos longe de chegar a um limiar próximo da plenitude democrática. A generalidade dos eleitores desconhece quão distante se encontra, e os pastores políticos fingem desconhecer o real afastamento.
O 25 de Abril fez‑se com ações e não tanto com intenções. Apesar da sua idade adulta, parece por vezes esquecer‑se das próprias raízes e do modo como nasceu. O seu futuro terá igual e inevitavelmente de ser feito mais com ações do que com intenções. Ao longo destas décadas tem sido frequente invertermos a lógica: reclamar sem pensar – forma adaptada da abordagem pidesca de exercer e justificar o poder, em que primeiro atacava e depois perguntava. Se quisermos saborear a verdadeira democracia, então temos de modificar a nossa mentalidade. Devemos pensar primeiro antes de criticar. Eis o desafio que se nos coloca. Haja humildade para entendê‑lo.

(1) FRES - Fórum de Reflexão Económica e Social.

23 de dezembro de 2013


sexta-feira, 3 de julho de 2020

Da semente da verdade ao fruto da liverdade (parte VII/VII)

Da semente da verdade ao fruto da liverdade (parte VII/VII) (01/05/2016)


G. A importância da liverdade

G.1. A liverdade é a suma felicidade.

88. Nas sociedades democráticas, se os eleitores exercerem a livre e consciente vontade de mudança em prol da verdade – entendida enquanto o benefício (não o seu, mas o) da maioria dos concidadãos –, então pode chegar-se à simples constatação que será atingida a felicidade plena: felicidade em liverdade. Isto não invalida que haja um espectro de causas, de ordem igualmente prioritária, da felicidade, designadamente a saúde, a tranquilidade, o amor ou o dinheiro.

89. Não existe reforma democrática sem desenvoltura para exercer a liverdade. Esta constitui o epílogo da política e da cidadania. Se bem que a política e a politiquice sejam totalmente distintas quanto à dimensão da verdade que anseiam desvendar, não resta dúvida que, pelo menos na derradeira instância, as duas têm, nem que seja de forma implícita, um fim comum: a vitória do poder.

90. Quando o desiderato primacial culminar na consolidação da verdade, a política conhecerá o patamar máximo. Esse momento coincidirá com o desaparecimento da praxis do salvo-conduto politiqueiro, de os politiqueiros afagarem a falta de consciência pulando de legislatura em legislatura e institucionalizando as mentiras do mando nas democracias. No fundo, coincidirá com a entrada na era da promissora e estoica liverdade, sem a qual a cidadania vive despojada de sustentabilidade.

G.2. A liverdade exige transfigurados cidadãos eleitores e remodelados agentes decisores.

91. O caminho para a liverdade é hercúleo, não por exigir remodelados agentes decisores, antes por depender de transfigurados cidadãos eleitores. Tudo em nome da (li)verdade universal, anverso da liberdade democrática. Se, na metamorfose requerida no rumo para a liverdade, crismarem os genuínos políticos de poetas do luminoso sonho, não resta senão ser honesto e reconhecer que os astutos politiqueiros não passam de profetas da sombria realidade.

92. A liverdade permite debelar eficaz e eficientemente a tirania da maioria, talvez o maior mal das sociedades democráticas. São frequentes os casos em que a vontade da maioria viola, ainda que não propositadamente, as regras da verdade (nacional ou universal). Para combater a disfunção democrática acabada de identificar, tem de se dotar a maioria, preferencialmente a multidão, de dois elementos imprescindíveis à liverdade: pão e educação.

93. Recordando a evidência n.º 39 – «Verdade e independência» – inscrita no post «Viagem da Liverdade a Portugal», de abril do ano transato, foi escrito que o pão e a educação são os ingredientes para assegurar a verdade e a independência. Se o Estado, reflexo da sociedade em geral, provir a sua população com os citados dois elementos essenciais que satisfazem as necessidades primárias das democracias, então pode afirmar-se que a sociedade conquistou a feliz liverdade.

G.3. Ante a falta de liverdade, o ótimo possível seria alcançável por senadores da verdade.

94. O ótimo desejável seria, como se depreende, a consolidação de uma comunidade de pensamento livre, crítico mas responsável, e impregnada de verdade, em suma, uma consciente comunidade de liverdade. Embora se devesse, para o efeito, verificar uma adesão universal a essa comunidade, há a consciência que tal universalidade não é concretizável porque nem todos os cidadãos estão munidos do desejo de aceitar voluntariamente tamanho afã.

95. Por conseguinte, em muitas sociedades onde os seus regimes democráticos parlamentares têm sido guiados muito mais por politiqueiros do que por políticos, o objetivo alcançável – o ótimo na perspetiva do que é exequível – tem de passar pela instituição de senadores. Para materializar o ótimo (alcançável), e face à dificuldade de reformular as vontades dos deputados politiqueiros, seria preciso que existisse um poderoso contrapeso assumido por senadores políticos exclusivamente orientados pela e para a verdade.

