Enquanto procurava um documento de que necessitava,
cruzei‑me com uma pasta na qual existiam vários papeis relacionados com uma
dívida de um ex‑proprietário (de uma fração de um prédio) perante o condomínio.
Mesmo sendo uma dívida face à qual eu era apenas um dos seis interessados – e
para mais reportando‑se a dívida a um período em que nada tinha a ver com o
prédio, por ainda não pertencer ao condomínio –, fiz várias diligências e
tentativas, presenciais e telefónicas, para que o incumpridor regularizasse a sua
conta. Em vão.
Peguei então em mim e fui ao local de trabalho desse
ex‑proprietário, na altura um major das Forças Armadas. Ele não se encontrava
no local, pelo que pretendi falar com o responsável hierárquico, que direcionou
o assunto para a sua secretária. O acontecimento reporta ao final de 2006.
Pouco depois, recebi de uma advogada uma cartazita de duas
páginas pouco preenchidas – com somente 24 curtas linhas bem
espaçadas e com diversos erros ortográficos –, a ameaçar-me com a possível
abertura de um processo de queixa‑crime por difamação (por ter ido ao local de
trabalho do militar tentar cobrar a dívida). Respondi‑lhe no final de janeiro
de 2007 com uma cartazona (de 18 páginas – das quais sete referiam‑se
a anexos –, perfazendo 518 linhas), que até hoje continua a aguardar uma resposta,
nem sequer uma única linha a acusar a receção.
Passados uns meses, em meados de junho, remeti‑lhe
outra carta – na qual escrevi apenas que «No dia 26 de Janeiro p.p.
enviei a V. Exa. uma missiva, como resposta à sua carta do dia 2 desse mês.
Como ainda não houve qualquer tipo de contacto por parte de V. Exa., venho por
este meio solicitar‑lhe que me possa informar sobre a decisão do seu cliente
relativamente ao processo epigrafado» [«Assunto: Processo da dívida do Senhor X
ao condomínio»] –, que também não granjeou qualquer resposta.
Dado que o condomínio passou a ser gerido por uma
empresa, dei a esta a informação das “etapas” por mim desencadeadas (acerca da minha
relação com o major e a sua advogada), de modo a que ela atuasse de modo a que o
militar regularizasse a sua dívida de uns míseros 480€ ao condomínio
(referentes aos anos de 2001 a 2004). Como os condóminos não mostraram grande
interesse em resolver o assunto, e em virtude de a dívida não ser perante mim e
referir‑se a um período em que eu não era proprietário, nada mais efetuei.
Em rigor, «nada mais efetuei» não é a expressão
correta. O assunto em apreço, marcadamente do foro privado, valeu por ter‑me
obrigado a refletir sobre a atitude do militar caloteiro. Por outras palavras:
a resignação do condómino transformou‑se numa breve reflexão sobre um aspeto
específico da justiça. O título do presente post
é igual ao assunto de uma carta que remeti em abril de 2007 ao Ministro da
Justiça, da qual dei conhecimento na mesma data ao Ministro da Defesa Nacional,
tendo os respetivos chefes do gabinete a gentileza de agradecer o envio da
minha carta.
Felizmente de então para cá muito melhorou na justiça,
e em concreto no tocante ao processo de arbitragem na esfera da justiça. Talvez
não tenha melhorado tanto como propus e, acima de tudo, como o País continua a
precisar, mas haja esperança para que as mudanças se operarem mais depressa do
que a programada passagem contínua do tempo. Passo a transcrever a reflexão
partilhada com os dois ministros.
«
Exmo. Senhor
Ministro da Justiça,
A presente
carta tem por objectivo partilhar com V. Exa., digníssimo responsável pela
pasta da Justiça do nosso País, algumas perspectivas sobre a relação entre
justiça e desenvolvimento económico e social, por um lado, e sobre os deveres
cívicos dos militares, por outro. Pretendo também, em especial, apresentar de
forma resumida algumas propostas concretas relativas ao contributo da classe
militar para a melhoria do sistema judicial.
