David Dinis(1)
A. Direitos adquiridos sob ameaça
Quando uma
raposa ronda a capoeira, os moradores cacarejam a rebate, pois têm o instinto
inato para prever que, se ninguém lhes valer, acabarão na barriga do carnívoro
astuto e persistente. O mesmo sucede com os portadores de direitos adquiridos e
os que creem que já adquiriram algum direito. Nunca se ouviu falar tanto nestes
direitos como nos últimos tempos, haja ou não conhecimento suficiente do
respetivo significado. São compreensíveis as reações e os estados de alma de
quem é obrigado a pôr as barbas de molho, dada a maior ou menor possibilidade
de ser atingido pela inevitável onda de redução dos direitos (adquiridos ou por
adquirir).
Quase todos
conhecem – mas muito poucos têm a coragem de reconhecer – o
hiato abissal que vem separando os portugueses que possuem ou pensam possuir
direitos adquiridos dos que têm a mera obrigação de se conformar com as leis
que cada vez menos direitos lhes vão consagrando. Somos um povo que consegue
garantir o equilíbrio social convivendo pacífica e conscientemente com uma
balança em que num prato está a defesa acérrima dos direitos adquiridos e no
outro está um conjunto quase vazio de expectativas.
Trata‑se
assim de um tema onde é fácil aplicar o princípio de Maquiavel – não
sei se também maquiavélico, na aceção menos favorável ou até pejorativa que
vulgarmente é atribuída – sobre a necessidade de dividir para reinar. De
facto, perante a falta de equilíbrio em matéria de direitos adquiridos, não
admira que aos decisores não reste outra alternativa que não seja a
iniciativa – umas vezes mais homologada do que outras – de
distinguir os cidadãos, pois desse modo a batalha não é tanto entre os
governantes e os portugueses mas sim sobretudo entre os próprios portugueses.
Existem
várias situações que ilustram a volatilidade temporal das perspetivas jurídica
ou sindical acerca dos direitos adquiridos. Cingir‑me‑ei à área das
compensações indemnizatórias por cessação dos contratos de
trabalho – doravante, para atalhar a exposição, as menções têm
subjacentes os contratos de trabalho sem termo –, por duas razões: creio
ser um dos processos isolados onde o tema dos direitos adquiridos acabou, após
algumas experiências legislativas, por ser abordado de forma minimamente sensata
e equilibrada, e para além disso constitui uma boa referência do que pode ser
identificado como práticas sindicais incorretas.
Frise‑se que,
ao ter qualificado a solução encontrada como sensata e equilibrada, não quero
transmitir a ideia de que o valor das indemnizações resultante da atual
legislação é ou deixa de ser suficiente – claro que para os
trabalhadores o montante compensatório é sempre diminuto e para os patrões é
demasiado excessivo. Pretendo unicamente manifestar a opinião de que entendo
ter havido, naquele processo, a preocupação simultânea de assegurar um razoável
tratamento não discriminatório entre os antigos e os novos trabalhadores, por
um lado, e de garantir um adequado nível de segurança jurídica para não
prejudicar sobremaneira as expectativas das pessoas com antigos contratos pelo
facto de as regras terem sido modificadas, por outro.
Em seguida
explicar‑se‑á de forma sucinta a longa gestação de quase dois anos para
alcançar o resultado final de tornar a lei laboral mais flexível no que se refere
especificamente às indemnizações por despedimento, que culminou numa
convergência porventura aceitável entre os direitos atribuídos aos antigos e
aos novos trabalhadores. Posteriormente, e tendo como ponto de partida esse
aspeto específico da lei laboral, será analisada a postura dos sindicatos em
relação à defesa dos interesses dos trabalhadores.
