O baixo no Fado (05/05/2020)
O texto abaixo apresentado, alusivo à origem da viola-baixo no Fado,
permite corrigir alguns erros que frequentemente são divulgados ao
público. A publicação do mesmo mereceu o consentimento dos seus
autores, a quem agradeço e o Fado por certo também agradece. (#)
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A ORIGEM DA VIOLA‑BAIXO NO FADO
I. Viola‑baixo, uma das poucas certezas do Fado
O Fado traz ocultos dentro de si diversos segredos. Os investigadores não conseguem que ele sequer confesse qual a sua verdadeira origem. Também não o convencem a expor objetivamente como foi introduzida, na sua arte, a guitarra e a viola. Em rigor não são segredos, mas antes dúvidas permanentes, às quais nem ele próprio sabe responder porque não tem a memória necessária que lhe permita dar respostas inequívocas.
Todavia, uma das exceções às diversas dúvidas do Fado reside no seu terceiro instrumento: o baixo acústico. Este é o instrumento que completa a harmonia existente na mais genuína aceção do Fado. O quadrilátero do Fado implica a articulação e o respeito entre os elementos que o compõem: voz, guitarra, viola e viola‑baixo.
Posto isto, as dúvidas sobre a génese da voz, da guitarra e da viola não são minimamente aplicáveis à certeza do baixo. Freitas da Silva foi o primeiro tocador de viola‑baixo em espetáculos de fado, por iniciativa de Martinho d’Assunção Jr., conforme se explica de seguida.
II. Da ideia mentora de Martinho d’Assunção Jr. às execuções pioneiras de Freitas da Silva e de Alberto Correia
De acordo com a informação disponível na Internet (nomeadamente no site do Museu do Fado e na página do cordofonista e colecionador de cordofones José Lúcio), Martinho d’Assunção Jr. dirigiu, em 1937 e 1938, a Trupe de Fado por si constituída, composta pela voz de Constança Maria, pelas guitarras de Fernando de Freitas e de Francisco Carvalhinho, e pelas violas do próprio Martinho e de Duarte Costa (que viria a fazer escola na viola clássica – sendo criador de um método de ensino próprio –, e que foi aluno do Professor Martinho). Atendendo à existência de duas violas, Martinho d’Assunção Jr. colocava Duarte Costa na função de viola de acompanhamento.
Porém, o talento e a inspiração singulares de Martinho d’Assunção Jr. impuseram‑se‑lhe, obrigando‑o a ultrapassar os tradicionais cânones musicais da arte fadista, ou não fosse ele aquele miúdo que, no auge da sua ingénua dúzia de anos, ombreou com o genial Armandinho, para espanto incontido deste guitarrista. O histórico encontro entre essas duas gerações ocorreu quando Martinho d’Assunção Jr. teve de substituir o seu mestre de viola, João da Mata Gonçalves, num espetáculo realizado no Teatro Luísa Todi, em Setúbal.
Acima de tudo, Martinho d’Assunção Jr. amava a música, em geral, e o Fado, em especial. Foi na transição da década de 30 para a de 40 do séc. XX que Martinho d’Assunção Jr. sugeriu uma virtuosa (r)evolução, a qual marcou indelevelmente o destino do Fado: a introdução do baixo acústico. A partir daí, os espetáculos de fado conduzidos por Martinho d’Assunção Jr. passaram a ser realizados com a presença de mais um instrumento.
Por autoria de Martinho d’Assunção Jr., o seu amigo de infância e vizinho Freitas da Silva trouxe para o Fado o que até então se encontrava confinado às orquestras típicas (muito em voga na época): a viola‑baixo. Foi um êxito, pois o baixo veio completar o ritmo e preencher a harmonia dos fados. Estava assim descoberta a importância da viola‑baixo no Fado.
