David Dinis(1)
A. Notas introdutórias
1. A sabedoria popular adverte que ovelha que bale,
bocado que perde. Nada mais verdadeiro no caso das parcerias público‑privadas (PPP)
lusitanas. Em abono da verdade, o adágio anterior e as observações formuladas
no presente documento acerca das PPP são facilmente extensíveis às rendas
excessivas no setor energético nacional – apenas dois exemplos
elucidativos do estado a que chegou o País.
2. Antes de nos debruçarmos sobre a resolução do
gravíssimo problema das PPP, enquadremo‑lo primeiro no contexto da negociação
efetuada entre o Estado e os privados. Concluir‑se‑á depois que uma
renegociação equilibrada das PPP ou uma medida fiscal de impacto equivalente à
renegociação, que defenda minimamente o interesse público e em simultâneo não
lese sobremaneira as outras partes envolvidas – as concessionárias e
os bancos financiadores –, pode traduzir‑se, para os contribuintes
portugueses, numa poupança diária claramente superior a um milhão de euros.
3. Realce‑se que as evidências apresentadas neste
texto não pretendem ocultar as virtudes das PPP mas tão‑somente expor os vícios
das PPP celebradas em Portugal. Qualquer negócio (ou parceria) é considerado
vantajoso quando ambas as partes reconhecem a sua utilidade; caso contrário,
não passa de uma aposta assente em regras desequilibradas que conduzem a
resultados distorcidos e iníquos para uma das partes. As PPP deveriam ser o
fruto de uma relação de simbiose entre a especialização do setor privado nalguma
área e a preocupação do setor público em otimizar o aproveitamento do dinheiro
dos contribuintes – é assim que as pessoas honestas as veem.
4. Genericamente, se os privados tratarem o Estado
como um cliente normal e igual aos demais, que se preocupa em maximizar a
utilidade dos recursos despendidos, por um lado, e se o setor público não
embarcar na penumbra com projetos insustentáveis e souber, de modo racional,
identificar o custo de oportunidade das suas decisões, por outro, as PPP são
profícuas para os domínios público e privado. Nada disso sucedeu em Portugal,
como todos reconhecem (mas poucos confessam). Nas nossas PPP o produto final
está totalmente enviesado, dado que o processo encontra‑se inquinado desde o
começo, constatando‑se o permanente e tradicional mecanismo distributivo em que
o setor privado fica com a carne e ao setor público está adstrito o refugo.
B. Características do processo negocial
5. Por muito que nos esforcemos, não conseguimos
retratar os factos sem nos socorrermos de descrições assertivas. A
superficialidade dos comentários e a suavização das palavras deformava a
realidade dos negócios das concessões estabelecidas em Portugal. Megalomania,
desorçamentação, irresponsabilidade, incompetência e resignação traduzem fria
mas fielmente os vícios do pentágono que rodeia as PPP portuguesas –porventura
um pentágono regular, pois não se distingue qualquer um dos vícios face aos
restantes.
6. Situemos o problema no tempo. Curada a maleita das
reprivatizações – sentida e absorvida desde o final da década de 80 e
que durou grande parte da década seguinte, na qual largas centenas de
portugueses perderam imenso dinheiro na lingada da ilusão do capitalismo
popular, ao ponto de terem contraído insensatamente empréstimos para adquirir
ações –, surgiu uma doença mais difícil de debelar: as PPP. Para alguns,
estas parcerias são o símbolo de uma genuína vaga de inovação financeira, digna
de distinção, enquanto para a maioria representam um submundo que envolve
relações escuras e ignóbeis entre os poderes político e económico, relações
estas cujo pior destino – pelo qual determinada gente ilustre parece
sentir preferência – será, se tanto, permanecerem impunemente na
memória coletiva.
7. Portugal tornou‑se noutro tipo de república: a
das PPP. Pode afirmar‑se que o ciclo das parcerias arrancou em 1995, com a
concessão, por parte do Estado português à Lusoponte, da travessia das pontes
sobre o Rio Tejo, e terminou em 2010. Houve dezenas de contratos de PPP,
repartidos por diversas áreas, embora a maioria deles se concentre, em número e
em valor, no setor rodoviário. O peso do investimento megalómano realizado ao
longo dos anos e do consequente custo para o erário público fazem de Portugal o
país destacado das PPP na Europa (relativamente ao PIB de cada Estado). Provavelmente
ninguém se admiraria se tais parcerias tivessem sido usadas para a construção e
modernização dos estádios de futebol aquando do Euro 2004 ou para a
requalificação do parque escolar de há alguns anos.