B. Convergência das indemnizações por despedimento
As
compensações indemnizatórias por despedimento são uma área que foi objeto de
duas – três, em rigor – alterações desde 2011. Apesar de a
última modificação (ocorrida em 2013) ter aligeirado bastante, conforme
mencionado, a clivagem entre os antigos e os novos contratos de trabalho,
cumpre realçar que a primeira delas – Lei nº 53/2011, de 14 de
outubro –, fazendo jus ao desiderato dos paladinos dos direitos
adquiridos, permitia separar, sem apelo nem agravo, os trabalhadores em dois
conjuntos, consoante os contratos tivessem sido celebrados até 31/10/2011 ou
após esta data.
As regras
introduzidas pela lei de 2011 centravam‑se somente nos novos contratos de
trabalho. Logo, para os despedimentos futuros que abrangessem antigos
contratos, a lei conferia aos trabalhadores despedidos o direito a uma compensação
ilimitada, correspondente a um mês (ou 30 dias) de retribuição‑base e
diuturnidades mensais – salário, daqui em diante – por cada
ano completo de antiguidade. Para os novos contratos, a compensação baixava
para 20 dias, com a agravante de se ter passado a considerar o limite máximo de
18 anos de antiguidade – ou 12 salários, equivalentes a
18 x 20 / 30. Ou seja, as indemnizações para os novos
contratos de trabalho reduziam‑se, no mínimo, ⅓ face ao regime anterior. Para o
caso de uma antiguidade de 25 anos, por exemplo, a penalização total
(decorrente da passagem de 30 para 20 dias, por um lado, e da limitação da
antiguidade, por outro) aumentava de
33,(3)% – 1 - 20 / 30 – para
52% – 1 - (18 x 20 / 30) / 25.
Indicou‑se
atrás que, em rigor, foram efetuadas três alterações ao Código do Trabalho (no
tocante ao sistema de compensação por cessação dos contratos de trabalho).
Contudo, parece que com a segunda alteração – Lei nº 23/2012, de
25 de junho – o objetivo era tão‑só integrar no mesmo artigo os dois
regimes que passaram a existir com a precedente lei de 2011 – 30 dias
para os antigos contratos e 20 dias para os novos. Ao realizar tal integração,
admite‑se que o legislador tenha descuidadamente repristinado a compensação
ilimitada de um mês de salário por cada ano de antiguidade para os detentores
de contratos de trabalho celebrados entre as datas de produção de efeitos dos
dois diplomas.
Dado que a troika não se mostrou convencida com a
reforma da lei laboral que havia sido encetada relativamente ao valor das
indemnizações por despedimento, procedeu‑se a mais uma revisão – Lei
nº 69/2013, de 30 de agosto –, na sequência da qual os montantes da
compensação devida por cessação dos contratos de trabalho sofreram outro corte
significativo, tendo os mesmos – a fazer fé nos elementos disponibilizados
para o público – ficado alinhados com a média dos países europeus. A
recente lei de 2013 começou a produzir efeitos em 01/10/2013, ou seja, apenas
23 meses depois do início da vigência da primeira lei (de 2011).
Para os novos
contratos, celebrados a partir de outubro de 2013, a indemnização corresponde a
12 dias de salário por cada ano de antiguidade, adotando‑se desta vez o limite
máximo de 30 anos de antiguidade – apesar de na lei de 2011 admitir‑se
um limite mais baixo (de 18 anos), o valor da compensação quando atingida a
antiguidade máxima será o mesmo, visto que tanto 18 anos na lei de 2011 como 30
anos na de 2013 correspondem aos mesmos 12 salários
(18 x 20 / 30, na primeira, e
30 x 12 / 30, na última). Portanto, para os novos contratos
de trabalho, o decréscimo da indemnização em comparação com o regime anterior
cifrou‑se em 40% – 1 - 12 / 20 –; face ao
regime antecedente à primeira alteração, a redução foi, no mínimo,
60% – 1 - 12 / 30, para antiguidades não
superiores a 30 anos.