96. Coloca-se a questão de saber qual o modo de eleição dos senadores. A resposta não é imediata. No entanto, desde logo reunirá alargado consenso a sugestão de efetiva independência partidária, ou seja, seria um bom princípio que não houvesse qualquer vínculo, de facto, entre os senadores e as forças partidárias. Visto que a aproximação deve ser assegurada perante os cidadãos e não os partidos políticos, seria lógico que os senadores fossem eleitos pelo público, tal como o Presidente da República é escolhido por sufrágio direto e universal. Trata-se de uma utopia em democracias normais assentes na liberdade; não em democracias consolidadas assentes na liverdade.

G.4. Na liverdade, a liberdade é o sujeito e a verdade o predicado.

97. A liverdade é o fruto resultante da solidariedade de duas virtudes: uma de caráter quantitativo, a liberdade; e a outra de índole qualitativa, a verdade. A ação é dada pela liberdade de pensamento, ditada nos termos da estima pela verdade, quer a verdade da razão da justiça, quer a da justiça da razão. Apesar de não haver certezas acerca da razão e da justiça – pelo motivo de uma e outra evoluírem –, não se pode advogar a sua irregularidade. Irregulares são as vontades; a razão e a justiça são regulares na medida em que fundamentam-se na verdade.

98. A liberdade e a verdade comunicam-se na mesma língua. Elas são, respetivamente, o sujeito e o predicado da liverdade, o princípio e o final desta. Os pais da liverdade são a razão – razão ou conhecimento – e a justiça, ou melhor, o motor construído da razão e a potência inata da justiça. União duradoura, lacrada pelo respeito mútuo.

G.5. A liverdade simboliza o estádio máximo da razão e o desejo insanável da justiça.

99. A apreensão fácil da liverdade depende da importância da verdade em democracia, o que só se torna possível recorrendo à razão enquanto inteligência lógica. Cumpre pois transformar, através de elementos racionais, a informação em verdade. Se a informação é a matéria-prima e a verdade o produto acabado, a razão é o elemento processado da liverdade. O elemento natural da liverdade é ocupado pela justiça, conforme se infere da ulterior subsecção.

100. É portanto provável – para não substituir «provável» por «inevitável» – que seja anatemizado quem luta pela liverdade. É considerado de louco. Louco irracional, não; louco social, sim. Ambos são loucos porque estão em paz com eles mesmos e em conflito com as regras instituídas – com a praxe doutrinária –, e por isso não recolhem o apreço das pessoas que os rodeiam.

101. O que os distingue será o facto de o louco irracional estar mais atento ao «Eu-Mundo» e o louco social ao «Nós-Nação». Em linha com o parágrafo n.º 58, conclui-se que quem procura a liverdade quer estar tranquilo consigo e com o seu país – e se possível com o Mundo, lar do conjunto de países –, ainda que assim esteja em guerra ou em guerrilha com os seres aparentemente vulgares, apologistas da praxe doutrinária.

G.6. A justiça simboliza o estado máximo da liverdade.

102. A liverdade nasce na razão e desagua na justiça. No recrutamento para a verdade apenas são inelegíveis os seres néscios que não dispõem de inteligência intuitiva para distinguir o bem do mal, a harmonia do caos, a razão da opinião. Exige-se a inteligência lógica, associada à razão, e sobretudo a máxima inteligência intuitiva, ligada à justiça, como já explicado.

103. A justiça implica respeito e bom senso. É a voz e a alma dos que conseguem destrinçar o primeiro do último, o melhor do pior, as virtudes dos defeitos, em suma, a verdade da mentira. Quem dessa virtude dispuser está em condições para se alistar nos pelotões, nas companhias, nos batalhões, nas hostes que a desejem. Alinhamento possível quando a utopia democrática se converter em liverdade efetiva.

Da semente da verdade ao fruto da liverdade (parte VI/VII)

Da semente da verdade ao fruto da liverdade (parte VI/VII) (30/04/2016)


F. Da politiquice à política

F.1. Na politiquice reinam as certezas, enquanto na política imperam as dúvidas.

71. A politiquice é o coração e a política a cabeça de corpos muito diferentes: corpo da presunção na politiquice, e corpo da modéstia na política. Respetivamente, arrogância em confiar na definhada sabedoria, e humildade em reconhecer a frutuosa ignorância; ou arrogância em responder, e humildade em perguntar. As dúvidas de uns são as certezas de outros.

72. As dúvidas da política consistem na certeza das perguntas, entre elas: «Como atingir o bem coletivo?», ou «Como assegurar o crescimento e o emprego?». Inversamente, as certezas da politiquice correspondem à dúvida das respostas, como sejam: «O bem coletivo atinge-se acabando com os mercados financeiros.», ou «O crescimento e o emprego ficam assegurados através do aumento da justiça social e da promoção da igualdade de oportunidades.» Perguntas convictamente certas e respostas assertivamente duvidosas.