8. Ademais, cumpre reconhecer que a dimensão desmedida
das PPP só foi possível devido às regras vigentes na União Europeia e
reconhecidas pelo Eurostat – e pelos demais organismos
internacionais, bem como pelas empresas de notação de risco (vulgo agências de rating) – para efeitos de
mensuração e registo dos défices públicos. Logo, a desorçamentação tem sido aceite
pelas mesmas instâncias que recomendam ou até impelem os países europeus a
reduzir o défice orçamental e enveredar pela disciplina financeira.
9. Assim sendo, não surpreende que para as classes políticas
nacionais – das mais às menos populistas – as PPP tenham
sido adoradas como o expoente de três mundos: apresentação de obra feita, com
muito pouco dinheiro investido ao início e, como se ainda não bastasse,
cumprindo as regras ditadas supranacionalmente. Contudo, se para os objetivos
da maioria dos políticos não existia melhor modelo de infraestruturas públicas
do que as PPP, para os contribuintes portugueses a realidade destas parcerias
foi indiscutivelmente diferente: traduziram‑se num dos maiores pecados
nacionais que podiam ter acontecido na época democrática, não inferior – no
que respeita ao esforço penoso para os cidadãos – à hecatombe do
Banco Português de Negócios (BPN).
10. A verdade vem sempre ao de cima, como a doutrina
do povo sabiamente confirma. É como uma substância que segue invariavelmente as
leis da Física, no que se refere em concreto à densidade dos corpos. A elevação
da verdade das PPP coincidiu obviamente com o afundamento da nossa
credibilidade, não tanto perante nós próprios mas antes em relação a quem nos
observa, por não termos conseguido descortinar o tamanho dos erros cometidos.
11. Por mais esforço incessante que as figuras do
Estado despendam para formatar a opinião pública (nacional e internacional) e
instalar a ideia de que se deve separar as contas de Portugal das da Grécia,
não conseguem ocultar que a grande diferença entre os dois países se restringe
à fama, visto que no tocante ao proveito ambos ficaram com a barriga
temporariamente cheia e a carteira prolongadamente vazia. Aliás, se as nossas
figuras públicas não fossem superficiais no seu juízo, conter‑se‑iam nas
arrogantes comparações entre os dois países, visto que, à luz do índice de
concentração da riqueza, os gregos terão sido mais equilibrados do que os
portugueses na repartição dos benefícios imediatos do endividamento e do
despesismo estatais. Também aí se distinguem os países onde a democracia está
milenarmente enraizada dos que perfilham o feudalismo democrático para a era
moderna.
12. O povo helénico é dono e senhor da fama de ter mascarado
as contas nacionais através de mecanismos desconhecidos das organizações
internacionais e, por isso, violou os cânones europeus estabelecidos. Por cá,
um semelhante desnorte contabilístico foi cumprido mas recorrendo a diferentes meios.
Pensava‑se que as contas públicas ficariam menos encardidas com o detergente
das PPP – e mesmo assim, quando se pretendeu inventariar quanta roupa
havia no cesto, descobriu‑se que afinal estavam lá para o fundo umas peças
grandes que até então ninguém dera por elas. Haja decoro e humildade para
reconhecer as nossas fraquezas; qualquer gente decente que se preze sabe pugnar
pelos seus desideratos sem acusar ou rebaixar outrem.
13. Depois da megalomania e da desorçamentação atrás
apresentadas, as PPP revelaram uma terceira perspetiva na arte da contratação
das nossas concessões: um processo decisório irresponsável, por não ter havido
uma prévia e cuidada análise de custo‑benefício, que passasse nomeadamente por
quantificar os efetivos montantes a despender pelas finanças públicas. São
decisões descuidadas do género que fornecem aos cidadãos – ainda que
tantas vezes sem razão – a inabalável ideia de permeabilidade dos
decisores políticos face ao poderio económico.
14. A incompetência dos órgãos técnicos estatais é
outra faceta que ressalta do balanço extraído das PPP(2). A eles cabe apoiar os
políticos na tomada de decisões esclarecidas, equitativas e eficientes, que
tenham em conta quer o retorno esperado dos investimentos efetuados e dos
encargos suportados, quer o risco incorrido. Pelos resultados, presume‑se que
os mencionados órgãos não aconselharam de forma correta os decisores, nem
financeira nem juridicamente(3). Foram incapazes de os direcionar para que
estivessem cientes do quão calamitosos seriam os negócios das PPP, e tão‑pouco
conseguiram alertá‑los para o perigo de que tais negócios poderiam deixar a
Nação presa a cláusulas leoninas. O seu raciocínio foi escasso para admitir
que, tal como nem tudo o que luz é ouro, nem todas as PPP são verdadeiras
parcerias e de «parcerias» só têm o nome.