Subjacente a
essas propostas está a minha ideia de que os militares devem reger‑se por regras
que não se resumam apenas à esfera militar; julgo que eles devem cumprir
escrupulosamente os valores gerais da sociedade civil. Mesmo fora do exercício
das suas funções profissionais, penso que actualmente os titulares de cargos
militares têm o dever de actuar de forma condigna com os princípios que devem
ser cumpridos na vida militar. Acho, por exemplo, que os militares têm a
obrigação de defender o nome e os valores da instituição a que pertencem.
Entendo que a extensão dessa obrigação a outras áreas – entre elas as
relacionadas com o respeito dos valores cívicos universais – seria
benéfica tanto para a sociedade portuguesa como para as Forças Armadas.
A. Sistema
judicial como elemento fundamental do desenvolvimento
Muito se tem dito e escrito sobre a relação
entre o sistema judicial e o desenvolvimento dos países. É reconhecido que a
eficácia desse sistema é uma variável explicativa do desenvolvimento. A relação
entre a justiça e o desenvolvimento tem sido objecto de preocupação de vários
Governos, bem como de reconhecidas organizações internacionais.
A este propósito, pode dar‑se como exemplo a Resolução do Conselho de
Ministros n.º 122/2006, donde podem ser retiradas algumas observações:
·
Um dos
objectivos do Governo para esta legislatura [a que vigorava em 2007] é garantir
a efectividade dos direitos e deveres e tornar o sistema de justiça um factor
de desenvolvimento económico e social, o que implica uma reformulação do
sistema judicial;
·
Um dos meios para
alcançar esse objectivo é combater o descongestionamento
dos tribunais;
·
A
reformulação do sistema judicial terá de passar por uma maior celeridade e
eficácia relativa ao sistema de cobrança de dívidas;
·
É dada
igualmente prioridade ao fomento de mecanismos alternativos de resolução de
litígios.
Está provado
que a ineficácia dos sistemas judiciais, tal como os baixos níveis de
transparência das autoridades públicas, são grandes factores de descrédito dos
países, de afastamento do investimento e de atribuição de risco soberano e, por
isso, constituem entraves efectivos ao aumento da competitividade, à criação de
emprego e, assim, ao desenvolvimento. Por se tratar de matérias que afectam
directamente o desenvolvimento económico dos países, têm sido abordadas
inclusivamente pela própria OCDE. Através da leitura de um relatório (de Abril
de 2006) sobre Portugal, elaborado por essa organização internacional, conclui‑se
que existe necessidade de serem criados mecanismos mais eficazes que permitam
um ambiente mais dinâmico no mundo dos negócios. Penso que o Governo tem estado
atento a esta matéria, e nesse sentido tem tentado reestruturar o sistema
judicial, por forma a credibilizar as relações jurídicas no nosso País.
A
especialização dos tribunais e a criação de mecanismos alternativos de
resolução de litígios são duas reformas do sistema judicial português que têm
sido apontadas como necessárias.
B. Exemplos
de propostas a aplicar no âmbito da esfera militar
Tendo em
consideração os efeitos do sistema judicial no desenvolvimento nacional, bem
como a conduta cívica que deve estar intrínseca aos profissionais militares,
gostaria de apresentar a V. Exa. três propostas articuladas, as quais podem
contribuir para aproveitar os recursos disponíveis de modo mais eficiente e
aumentar a eficácia da justiça. Contribuem, ao mesmo tempo, para o reforço do
prestígio dos profissionais militares e para o reconhecimento crescente da
classe militar por parte da sociedade civil.
As propostas
consistem num sistema integrado de resolução de litígios de pequena ou média
importância em que pelo menos uma das partes seja militar – propostas
B.1, B.2 e B.3 seguidamente explicadas. Pretende‑se que este sistema funcione
como um mecanismo dissuasório de acesso aos tribunais, permitindo portanto uma
melhor utilização dos recursos afectos ao aparelho judicial, e para além disso
pretende‑se que enriqueça o exercício do dever cívico dos militares. Como se
depreenderá, os profissionais com genuíno espírito militar nada têm a recear
dessas propostas.
Nos últimos
dois parágrafos da secção D da presente carta são também mencionados muito
sucintamente outros mecanismos alternativos de resolução de litígios quando
estejam envolvidos militares.