73. Tais exemplos espelham duas realidades opostas. A política caracteriza-se pela reflexão e pelo debate de ideias, ou melhor, de autênticas dúvidas; envolve a análise e o diálogo. A politiquice cinge-se à demagogia e à persuasão de argumentos, ou antes, de falsas certezas; queda-se pela retórica e pelo monólogo.

F.2. Os politiqueiros focam-se na parte e os políticos no todo.

74. Os politiqueiros concentram-se na superfície dos assuntos; os políticos no âmago dos problemas. A classe politiqueira engana com sofismas os cidadãos e assim engana-se a si mesma; a classe política ensina-se a si própria e assim ensina com sinceridade os cidadãos. O que mais os distingue é a carga de verdade – ou de mentira – que as suas decisões (de governo da sociedade) transportam, i.e., a sensatez para dosear a tecnicidade impessoal e a solidariedade interpessoal.

75. Em rigor a solidariedade atrás mencionada não pode restringir-se ao campo interpessoal. Deve abranger – sobrecitado no parágrafo n.º 36 – a harmonia e o respeito entre o indivíduo e o meio que o rodeia, rectius, a relação entre o Homem e a Natureza. Sem a atenção permanente prestada à Natureza, elemento agregador, quiçá paradivino, do futuro, é descabido falar de política, uma vez que não há verdade sustentável se o ser humano não se articular com o ambiente natural e as gerações vindouras.

76. A politiquice conforma-se com a ilusão do empolamento das promessas, enquanto a política não dispensa a constatação da concretização das ações. Os politiqueiros preocupam-se com a aparência e a forma, ao passo que os políticos focam-se na consistência e na substância. Melhor expondo: os politiqueiros empenham-se na consistência da forma, bem como na aparência da substância, e os políticos enfatizam a consistência da substância e desprezam a aparência da forma.

F.3. A politiquice busca a complexidade e a política a simplicidade.

77. Conforme oportunamente deduzido, em política a simplicidade aumenta com a distância do horizonte. Com a politiquice ocorre a deturpada amplificação da simplicidade em complexidade; com a política consegue-se a ditosa redução da complexidade em simplicidade. Todavia, a simplicidade não é sinónima de facilidade; nem a complexidade significa dificuldade. A politiquice pretende não ultrapassar a fácil complexidade; a política pretende desvendar a difícil simplicidade.

78. Logo, para efetivar a robustez social de uma nação, é imprescindível que, quer o eleitorado, quer a classe política, disponham de ânimo (ou dedicação) e capacidade (ou inspiração) para fazer valer a simplicidade da verdade. Para tanto, na fase da análise – que, recorde-se, contempla as etapas da organização e da intuição – importa que o eleitorado nunca perca o espírito crítico para separar a verdade da mentira, e que a classe política tenha em conta os vários tipos de correlações existentes. A classe política deve ter presente que a matriz de correlações da verdade reduz a complexidade em simplicidade, e que o vetor – não uma matriz – de elementos independentes da mentira amplifica a simplicidade em complexidade.

79. Não obstante a abordagem combinatória dos átomos da realidade (sejam verdadeiros ou falsos) aparentar ser difícil, a realização de uma abordagem do género revela-se um exercício fácil. Fácil porque do exercício extrai-se uma solução possível – entre as inúmeras que os arranjos ou as combinações permitem –, pelo que não se justifica o gáudio feito à sua volta quando se apresenta essa solução.

F.4. Os politiqueiros partem do engano da verdade; os políticos da ausência da verdade.

80. Sendo a verdade o resultado molecular de um exame minucioso de inúmeros elementos objetivos, não é de estranhar que, para obter uma solução correta – portanto verdadeira –, haja necessidade de despender demasiada dor e enorme esforço. Mas cumpre realçar – em linha com o referido na parte final do parágrafo n.º 45 – que se a verdade é penosa, a mentira revela-se ainda mais.

81. Os genuínos políticos fecham-se em si para abrirem-se aos outros; os astutos politiqueiros, porque se abrem apenas a si, precisam de se fechar aos outros. Dado que a descoberta da verdade decorre de uma tarefa laboriosa, denota-se uma manifestação distinta de atitude entre eles. Perante a ausência da verdade, os genuínos políticos sentem angústia; perante o engano da verdade, os astutos politiqueiros sentem regozijo. No domínio da verdade, a angústia é relativa, pois a angústia inicial passará a regozijo final; no domínio da mentira, o regozijo é efémero, pois o regozijo inicial passará a angústia final.

82. Com efeito, por a fase da análise exigir assaz transpiração, tanto na etapa da organização como na da decisão – traga-se à colação B.6 –, então é normal que, até encontrarem um caminho válido para a verdade paracientífica, os seus descobridores ou investigadores sintam laivos de desânimo ou angústia por não alcançarem o bem coletivo. Não admira por conseguinte que, após árdua avaliação das vontades, em que se separa adequadamente a flor da verdade da escória da mentira, eles sejam apoderados de um amplo regozijo.

F.5. A opinião não pode representar a verdade porque conhece fases de avanços e recuos.