Para assegurar maior rigor, importa salientar que nesse tempo a novidade da viola‑baixo passou a marcar presença nos espetáculos de fado, mas não nas casas de fado. Os donos destas, em vez de pagar a mais um músico, preferiram continuar a dispor apenas da guitarra e da viola de fado. A fotografia da página 7 da brochura publicada em 2014 pelo Museu do Fado, alusiva à comemoração do centenário do nascimento de Martinho d’Assunção Jr., atesta que, já em 1942, o baixo era presença assídua no Fado. Trata‑se de uma foto que inclui os cinco elementos do Conjunto Artístico Português: as guitarras de Jaime Santos e de Fernando de Freitas, as violas de Martinho d’Assunção Jr. e de Miguel Ramos, e a viola‑baixo de Freitas da Silva. Foi tirada no Parque Mayer, em concreto na sala de espetáculos Casablanca – espaço que, a partir de 1956, foi convertido no Teatro ABC.
Depois da morte de Freitas da Silva, em 1943, o quinteto desfez‑se. De seguida, Martinho d’Assunção Jr. formou e dirigiu o Quarteto Típico de Guitarras de Martinho d’Assunção, mantendo um lugar reservado ao baixo. Martinho d’Assunção Jr. preencheu a memória do companheiro Freitas da Silva com a presença de um famoso violista que trabalhava numa casa de fado: Alberto Correia. Este manteve‑se no Quarteto entre 1944 e 1949. Com base na primeira fotografia da página 8 da mencionada brochura publicada pelo Museu do Fado, tirada em 1948, o grupo era constituído por Francisco Carvalhinho e Jaime Santos, nas guitarras, Martinho d’Assunção Jr., na viola, e Alberto Correia, na viola‑baixo. Alberto Correia saiu do Quarteto para retomar a sua atividade de violista nas casas de fado.
III. Joel Pina, o terceiro baixista, mas o mais emblemático
Depois de Freitas da Silva e de Alberto Correia, a terceira menção do baixo no Fado tem o nome do incontornável Joel Pina. Para ocupar a função deixada vaga com a saída de Alberto Correia – em 1949, conforme acima subentendido –, Martinho d’Assunção Jr. convidou o seu aluno de viola Joel Pina, um músico amador que há vários anos se radicara em Lisboa (desde 1938), e que até à época do convite passara por algumas casas de fado. Transmitiu‑lhe a especificidade da viola‑baixo no Fado.
A partir dessa transmissão de conhecimento e da total dedicação ao novo instrumento, Joel Pina tornou‑se músico profissional. Tocou baixo no Quarteto até aos primeiros anos da década de 50, altura em que passou para o elenco da Adega Machado, a convite do seu amigo Armando Machado. A segunda foto da supracitada página 8 da brochura comprova que, em 1950, o Quarteto era formado pelas guitarras de Francisco Carvalhinho e de António Couto, pela viola de Martinho d’Assunção Jr., e pela viola‑baixo de Joel Pina.
Logo, Joel Pina contribuiu para que o baixo acústico no Fado criasse definitivamente eternas raízes. Adiante‑se que os quarto e quinto violas‑baixo que compuseram o Quarteto Típico de Guitarras de Martinho d’Assunção foram Liberto Conde e Vítor Ferreira. Por ser músico na banda da GNR e, para além disso, por já ter tocado guitarra portuguesa, Liberto Conde adaptou‑se com facilidade ao baixo. Ainda maior facilidade no contacto com a viola‑baixo encontrou Vítor Ferreira, pois era um músico que tocava este instrumento na orquestra típica dirigida pelo Maestro Belo Marques.
Embora Joel Pina tenha sido apenas o terceiro baixo do Fado, detém o incontestável mérito de ter ousado arriscar. Foi o primeiro – e porventura o único até aos dias de hoje – que, uma vez tocada a viola‑baixo, nunca mais a largou. Inovou e especializou‑se.