15. As PPP genuínas – ou «verdadeiras»,
para ligar ao adjetivo ainda atrás usado – assentam em operações cujo
investimento realizado inicialmente pelos privados é financiado na íntegra
através das receitas geradas pelos próprios projetos – project‑finance, na pura aceção da
expressão –, sendo o risco de flutuação das receitas assumido pelos
privados. Assim, nesse tipo de operações, espera‑se naturalmente que os
privados exijam um prémio de risco compatível com a natureza dos negócios. Pelo
contrário, as PPP portuguesas sempre foram híbridas; fundamentam‑se em
contratos relativamente intricados, onde os privados obtêm ao mesmo tempo sol
na eira e chuva no nabal.
16. De facto, importa reconhecer que a inovação
financeira, para alguns vivamente enaltecida – vd. parte final do ponto 6 –, lesou gravemente o erário
público. No caso português, os investimentos são financiados, desde logo, pelas
receitas próprias dos projetos e, não se verificando as condições de equilíbrio
financeiro – eufemismo para traduzir o cenário de as receitas reais
ficarem aquém das previstas, como tem acontecido por exemplo com o volume de
tráfego das nossas autoestradas(4) –, o Estado português ressarce os
privados com o montante necessário para assegurar tal equilíbrio.
17. Note‑se que o financiamento dos investimentos
baseado no modelo puro de project‑finance – é
o que acontece nas PPP genuínas, como se expressou no penúltimo
ponto – não envolve a existência de qualquer garantia. Daqui se
confirma que os órgãos técnicos de assessoria do Estado deveriam ter
manifestado algum espírito crítico e suficiente valência técnica para não se
iludirem com a complexidade contratual subjacente às PPP, porventura
premeditada e estrategicamente montada para tornar a informação menos
inteligível e transparente, desmotivando desse modo a parte pública contratante
a prosseguir uma análise integral e racional dos projetos propostos pelos
privados.
18. O último lado do pentágono que cerca as PPP
aludido na segunda parte do ponto 5 reflete o elevado grau de resignação, que
infelizmente é apanágio da população portuguesa. Por maior desolação que jorre
do seu interior, o povo condescende e acaba por lutar pela Nação, saiba ou não
o que está em causa(5). O senão é que, ao contrário do que ele pensa, afinal a
Nação não é sua mas sim de um punhado. É o código genético da nossa
mentalidade. As parcerias em questão são mais uma constatação dos negócios
ruinosos para as finanças públicas, cujos prejuízos são invariavelmente pagos
pelo povo, como consequência da megalomania, desorçamentação,
irresponsabilidade e incompetência dos decisores e dos seus assessores.
C. Renegociação ou fiscalidade
19. Tem havido diversas propostas de solução para as
PPP, embora raramente viáveis. Num lado estão os apologistas da opinião de que,
pura e simplesmente, não se deve assumir os compromissos celebrados no âmbito
das PPP, evocando que o dinheiro suportado pelo Estado com essas parcerias
permite pagar, por exemplo, pelo menos um dos subsídios (de férias ou de Natal)
aos funcionários públicos. Comparam o que não é comparável, acabando
implicitamente por reconhecer que a completa desonra dos acordos será a única
resposta a um problema que o próprio País criou – convém ter presente
que a representação estatal nos negócios das PPP foi feita por pessoas eleitas
pelos cidadãos de forma democrática. O grupo de portugueses que preconiza a
posição extremada de nada pagar seguirá uma abordagem demagógica, mais emotiva
do que racional.
20. No lado oposto estão os que aceitam, pacientemente
e sem pestanejar, que se deve cumprir todo o conjunto de compromissos
assumidos, quedando‑se por salvar o que ainda é possível. Neste sentido, pouco
mais tem sido feito do que renegociar migalhas, pois vem‑se assistido a uma
tímida renegociação – renegociação teatral –, que consiste tão‑só
em exigir menos responsabilidades às entidades concessionárias, para que elas
abdiquem de uma parte da receita futura que estava explícita ou implicitamente
contratualizada. Entre o silêncio mordaz e a informação nublada que
caracterizam as PPP, consegue depreender‑se que a renegociação tem passado
exclusivamente por duas vias: pela suspensão (ou pelo cancelamento) de obras
programadas, e pela reformulação de serviços conexos às concessões.