83. A verdade, por ser objetiva, evolui sempre, avança constantemente; a opinião, por ser subjetiva, tantas vezes ora avança ora recua. Uma verdade que, num momento específico, é considerada total, posteriormente pode passar a verdade parcial, dado que a realidade altera-se. Igualmente pelo motivo de alteração da realidade, verificam-se casos nos quais a verdade parcial transforma-se em verdade total.

84. Deste modo, embora a verdade e a opinião sejam transitórias – válidas unicamente para uma área geográfica e para um horizonte temporal algo restritos –, a verdade será constante e a opinião será volátil. A verdade é política porque requer o constante bom senso; a opinião é sobretudo politiqueira porque subsiste com volátil sensibilidade. Frise-se porém que certas opiniões são proveitosas: as que provêm do pensamento e se materializam em verdade – parágrafo n.º 62.

F.6. Muitas opiniões são politiqueiras; somente algumas são políticas.

85. À partida não haveria opiniões erradas, já que elas comportam, em maior ou menor grau, algum fundamento verdadeiro. Claro que se pressupõe a presença de um mínimo de boa-fé nas opiniões proferidas. Afere-se a boa ou a má-fé das opiniões não enquanto conhecimento provado mas enquanto jactância de validade (isto é, desde que despidas de altiva assunção de validade, uma opinião desprovida de sustentação lógica não carrega má-fé).

86. A política funciona de maneira semelhante à de uma câmara de compensação central, onde algumas opiniões, partículas da verdade atomizada – umas partículas são bastante visíveis e outras deveras impercetíveis –, são profundamente convertidas em verdades totais. Conclui-se que afinal, mesmo no alto da boa-fé, existem opiniões corretas mas muitas são erradas.

87. Repita-se: as opiniões erradas não o serão quanto à fé duvidosa ou malsã que incorporam. Sê-lo-ão sim pela utilidade que lhes é dada. No âmbito da política, as opiniões são válidas porque constituem matéria-prima do mecanismo de construção da verdade. Ao invés, no domínio da politiquice as opiniões são nocivas para o regime democrático e para a opinião pública, pois são entendidas e tratadas como produto final, passando por fora do mecanismo de construção da verdade.

Da semente da verdade ao fruto da liverdade (parte V/VII)

Da semente da verdade ao fruto da liverdade (parte V/VII) (29/04/2016)


E. O papel do pensamento

E.1. O melhor serviço que os cidadãos podem prestar a um país é pensar verdade.

57. A consolidação da liverdade ultrapassa deveras a exigência da verdade. Para além desta exigência, a liverdade requer a afirmação do pensamento na verdade. Pensar (na) verdade equivale a aspirar o bem privado – individual ou corporativo –, desde que o ente coletivo possa igualmente usufruir desse bem. Enfim, a afirmação do pensamento impõe apenas que a maioria dos cidadãos preste o patriótico serviço humilde de dispor de capacidade para identificar que, em política, a soma das partes pode ficar muito atrás do todo potencial.

58. Não é pois surpresa que os indivíduos que pensam verdade sofrem mais da sua vitalidade do que beneficiam da amizade de outrem. A vitalidade brota da firme preocupação ou porventura do sólido amor depositados no bem nacional e no consequente combate a interesses contrários a esse bem nacional, o que não raras vezes causa dissabores e desarticulações sociais, laborais e familiares. O combate pode inclusive abranger a abnegação dos interesses particulares, epítome da liverdade.

59. Não há democracia consolidada sem liverdade sustentável; não há liverdade sustentável sem cidadania plena; e não há cidadania plena sem pensamento na verdade. Defender a democracia consolidada, ou a liverdade sustentável, ou a cidadania plena, ou o pensamento na verdade representa em primeira instância proteger a pátria acima do povo, porquanto, no atinente à verdade, não é normal os interesses da nação coincidirem ou sequer convergirem com os interesses da multidão. Há a esclarecer que isto sintoniza-se – embora não pareça – com o conteúdo do post «Muita Pátria e pouco Povo», de agosto de 2015. No início da sua última secção, «Epopeia do séc. XXI», realçou -se que «o excelso Povo tem sido sistematicamente generoso com a Pátria mas nem sempre consigo próprio. Para si próprio tem mostrado, com alguma frequência, ser individualista, dado que está por alcançar a obra de pensar como um todo indivisível.»

E.2. O pensamento é o sexto sentido.

60. Obter-se-á a política desejável se os eleitores focarem a sua atenção no coletivo, ao invés de o enfoque fluir para o indivíduo ou a corporação – admitindo a validade (que deve ser inviolável) do pressuposto que os políticos, os supremos defensores do coletivo, terão suficiente sagacidade para salvaguardar os legítimos e proporcionais interesses dos cidadãos em função da proteção que cada um destes interesses merece. Apesar de aquela política desejável poder ser considerada algo utópica, um estádio anterior é perfeitamente atingível: a política ao mesmo tempo honesta entre as pessoas e equilibrada entre cada pessoa e o coletivo. Se os políticos atuarem convenientemente, pensando de forma idêntica à dos eleitores, a verdade é ainda mais consistente ou até inteligente – parágrafo n.º 17.