Para além da
modificação do regime aplicável aos novos contratos, a lei de 2013 abrangeu os
antigos contratos. Para os contratos celebrados até 31/10/2011, foi instituído
um algoritmo de aplicação transitória e algo labiríntica que pode envolver o
cálculo de várias parcelas – para os contratos que em 01/10/2013
ainda não tinham três anos determinam‑se quatro parcelas (usando para o efeito,
em cada uma delas, 30, 20, 18 e 12 dias). Simplificando, retira‑se do algoritmo
que para os contratos vigentes em 30/09/2013 a indemnização ficará congelada ao
valor calculado com base na antiguidade nessa data, independentemente do
momento de ocorrência do despedimento, nos casos em que daí resultar uma
compensação superior a 12 salários, ou seja, o trabalhador mantém o direito já
formado mas não acumula mais antiguidade. Nos demais casos, a indemnização
máxima estará limitada a 12 salários, à semelhança do que ocorre com os novos
contratos.
Pelo exposto,
confirma‑se que com a lei de 2011 não houve, por parte do Governo e dos
parceiros signatários do acordo de concertação social, qualquer pejo em assumir
que para os trabalhadores com antigos contratos as regras seriam totalmente
distintas das aplicáveis aos trabalhadores com novos contratos. Ao invés, com a
lei de 2013 criou‑se, para os antigos contratos, uma espécie de direitos
adquiridos de segunda ordem, assentes não na aplicação cega e integral das
regras vigentes à data de produção de efeitos da nova lei – como
acontecera com a lei de 2011 – mas sim no montante reportado a essa
mesma data calculado com as regras então vigentes – figura do
congelamento do benefício, expressa na penúltima frase do parágrafo anterior.
Voluntariamente ou não por parte dos sindicatos, conseguiu‑se que o resultado
não fosse tão discriminatório como o que sucedera com a lei de 2011. De facto,
e apesar de haver a noção de que a discriminação não poderia ser eliminada
(dado que tal eliminação significaria forçosamente que as regras manter‑se‑iam
inalteradas), cumpre reconhecer que nalgumas situações ela pode ser acentuada,
pois por exemplo para os trabalhadores que antes da entrada em vigor da nova
lei tivessem 20 anos de antiguidade, a respetiva indemnização na eventualidade
de despedimento seria de 20 salários à luz da antiga lei, e será de somente
oito salários segundo a nova lei.
Através do
Acórdão nº 602/2013, de 20 de setembro, o Tribunal Constitucional
pronunciou‑se sobre a inconstitucionalidade de um conjunto de alterações ao
Código do Trabalho, que abrangeu o despedimento por extinção do posto de
trabalho, a cessação dos contratos de trabalho por inadaptação ao exercício das
funções e a sobreposição da lei laboral em relação aos contratos coletivos (no
que respeita nomeadamente ao descanso compensatório e à majoração das férias).
Constata‑se assim a contrario que
aquele tribunal entende que o decréscimo acentuado dos montantes compensatórios
por despedimento não fere qualquer preceito constitucional. É curioso que aqui,
e também de forma voluntária ou não, os constitucionalistas, em geral, e os
juízes do Tribunal Constitucional, em especial, ter‑se‑ão conformado com a nova
versão light dos direitos
adquiridos – direitos adquiridos de segunda ordem, como explicitado
no último parágrafo – (aparentemente) imposta pela troika, atendendo a que não formularam
observações ou pareceres de opinião contrária. Isto talvez se tenha verificado
porque implicitamente existe uma escala de prioridades no vasto domínio dos
direitos adquiridos e, no contexto do respeito gradativo pela Constituição da
República Portuguesa, os constitucionalistas entendem que os direitos provindos
do despedimento por cessação dos contratos de trabalho aproximam‑se de um nível
inferior da escala. Por agora nem vale a pena entrar nesse domínio, para não
nos desviarmos da rota definida. Centremo‑nos então na prática sindical.