B.1. Tribunais
arbitrais cíveis para litigantes militares
Os quadros
seguintes sintetizam a minha proposta. No quadro 1 é comparada a proposta com o
regime actual de funcionamento dos tribunais arbitrais. O regime proposto
aplica‑se somente aos casos onde pelo menos uma das partes envolvidas seja um
profissional militar[1]. O
quadro 2 ilustra o regime aplicável – o “Regime actual” ou o “Regime
proposto”, de acordo com a terminologia constante desse quadro –, em
função da natureza (civil ou militar) quer da parte que solicita a utilização
desses tribunais, quer da outra parte.
Quadro 1
|
|
Regime proposto
|
Regime actual
|
|
Forma de utilização
|
Utilização
obrigatória dos tribunais arbitrais, se uma das partes for militar e qualquer
uma das partes a solicite
|
Utilização
voluntária dos tribunais arbitrais, se ambas as partes assim decidirem[2]
|
|
Pagamento das custas
|
Custas assumidas
pela parte perdedora
|
?[3]
|
Quadro 2
|
|
Outra parte
|
||
|
Civil
|
Militar
|
||
|
Parte que solicita a utilização dos tribunais
arbitrais
|
Civil
|
(a) Regime actual
|
(b) Regime proposto
|
|
Militar
|
(c) Regime proposto
|
(d) Regime proposto
|
|
O
funcionamento proposto para esses tribunais seria simples. Se uma das partes
envolvidas fosse militar, a outra parte – seja civil ou
militar – poderia accionar este mecanismo ágil para dirimir os
litígios, e as custas seriam suportadas pela parte perdedora.
A
característica que considero mais importante nesta proposta reside no direito
de apenas uma parte solicitar a intervenção desse tipo de tribunais arbitrais,
independentemente da vontade da outra parte[4].
Como se conclui pela análise do quadro 2, com o “Regime proposto” o direito de
solicitar a utilização desse tipo de tribunais arbitrais teria dois sentidos:
(i) o direito de um civil ou um militar solicitar a intervenção desses
tribunais, independentemente da vontade da outra parte, mesmo sendo um
militar – células (b) e (d) –; e (ii) o direito de um
militar solicitar a intervenção desses tribunais, independentemente da vontade
de um civil ou de um outro militar – células (c) e (d). Na subsecção
B.3 serão retomados esses dois tipos de situações (i) e (ii), para concretizar
exemplos aí apresentados.
Assim sendo,
a utilização obrigatória de tribunais arbitrais destinados exclusivamente a
litígios relacionados com matérias de índole civil de pequena ou média
importância (sendo pelo menos uma das partes um cidadão militar) podia traduzir‑se
na poupança de recursos judiciais. Este tipo de tribunais constituiria uma fase
anterior e de triagem em termos de acesso aos tribunais comuns. Veja‑se a
situação (i) indicada no último parágrafo. Não dependendo da vontade dos
militares a utilização desses tribunais arbitrais, seria de esperar que, antes
da outra parte solicitar tal utilização, os profissionais das Forças Armadas
não se submeteriam ao processo judicial quando sentissem que não tinham a razão
do seu lado[5].
Haveria que
definir o conceito de «matérias de índole civil de pequena ou média
importância», mas neste momento isso é pouco relevante. O mais importante é
que, por essa via, aumentar‑se‑ia a eficácia dos tribunais comuns e a
eficiência dos meios existentes, pois afastar‑se‑iam dos tribunais comuns – e
até mesmo desses tribunais arbitrais – a grande maioria dos casos
que, por nítida falta de bom senso (seja dos civis ou dos militares), hoje em
dia só é possível resolver com burocracia, advogados e recursos judiciais.
Pode parecer
ambiciosa a concretização desta medida, e à partida poderia causar algum
incómodo no seio da classe militar – sobretudo devido à situação (i)
já indicada –, pois constituiria uma enorme alteração nas relações entre
os militares e a sociedade civil em matérias que não são exclusivamente da
esfera militar. Penso contudo que a medida, em articulação com as duas outras
propostas a seguir apresentadas, enalteceria o prestígio dos militares e a
imagem carismática que o País tem tido em relação aos elementos das Forças
Armadas.
De qualquer
modo, como forma de atenuar ou dissipar o eventual incómodo atrás referido,
seria admissível que esses tribunais arbitrais estivessem sob a alçada militar.