61. Quando os indivíduos, incluindo os eleitores e os políticos, pensam com equidade e humildade, automaticamente irrompe um sexto sentido. Daí a importância da equidade e da humildade, o pão e o conduto da liverdade, através dos quais surge um processo metamórfico subtil: a energia e o espírito robustos nascem com a vontade, crescem com a análise e morrem com a verdade. Não existe verdade sem pensamento. Há quem não o possua – lamentavelmente sucede com os demais sentidos. Por conseguinte, pensar na verdade constitui o devir da energia e do espírito. Energia positiva e espírito crítico.

62. O conhecimento é o ensino teórico e a justiça a aprendizagem prática. Um e outra exigem o exercício de pensar e transmitir verdade. Ao emitirem se opiniões, também se pode pensar, procurando transmitir verdade – transmissão que vulgarmente não ocorre, por carência de utilidade. (Conforme se referirá, para aqui só interessam as opiniões desinteresseiras, isentas de má-fé.) A missão da política consiste em distinguir os pensamentos convergentes com a verdade dos pensamentos divergentes da verdade.

E.3. O pensamento funda-se simultaneamente num direito e numa obrigação.

63. A verdade, que em geral é intrínseca ao nascimento dos seres humanos – porque se revela em vontades expurgadas de segundas intenções –, mingua com a idade e tenta impor-se quando a consciência prevalece. Neste processo cíclico da verdade, o fundamental não é pensar na muche – até porque o alvo, por progredir no espaço e no tempo, revela-se mutável –, mas antes ter a noção onde se situa o alvo e dispor da garantia que a carreira de tiro encontra-se livre. Na fase minguante não é a classe politiqueira que escolhe a cegueira da mentira; é a cidadania eleitoreira que receia o pensamento na verdade.

64. O pensamento é um direito, enquanto liberdade, e também uma obrigação, enquanto responsabilidade. Numa sociedade coesa e organizada, sem embargo de o povo estar endividado, em dinheiro e em valores, não pode haver dívida perante o pensamento. O pensamento na verdade é o domínio da função liverdade. O contradomínio da função é a razão e a justiça.

E.4. A retoma da verdade culmina sob o norte da energia de pensamento.

65. Como decorre do penúltimo ponto, na idade da inocência a verdade abunda e, com o crescimento do indivíduo, vai-se misturando com (ou modificando em) a mentira. É portanto essencial que impere a consciência para pôr a verdade na ordem do dia, processo que gera a retoma da verdade. Para o novo ciclo de apego à verdade, é imprescindível a intervenção de cidadãos e de políticos. Com efeito, somente mediante um acordo vincado entre eleitores e eleitos para defender e promover a verdade se granjeia a sua restauração ou reincarnação.

66. O triunfo final da verdade, símbolo do valor coletivo, alcança-se com cidadãos cuja matéria é formada, mais do que pelo vigor da vontade em alcançar a verdade, ou até pelo esforçado aprumo da sua conduta moral, pela energia de pensamento que permite romper com o statu quo. Em inúmeras pessoas a matéria e a energia são imiscíveis, como se a matéria fosse incorpórea e a energia corpórea. Apenas os cidadãos dotados de um renovado espírito crítico dispõem da inovadora energia de pensamento.

E.5. A vontade do povo é o input das relações humanas e o pensamento deve ser o output.

67. O input da vontade é sensivelmente idêntico de sociedade para sociedade. O output do pensamento é porém bastante distinto, consoante o tipo de sociedade. A política será apanágio das sociedades maciças e, por ela ser uma prática paracientífica, eleva a vontade à verdade – releia-se C.1. Contrariamente, a politiquice será típica de sociedades ocas e, por ser um exercício de demagogia, reduz a vontade à mentira. Os povos que querem descobrir a verdade pensam e elegem políticos; os que querem iludir- se com a mentira resignam-se e elegem politiqueiros.

68. Não se pede que a maioria do eleitorado tenha presente as correlações da verdade e da mentira evocadas no parágrafo n.º 32 – tarefa que cabe aos agentes políticos. Basta bom senso para saber conviver com a verdade e comunicar com a mentira. Bom senso, adicionado de modesta dedicação e de parca inspiração, cumpre reconhecer. É mais simples do que parece, pois quem dispõe do sentimento universal de justiça tem em si o bom senso, e existindo bom senso não falta a dedicação necessária ao pensamento. Por seu turno, havendo alguma dedicação ao pensamento, logo acorda a inspiração natural, que conduz inevitavelmente ao nascimento da inspiração construída.

E.6. O pensamento é um íman que atrai a verdade e repele a mentira.

69. O pensamento suscita a alteração de uma vontade numa verdade. Com recurso à inteligência – muito mais do que a associada ao conhecimento – e à sensatez, as ideias ou opiniões iniciais transformam-se em produtos finais úteis para a sociedade. O pensamento consegue enriquecer fúteis interesses individuais ou corporativos em verdades agraciadas pelo interesse coletivo.