Com efeito, Joel Pina colocou no baixo uma afinação invulgar, igual à existente nos bandolins, justificada pela circunstância de o primeiro instrumento com quem confessou emoções na infância ter sido um bandolim – note‑se que, na sua juventude, ele também teve lições de guitarra portuguesa. Normalmente uma viola‑baixo é afinada (do som mais agudo para o mais grave) em sol, ré, lá e mi. Ao invés, Joel Pina trouxe para o seu baixo uma afinação invertida: mi, lá, ré e sol (do mesmo modo, do agudo para o grave), a afinação estandardizada usada nos bandolins e nos violinos.
A afinação de Joel Pina institucionalizou‑se no Fado, ou melhor: singularizou‑se. E singularizou‑o, ao ponto de, nos meandros, o artista e a arte musical constituírem a alma e o corpo da mesma unidade indivisível. Mais tarde, Amália Rodrigues, senhora de níveis de exigência e sensibilidade únicos, que aprofundou e avolumou o Fado em todas as dimensões, não se coibiu de defender que «O Joel toca baixo; os outros tocam baixinho.» Ele foi o músico que mais tempo acompanhou a diva: cerca de três gloriosas décadas de espetáculos por todo o Mundo. E foi o único músico que fez parte dos dois maiores conjuntos de guitarras com quem o Fado alguma vez se cruzou: Quarteto Típico de Guitarras de Martinho d’Assunção e Conjunto de Guitarras de Raul Nery.
Por tudo isso, o viola-baixo recém‑centenário tem sido frequentemente confundido com o próprio instrumento musical. A sua especialização praticamente eliminou a concorrência dos demais violistas de fado que, com facilidade, poderiam adaptar a viola ao som do baixo ou mesmo tocar viola‑baixo. Com o ensinamento e a orientação de Martinho d’Assunção Jr., Joel Pina entrou no Fado, acabando por colocar, para sempre, o Fado ainda mais alto através do seu baixo.
IV. Conclusão
Martinho d’Assunção Jr. idealizou o enriquecimento musical do Fado, acrescentando à viola o suporte do baixo acústico. Freitas da Silva executou essa ditosa ideia, ficando portanto igualmente na História do Fado. Alberto Correia trilhou o caminho do seu antecessor executante, passando então o Fado a ter, quando era possível pagar a mais um músico, a companhia de uma viola‑baixo. E Joel Pina transportou o seu conhecimento do bandolim para o baixo, criando uma afinação diferente, sendo por isso totalmente unânime o reconhecimento de que foi uma figura que elevou deveras o Fado, conferindo‑lhe uma maior amplitude.
Assim sendo, a introdução da viola‑baixo no acompanhamento do Fado não constitui um dos diversos segredos que o Fado oculta no seu interior. Pelo contrário: é consabido que o mentor da introdução do baixo no Fado foi Martinho d’Assunção Jr., e que o primeiro músico que acompanhou o Fado com viola‑baixo foi Freitas da Silva. O segundo foi Alberto Correia. Joel Pina foi o terceiro executante, outrossim no Quarteto Típico de Guitarras de Martinho d’Assunção, o berço dos primeiros baixistas de Fado. Esta é a verdade que o Fado tem para divulgar a todos, dos mais simples aos mais profissionais.
Lisboa, 19 de maio de 2020
Jorge Carriço Vital d’Assunção Vítor de Araújo
(#)
No último 5 de maio foi publicado um texto, datado de 4 de março de 2020, com o objetivo de esclarecer os apreciadores do Fado e as instâncias oficiais acerca da origem da viola‑baixo no mundo do Fado. O texto teve de ser corrigido porque continha um erro, razão pela qual em 19 de maio o post foi modificado.
Assim, onde estava «Este é o instrumento que completa a melodia existente na mais genuína aceção do Fado», passou a estar «Este é o instrumento que completa a harmonia existente na mais genuína aceção do Fado».
Apesar de essa gralha em nada alterar o teor das conclusões do documento, os autores fizeram questão de assegurar o rigor da informação transmitida, pois o Fado deve ser, sempre e acima de tudo, rigoroso e verdadeiro.
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