Mas seria um assunto a aprofundar.
Parece que à
luz do actual regime, os militares, tal como os demais cidadãos, podem
“refugiar‑se” nos tribunais (i.e., nos tribunais comuns) para poderem incumprir
os seus deveres cívicos mais elementares, favorecendo portanto o aumento do
número de processos nos tribunais (e por vezes a prescrição dos mesmos) e,
consequentemente, a afectação ineficiente dos recursos utilizados.
B.2. Recurso
aos tribunais comuns
Mesmo que as decisões dos tribunais
arbitrais não merecessem consenso entre as partes litigantes, seria sempre
possível recorrer aos tribunais comuns, tal como creio que agora acontece.
Contudo, com a criação de tribunais arbitrais cíveis para litigantes militares,
a possibilidade de recurso aos tribunais comuns funcionaria como uma segunda
etapa do processo judicial; a primeira seria o recurso aos tribunais arbitrais.
Hoje em dia,
em caso de falta de entendimento e de vontade das partes para resolver os
problemas de forma mais simplificada – incluindo através dos
tribunais arbitrais que já existem –, o processo judicial propriamente
dito inicia‑se nos tribunais comuns. Com a proposta atrás apresentada,
libertavam‑se dos tribunais comuns inúmeros processos, podendo por isso ser
bastante melhorado o uso racional dos recursos humanos e materiais do sistema
judicial português. Tratando‑se de processos onde pelo menos uma das partes
seja militar, e visto que a primeira etapa seria feita obrigatoriamente através
dos mencionados tribunais arbitrais, só seria possível o recurso aos tribunais
comuns se fosse esgotada a oportunidade de resolver os problemas num nível
inferior.
V. Exa.
permita‑me afirmar que, para matérias de índole civil de pequena ou média
importância, sendo pelo menos uma das partes um militar, com o recurso de
primeira ordem vinculativo para os tribunais arbitrais e de segunda ordem para
os tribunais comuns, as sentenças seriam mais céleres, deixaria de haver tantas
prescrições e elevar‑se‑ia a credibilidade da nossa justiça. Isto porque com o
novo regime o bom senso emergiria, permitindo resolver muitos litígios sem o
recurso aos tribunais (arbitrais ou comuns).
B.3. Sistema
de avaliação dos militares e progressão na carreira
Considero
que, para a avaliação dos profissionais militares e a respectiva progressão na
carreira, devem estar presentes tanto o exercício das suas funções como o
cumprimento dos deveres cívicos elementares que, sendo transversais a qualquer
cidadão, têm de ser verificados em permanência por qualquer militar.
Veja‑se o
seguinte caso – ainda que talvez possa não ser considerado de pequena
ou média importância, mas sim de grande importância. Entre dois militares com
as mesmas competências, qualificações e classificação no cumprimento de
objectivos relacionados com as suas funções militares, se um deles estiver
envolvido num processo de corrupção – ainda que efectuado no âmbito
estrito da sua vida civil –, espera‑se que não deva ter igual tratamento
face ao profissional que não está envolvido nesse tipo de processos.
As decisões
dos tribunais comuns ficariam registadas no processo do militar, e poderiam
funcionar como (de)mérito a considerar para efeitos da sua avaliação e
progressão na carreira. Numa situação de divergência entre dois litigantes (em
que pelo menos um deles é militar) relacionada com matérias de índole civil de
pequena ou média importância, e onde seja necessário envolver tribunais
arbitrais, se as decisões destes tribunais fossem objecto de recurso para os
tribunais comuns, e as decisões destes últimos fossem no mesmo sentido das dos
tribunais arbitrais, então parece facilmente poder identificar‑se qual a parte
que tem razão.
Veja‑se o
caso de uma situação do tipo (i) indicada no terceiro parágrafo da subsecção
B.1 em que os tribunais reconhecem que um militar está nitidamente desprovido
de razão[6].
Neste caso, visto que aos militares em geral é exigível uma visão racional e
objectiva dos factos, há que equacionar se a falta de razão e de bom
senso – que é reconhecida tanto pelos tribunais arbitrais como pelos
tribunais comuns – não pode afectar a postura que esses profissionais
devem ter mesmo no seio das funções militares.