70. Pelo que tem sido explicado, o pensamento tem um papel de charneira na política: constitui o elemento indutor do processo de formação da verdade paracientífica. O pensamento tem de ser vigilante porque importa atender quer à verdade, para a atrair, quer à mentira, para a repelir. Contudo, tal como um íman está sujeito a desmagnetizar-se, o pensamento perderá qualidades se não for atualizado e adaptado à evolução da realidade.

Da semente da verdade ao fruto da liverdade (parte IV/VII)

Da semente da verdade ao fruto da liverdade (parte IV/VII) (28/04/2016)



D. Verdade versus mentira

D.1. A verdade é o seu autoalimento e a arma contra a mentira.

43. A verdade alimenta-se a ela própria porque – repita-se – é causa e efeito de si mesma. Se ela é utilizada para se fortalecer, inevitavelmente enfraquece a mentira. Mas o enfraquecimento também ocorre no seio da verdade. Na subsecção C.6 tocou-se ao leve o lado reverso da verdade flácida: a verdade imóvel cria ervas daninhas. Analogamente aos rapaces altaneiros, que planam de modo suave e discreto sem serem detetados pelas presas incautas, a mentira sobrevoa a sociedade e frequentemente não é sentida pelos radares da maioria dos cidadãos. A mentira destrói-se no instante em que os radares da verdade a identificam.

44. Impõe assim refletir sobre o que requer maior esforço: a mentira levantar voo e sobrevoar até reunir condições para atacar; ou a verdade estar munida de radares atualizados e antecipar-se às ameaças. Os radares da verdade exigem – explicar-se-á no parágrafo n.º 68 – bom senso, dedicação e inspiração.

45. O bom senso é inquantificável – não é diminuto nem excessivo –; é unicamente existencial – ou há ou não. Inversamente, a dedicação e a inspiração são mensuráveis. É inequívoco que a verdade custa alguma dedicação e uma ligeira inspiração; só que a mentira dá trabalho acrescido, quer em dedicação, quer em inspiração. Logo, o esforço para a construção da mentira é incomparavelmente maior do que o necessário para a edificação da verdade.

D.2. Na política não há meias verdades nem meias mentiras.

46. Para efeitos do bem comum, não se conhecem nem meias verdades nem meias mentiras. Somente ou verdades ou mentiras, nada mais. Uma tese que contenha por exemplo 70% de argumentos verdadeiros – ou 30% de argumentos falsos – é talvez apodada de verdadeira no campo da politiquice conjuntural, contudo é irremediavelmente qualificada de falsa no contexto da política séria (ou genuína, usando o adjetivo que vem sendo adotado). Terminar um argumento com uma verdade parcial corresponde a iniciar outro com uma mentira total.

47. Tal não significa que todas as meias verdades – ou as mentiras totais, se se quiser – sejam inúteis. Ainda que de segunda ordem, elas terão a utilidade de, se forem pré-verdades, servirem para construir verdades reforçadas, em resistência e fundamentação, portanto conscientemente aceites pela maioria dos cidadãos. Todavia, se por um lado importa reconhecer que certas meias verdades, ou determinadas mentiras, podem ser aproveitadas – à semelhança da existência de resíduos que são úteis, como se mencionará mais adiante –, por outro não deixa de ser um facto que a maior parte das meias verdades é vã e o maior número das mentiras é vil.

D.3. As meias verdades não se completam com outras meias verdades.

48. A anterior epígrafe parece contraditória com a de D.2, pois se se afirma que «não há meias verdades nem meias mentiras», então seria desprovido de lógica defender que «As meias verdades não se completam com outras meias verdades» já que em rigor não existem meias verdades. As duas ideias não são paradoxais porque referem-se a âmbitos diferentes: apenas a primeira cinge-se ao âmbito da política séria.

49. O mesmo argumento de meia verdade, à luz do que foi justificado no antepenúltimo ponto, pode indicar verdade total num contexto – no da politiquice – e mentira completa noutro – no da política. É o motivo por que uma meia verdade é perigosa e por norma deve ser banida – com a exceção entretanto salientada. As meias verdades não se combatem com outras meias verdades; podem ser enfrentadas exclusivamente com verdades totais. A verdade é a pacífica bateria antiaérea que destrói o míssil da hostil mentira.

D.4. A evolução da verdade depende do conhecimento da mentira.

50. A verdade traduz um conceito espacial e temporal que evolui e vai sendo desvendado por decorrência do conhecimento da mentira. Conhece-se a verdade total, a nacional ou a universal, se se cumprirem dois momentos. Primeiro, é preciso entrar cautelosamente tanto na verdade parcial como na mentira, seja esta total ou parcial, para conhecê-las. Depois, é essencial saber sair corajosamente delas.