C. Atuação dos sindicatos
Desconhece‑se
se tem sido por dolo ou por nescidade que, no que concerne aos direitos
adquiridos, os sindicatos são um dos engenheiros da criação de castas de
trabalhadores. Ainda que se esgrimam em argumentos durante o processo negocial,
o produto final tem sido quase invariavelmente o mesmo, como a lei de 2011 pôde
comprovar: os sindicatos acabam por salvar o grupo dos trabalhadores que
possuem contratos de trabalho mais antigos e, em contrapartida, por sacrificar
o grupo dos que têm contratos mais novos, com o resultado flagrante e grave de
os interesses dos sindicalistas que participam nas negociações ficarem mais ou
menos blindados pela razão de pertencerem àquele primeiro grupo. Têm‑se
registado inúmeros exemplos desse tipo de resultado final das negociações,
sobretudo quando envolvem matérias de índole pecuniária.
É
racionalmente compreensível que as corporações patronais não se oponham de
forma tenaz à discriminação entre trabalhadores, dado que para elas, na
essência, terá de relevar mais o critério da eficiência e não tanto o da
equidade. O que legítima e compreensivelmente as move é o lucro dos elementos
que as integram, e nesse sentido elas maximizam o seu papel de maneira eficaz.
Lamentavelmente não se pode dizer o mesmo acerca da eficácia dos sindicatos.
Estes deveriam ser norteados sempre por critérios de equidade – ao
invés de eficiência –, e como tal o seu papel teria de consignar‑se
escrupulosamente à pugnacidade dos interesses dos seus aderentes.
O equilíbrio
de bem‑estar alcança‑se se cada uma das partes – corporações
patronais e entidades sindicais – desempenhar a sua função do modo
que lhe compete e para a qual está mandatada pelos correspondentes
representados. Quando uma das partes falha na sua missão, o desequilíbrio surge
ou agrava‑se, invariavelmente com o prejuízo dos mais fracos, que no caso em
apreço são os novos trabalhadores. Convinha que os sindicatos fizessem um exame
de consciência sobre estas agres evidências.
Se os
sindicatos concluem que não conseguem obter os seus ardentes anseios, então
jamais podem resignar‑se e pactuar, em jeito de Pilatos, com a injustiça,
deixando cair os interesses de uns trabalhadores em detrimento dos de outros e
assim agravar o fosso entre eles. A defesa do princípio do mal menor ou da
minimização dos estragos reveste uma atitude indigna por parte dos sindicatos,
por ser a confirmação tácita que para eles há uns que são tratados como filhos
e existem os outros. É uma postura pouco democrática, com características
dinásticas ou de morgadio, e portanto totalmente desfasada do tempo.
Os combates
sindicais são um dos poucos domínios onde, a meu ver, a nobreza é reconhecida
quando existem lutas não vacilantes pelo bem grupal, ainda que motivadas por
ideais utópicos ou pouco consistentes, e não quando há negociações que, sob o
objetivo – ainda que muito meritório – de alcançar um
desejável equilíbrio, findam na divisão do grupo. Qualquer sindicalista que
interiorize os valores de justiça e se orgulhe da sua suprema função, nunca deverá
permitir a discriminação entre trabalhadores – seja em que área
for –, e terá de colocar no seu missal reivindicativo regras elementares
que permitam afastar qualquer situação de conflito de interesses.
Para o seu
próprio bem, é necessário que os sindicatos se adaptem ao mundo de hoje e
assumam valores de efetiva e permanente lealdade e fraternidade. As suas
decisões devem ser salomónicas. Quando os sindicatos não promovem a honesta
coesão, questiona‑se a importância dos mesmos nomeadamente para os trabalhadores
mais novos. Já há muito que os sindicatos deveriam libertar‑se tanto da utopia
que tantas vezes tolhe o seu pensamento, como de alguns interesses mais
mundanos que não credibilizam a sua imagem, e rebatizar‑se nos princípios puros
da sempre atual glasnost e sob a luz
de uma troika mais
aberta – a perestroika.
10 de outubro de 2013
(1) FRES - Fórum de Reflexão Económica e Social
(1) FRES - Fórum de Reflexão Económica e Social