Veja‑se outro
exemplo meramente ilustrativo duma situação do tipo (i): um militar que, na sua
vida civil, é propenso a envolver‑se frequentemente em rixas ou desacatos, que
prejudicam outras pessoas (independentemente de serem civis ou militares).
Considerando as propostas já apresentadas, parece lógico que, se esse militar
se recusar a pagar os prejuízos causados às outras pessoas, e se as sentenças
dos tribunais forem no sentido de que deve pagar, então o referido militar tem
uma conduta incorrecta que é socialmente reprovável e não compatível com a
função militar que desempenha e, por isso, em termos profissionais deve ser
preterido face aos colegas que têm uma conduta exemplar.
C. Conduta
cívica dos militares
O enfoque
neste momento será dado às situações do tipo (i) já mencionadas, ou seja,
quando um civil ou um militar pode solicitar a intervenção dos tribunais
arbitrais, qualquer que seja a vontade do militar acusado. Como se depreende do
que até aqui foi exposto nesta carta, a conduta cívica dos militares seria, por
excelência, uma das matérias a ser incluída no âmbito dos mecanismos propostos
na secção B.
De facto, a
sociedade civil confere aos militares direitos específicos mas, para além
disso, espera que eles dêem o exemplo em certas matérias. Nesse contexto,
apesar de os militares serem pessoas como as restantes, têm um dever de
respeitar rigorosamente a lei acima dos demais cidadãos. Por outras palavras:
os militares estão para os civis assim como o Estado está para o povo, ou um
pai está para os filhos.
Há regras que
são exclusivamente de índole militar; e digamos que isso é uma matéria do
Código Militar. De forma diferente devem ser vistas as regras do Código Civil,
as quais devem ser seguidas por qualquer cidadão, seja militar ou não. Por
outro lado, os portugueses têm associado a postura dos militares à ideia de que
estes cumprem os deveres cívicos elementares, essenciais para a desejável
vivência em sociedade.
É sob a
necessidade de não violar este princípio fundamental que se deve evitar que
condutas incorrectas por parte dos militares possam afectar a imagem
consuetudinária que se tem das Forças Armadas, no que tocante ao cumprimento da
ordem e dos bons costumes.
Entende‑se por isso que tentar reforçar
a articulação dos profissionais militares com a sociedade civil e, em
simultâneo, fortalecer ainda mais a ideia criada tradicionalmente sobre esses
profissionais enquanto pessoas exemplares na sua conduta e postura são
objectivos compatíveis com a melhoria da relação entre justiça e desenvolvimento.
D. Um
caso concreto
O meu pai, um pacato aldeão, cumpriu o serviço militar obrigatório na década
de 60. Certa vez um colega soldado, um astuto lisboeta de um bairro social,
pediu‑lhe dinheiro emprestado, e o meu pai na sua boa‑fé emprestou‑lhe, tendo
ficado acordado que o dinheiro seria devolvido no mês seguinte. Quando o colega
recebeu o pré – era este o termo usado para designar a remuneração
auferida pelos soldados que cumpriam o serviço militar obrigatório –,
“esqueceu‑se” da dívida e do que tinham combinado. O meu pai pediu‑lhe o
dinheiro. O colega disse‑lhe que não podia devolver o dinheiro nessa altura,
tendo então ficado combinado que a dívida ficaria regularizada no próximo mês.
Veio o outro mês, e o incumprimento repetiu‑se. Foi necessário o meu pai
dirigir‑se ao comandante da companhia para que a dívida fosse liquidada. A
liquidação foi feita imediatamente através do desconto no pré desse colega.
Este caso
permite concluir que, mesmo tratando‑se de um problema que não era do foro militar,
o superior hierárquico dispôs do poder suficiente para resolver o assunto que
envolvia dois soldados de uma forma simples e célere (não sendo portanto
necessário recorrer aos tribunais).
A questão que
agora faço é a seguinte: hoje em dia será possível resolver os problemas
particulares (i.e., relacionados com
assuntos não exclusivamente militares, e também com casos iguais aos de há mais
de quatro décadas) de um modo tão eficaz como nesse tempo?