51. São vulgares os círculos viciosos em que as verdades parciais antecedem as mentiras parciais, e vice-versa, pelo que só com a rutura destes círculos é possível conquistar a verdade total. Consumada uma osmose de prioridades entre eleitores e eleitos, a verdade política será mais facilmente obtida. Não se atinge o consenso ou o arquétipo da verdade – no campo da verdade não há consensos ou arquétipos –, mas reduzem-se drasticamente os dilemas quanto aos caminhos a trilhar.

52. A verdade é a concertação – conceito oportunamente explicitado – fabricada manualmente e por medida. Ao contrário do som uniforme de uma orquestra de música clássica, passível de ser laboratorialmente repetido até à exaustão – e daí a parecença com as experiências científicas –, a riqueza do jazz exige que este seja criado e vivido no momento e não aceita a reprodução de cópias. Os políticos que confundem música clássica com jazz, se bem que não sejam necessariamente astutos politiqueiros, estão longe de ser genuínos políticos.

D.5. A verdade constitui uma equação sem solução única.

53. A genuína política deriva de uma tarefa árdua de otimização, cujo desígnio é – refira-se novamente – aproximar ao máximo o desejável do realizável, encontrando-se este último condicionado a uma miríade de restrições de diversa natureza, consoante o horizonte traçado. A política é uma paraciência de onde emanam resultados adequados, e não uma ciência que produz teses algo lineares e tendencialmente intemporais.

54. Desconhece-se uma fórmula transversal ou uma solução única para descobrir a verdade, desde logo porque esta não é constante. Nem a verdade é constante nem a mentira. Face a tal inconstância, impõe avaliar-se a utilidade quer da verdade quer da mentira. A utilidade da verdade é autoexplicativa; a da mentira passa, como a seguir se apresenta, pela possibilidade de ser a energia criadora de outra verdade.

D.6. A verdade é a virtude da energia e a mentira o resíduo do consumo de energia.

55. A verdade somente é uma virtude enquanto a consistência não fraquejar – vide parágrafo n.º 41. Jamais viverá ao sabor de movimentos discretos; tem de ser continuamente exalada pelos cidadãos. Ela não é um mero fim em si mesmo. Deve ser a conduta de vida, o alicerce do quotidiano, a matriz de pensamento. É o alfa e o ómega da energia útil.

56. Em contrapartida, a mentira é o resíduo do consumo de energia. Conforme sucede com quaisquer resíduos, a maioria deles é inutilizada; mas existem resíduos que são aproveitados para produzir nova energia. Há mentiras que, após serem submetidas a um processo de reconstrução da verdade, metamorfoseiam-se em energia útil. Assim, a mentira pode ser o nascimento da verdade, ao passo que a verdade é sempre o falecimento da mentira.

Da semente da verdade ao fruto da liverdade (parte III/VII)

Da semente da verdade ao fruto da liverdade (parte III/VII) (27/04/2016)


C. A formação da verdade paracientífica

C.1. A política transforma as múltiplas vontades numa una verdade.

29. Apesar de ser quase impossível encontrar a solução da verdade onde todos os cidadãos – sem exceção – saiam beneficiados, isso não atribui autoridade para defender a multiplicidade da verdade. A multiplicidade caracteriza as vontades. Ao invés, a unidade é intrínseca à verdade, como solução válida – a mais válida – para um conjunto de pontos no espaço e no tempo, um dos motivos pelos quais a política é paracientífica.

30. No entanto, para que a unidade da verdade se imponha, não basta a validade da solução encontrada acima citada. Importa acrescentar a interiorização – ou aceitação – por parte dos eleitores. A diversidade de vontades, ora convergentes ora divergentes entre si, dá lugar à unidade, não consensual mas concertada, da verdade – vide B.1 –, o que consiste no segundo motivo para a política ser paracientífica. Existe verdade una quando as medidas por que os políticos enveredam são aceites pela generalidade dos eleitores, aceitação tomada – sublinhe-se – em ascética consciência do futuro e não por cobarde conveniência do presente.

C.2. A verdade é una mas divisível, em que uma parte revela-se e a outra procura-se.

31. A unidade da verdade paracientífica compõe-se de duas partes: a visível e a invisível. A parte visível manifesta-se através dos interesses parcelares dos eleitores; a parte invisível decifra-se. Cabe aos políticos decifrá-la, procurando o caminho para o interesse nacional, mesmo que este último possa não assumir um caráter internacional ou universal. Os politiqueiros canalizam a parte invisível da verdade para a parte visível dos interesses privados (individuais ou corporativos).

32. Entre as componentes constituintes da verdade, surgem interações de forças positivas e negativas. A unidade da verdade vai muito para além ou fica muito aquém da soma das partes, consoante as correlações sejam, respetivamente, positivas ou negativas, i.e., convergentes ou divergentes. As correlações da verdade transformam a mentira caótica em verdade organizada, ao passo que as correlações da mentira transformam a verdade potencial em mentira efetiva.

C.3. Quanto mais distante o horizonte, maior a simplicidade.

33. A política, enquanto ramo paracientífico multidisciplinar, caracterizar-se-á de alfanumérica. Por analogia, se a política é alfanumérica, a politiquice é alfabética e a ciência numérica. Alfabética unicamente no desprestigiante sentido retórico – e não no atinente ao uso virtuoso do alfabeto para descrever e fundamentar argumentos válidos – e numérica apenas no contexto da infalibilidade. Note-se que, por as ciências – exatas ou sociais – buscarem incessantemente a validade perfeita da verdade, procuram ser infalíveis.

34. Ao contrário das ciências, em que o conhecimento obtido é tanto maior quanto mais altos forem os ombros dos gigantes onde os cientistas se apoiam – alusão à resposta humilde dada por Isaac Newton para justificar as façanhas por si atingidas –, nas paraciências tal não sucede. Nas paraciências, nomeadamente na política, a altura não é numérica mas alfanumérica, e mede-se de um modo assaz diferente: a distância do horizonte, vista preferencialmente na perspetiva vertical – daí a expressão «verticalidade do infinito horizonte», na parte inicial do ponto 6.

35. Não obstante as barreiras levantadas – recordem-se as duas últimas palavras do parágrafo n.º 5: «obstáculos erguidos» –, é do início do horizonte que se descobre a simplicidade. O pensamento – abordado na secção E – comporta porventura a maior simplicidade. A simplicidade é arrastada pelo pensamento preso à verdade; não pelo desleixo associado à mentira. O horizonte desvenda-se portanto com a reflexão democrática e não com o sectarismo rebuçoso. Na simplicidade da verdade não entram nem as seitas nem os milagres; exclusivamente têm lugar as ideias transparentes produzidas por cérebros independentes. A reflexão democrática liberta a verdade; o sectarismo rebuçoso aprisiona-a.

C.4. A verdade resulta da articulação entre conhecimento e justiça.

36. O limite da verdade política não se restringe ao sonho ou a quejandas utopias, inclusivamente porque a verdade em apreço é a possível e não a ideal. O limite é antes a realística e alcançável justiça, que transvasa o respeito pela lei e desagua no respeito pelo Homem e pela Natureza. Se a justiça é o limite da verdade, a base é o conhecimento.

37. O conhecimento apela à organização; a justiça necessita de intuição. A justiça é o espelho da terrena inteligência suprema; o conhecimento, proxy da razão, sintetiza em simultâneo a humildade e a multidisciplinaridade. O conhecimento é a dimensão da verdade que se ensina – transmite-se pela escrita e pela leitura. A justiça é a dimensão da verdade que se aprende – transmite-se pelo comportamento e pelo exemplo.

C.5. A verdade implica autorreflexão e, em seguida, introspeção social e nacional.

38. A quem procura a verdade exige-se que faça primeiro uma autorreflexão à sua conduta – «comportamento» e «exemplo» atrás frisados –, e depois uma dupla introspeção, sobre a articulação entre os cidadãos e a sociedade, e sobre o bem coletivo. Por fim, deve efetuar uma sólida investigação dos assuntos e um responsável exame das consequências das medidas a tomar. Eleitores e políticos devem inspirar conhecimento e expirar justiça.

39. Como se depreende, impõe-se que a justiça tenha uma dimensão multifacetada: desde a justiça entre as pessoas até à justiça entre elas e o Estado, passando pela justiça – abordada no antepenúltimo ponto e também em F.2 – entre elas e a Natureza. Formas de justiça no fundo interligadas, pois se, no âmbito da justiça entre as pessoas, deve haver respeito pela liberdade individual e assim é permitida a criação de riqueza fundada no mérito, paralelamente, no âmbito da justiça entre as pessoas e o Estado, os agentes públicos devem assegurar a dignidade individual e a proteção dos concidadãos mais pobres.

C.6. A melhor verdade reproduz-se.

40. Não existem verdades prejudiciais. Porém, umas são melhores do que as demais: as melhores são as que se propagam no espaço e no tempo. A verdade é uma virtude que se reproduz se for semeada corretamente e bem tratada. Se, mesmo que semeada corretamente, não for bem tratada, definhar-se-á e, enquanto morre, nascerá a debilitada mentira.

41. É neste movimento minguante da verdade que cresce a oportunidade para a brenha poluente de meias verdades, antecâmara das mentiras. A astuta politiquice está sempre à espreita do abrandamento da genuína política. A quietude da verdade é por si só um fator incentivador para o seu involuntário esmorecimento.

42. Embora não haja verdades más, ninguém pode defender com garantia a validade definitiva de qualquer verdade. Apenas os politiqueiros mitómanos ousam defender a garantia de verdades. As verdades acabadas, vendidas como garantidas, de tão fingidas que são, constituem um gérmen das mentiras. Somente na política ou noutras paraciências se procuram as verdades asséticas, limpas de gérmenes da mentira. Nem na ciência se conhecem verdades acabadas. Aliás, advogar verdades eternas ou inquestionáveis equivale a reconhecer a estagnação do conhecimento científico.

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