Se sim, pode
equacionar‑se por que não alargar essa possibilidade aos casos em que uma das
partes não é um militar. Ou seja, a forma rápida e expedita de resolução de
problemas quando as duas partes envolvidas são militares poderia ser extensível
aos casos em que apenas uma parte é militar e a outra é civil. Seria um
mecanismo alternativo de resolução de litígios que contribuiria para
descongestionar os tribunais. Tal como há mais de quarenta anos atrás,
continuam a existir militares – sejam milicianos ou do quadro
permanente – que se “esquecem” de honrar as suas dívidas.
Se não, seria
conveniente adoptarem‑se mecanismos ágeis que permitam evitar a crónica
tentativa de resolução de problemas (simples) só através da intervenção dos
tribunais. A proposta apresentada em B.1 seria uma alternativa simples. Outra
alternativa seria retomar a tradição, dotando o sistema militar de formas que
permitam agilizar a resolução de pequenos ou médios litígios entre os
militares. Para além disso, seria extremamente útil, como atrás referi, alargar
às situações onde apenas um dos litigantes seja militar, sob pena de, para
litígios relativos a pequenas dívidas – do género do que aconteceu
com o meu pai – e outros processos pouco materiais, incorrer‑se no
risco de abusar dos tribunais, provocando o seu congestionamento.
E. Considerações
finais
A justiça é um
serviço público que deve ser eleito como prioritário por Portugal, por tratar‑se
de um pulmão do desenvolvimento nacional. Também da justiça depende a qualidade
do ar que o País respira. “Faça‑se justiça” é uma expressão popular que deve
ser rigorosamente cumprida, para o bem de todos. Só que fazer justiça não é
usar os tribunais como meio de protelar o cumprimento das obrigações. Isso é
servir‑se da justiça, desperdiçando recursos, e agravando o interesse
colectivo.
Mas mais grave do que este desperdício é
usar os recursos judiciais na expectativa de que a outra parte se resigne
perante o atraso das sentenças proferidas pelos tribunais ou até perante a
prescrição dos processos em tribunal, acabando por não se fazer justiça. Trata‑se
de um risco moral que, apesar de se estar a introduzir de forma subconsciente,
tem sido vulgar no sistema judicial português, e que em sociedades
verdadeiramente democráticas deve ser eliminado.
Outra característica paralela, e também
potencialmente grave do nosso sistema judicial, consiste na selecção adversa
relativa ao acesso aos tribunais. A inércia da justiça, materializada no atraso
das sentenças e na prescrição dos processos, pode afastar dos tribunais muitos
cidadãos e empresas, por uma questão de descrédito no sistema, o que afecta
bastante a confiança depositada na justiça, em particular, e em geral na
justiça portuguesa. A perda generalizada de confiança descredibiliza o País e
tem efeitos negativos galopantes no desenvolvimento económico, porque
condiciona profundamente as decisões dos investidores.
Só com a mudança radical do hábito
culturalmente enraizado de que tudo (somente) se resolve em tribunal é que se
criam as verdadeiras condições favoráveis ao investimento e desenvolvimento
económico e social. Nesta árdua tarefa todos os passos são necessários e bem‑vindos,
por pequenos que possam parecer.
Estando grato pela atenção dispensada,
subscrevo‑me de V. Exa. com os melhores cumprimentos.
»
[1] Quando não estiverem envolvidos litigantes que sejam militares,
continuar‑se‑iam a adoptar as regras vigentes aplicáveis aos tribunais
arbitrais. Trata‑se da situação correspondente à célula (a) do quadro 2,
preenchida com “Regime actual”.
[2] Não tenho a certeza.
[3] Desconheço.
[4] Pelo facto de a utilização desses tribunais não depender da existência
de acordo das partes, pode colocar‑se a questão de saber se, formalmente, os
tribunais arbitrais existentes podem resolver os casos onde não existe consenso
para recorrer aos tribunais.
[5] Tem‑se subjacente que, por inerência ao espírito militar, os profissionais
das Forças Armadas evitariam avançar para tribunal com os processos onde eles
estivessem envolvidos e em que eles próprios reconheceriam estar desprovidos de
razão.
[6] Esse militar correspondente à “Outra parte” inscrita no quadro 2
constante de B.1 (e não o militar referente à “Parte que solicita a utilização
dos tribunais arbitrais”).