21. Por outras palavras, e dando um exemplo simples
de cada uma destas duas vias de renegociação teatral, para ilustrar o quão
ténue e equívoca tem sido a apregoada poupança em relação às PPP: as situações
em que se encontrava contratualmente prevista a construção de um troço de uma autoestrada
e a concessionária admite cancelar a obra, por iniciativa do Estado, não tendo
este de suportar o custo futuro (ainda para mais em condições economicamente
absurdas ou leoninas, conforme já foi referido na última parte do ponto 14); e
os casos onde a concessionária deixa de ser responsável pelo serviço de
manutenção de uma determinada infraestrutura – passando‑o para a
esfera pública –, diminuindo portanto o encargo da concessão. Claro que é
uma renegociação em sentido literal, porquanto nos últimos anos as contas
públicas têm sido aliviadas em várias centenas de milhões de euros.
22. No entanto é uma falsa renegociação; não são
verdadeiras poupanças. No primeiro caso –e como teria de ser –, dado
que o objeto da concessão é diminuído, o Estado não paga mais mas em
contrapartida a obra não é realizada. No segundo caso, o Estado paga menos no
imediato mas em termos de valor atual das responsabilidades transferidas para
si pelas concessionárias – i.e.,
na óptica de longo prazo – o efeito líquido da renegociação será
relativamente marginal, visto que quando houver necessidade de manutenção as
correspondentes despesas ficarão a cargo do tesouro público. Os cidadãos mais
críticos consideram que o anúncio de poupanças nas PPP ultimamente obtidas é um
embuste; os mais moderados entendem que tal anúncio não é honesto e contribui
para a desinformação dos portugueses, pois reflete apenas um lado da realidade – o
lado imaterial.
23. Entre a bipolaridade explicitada na presente
secção – o radicalismo de nada pagar, por um lado, e o contentamento
com uma renegociação teatral, por outro – reside um par de soluções
alternativas: ou a renegociação real – por oposição à renegociação
teatral –, profunda e voluntária; ou, se esta falhar, a bruta mas eficaz
fiscalidade. Como se explicará à frente, a renegociação real significa no fundo
a substituição dos cortes cosméticos e camuflados que têm sido badalados – impercetíveis
para a opinião pública e até ininteligíveis para a classe jornalística – por
um rumo convicto em direção à redução das taxas internas de rendibilidade (TIR)
implícitas nos investimentos realizados.
24. Os dados disponíveis são muito insuficientes
para estimar os fluxos financeiros ocorrentes durante a maturidade dos
contratos de concessão das PPP. Confirma‑se que o segredo é a alma do negócio.
Somente as concessionárias, os bancos financiadores (nacionais e estrangeiros)
e, quando muito, a Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos (criada com a
publicação do Decreto‑Lei nº 111/2012, de 23 de maio, no qual foi aprovado
o novo regime das PPP) disporão dos elementos requeridos para conhecer com
rigor as TIR atrás mencionadas. Crê‑se no entanto que estas atingirão dois
dígitos – a simples constatação de não ter havido desmentidos sobre a
dimensão desmesurada das taxas indicia fortemente que a existência de TIR
exageradas será um facto. Ao que já foi ventilado, algumas ultrapassam
claramente os 15%.
25. Num verdadeiro Estado de direito, a verificação
de taxas escandalosas seria suficiente para acusar as partes contratantes do
crime de lesa‑pátria. Ambas as partes: por um lado, os representantes do Estado – diretamente,
por tresloucada irresponsabilidade das decisões políticas e, indiretamente, por
manifesta incompetência técnica para mensurar os impactos financeiros das decisões –;
e, por outro, os representantes das entidades privadas – por eventual
dolo no uso de informação privilegiada e por aproveitamento intencional do
desconhecimento da outra parte (i.e.,
a parte pública). As PPP à moda portuguesa – por ora a identificação
do que acontece nos outros países não é relevante para o assunto em apreço – traduzem‑se
em contratos tristemente peculiares, onde o Estado assume o risco dos negócios
mas paga como se estes contivessem um risco significativo, violando assim um
dos princípios sobre o qual as PPP devem assentar e que se prende com a
partilha simultânea de custos e de riscos entre os setores público e privado.
26. Tentemos avançar, procurando simplificar a
relativa complexidade do assunto e indicando os termos em que se pode concretizar
a renegociação real anunciada no ponto 23. Ou os privados pretendem manter em
níveis altos as TIR dos investimentos efetuados; ou querem que o Estado
continue a assumir, em última instância, o risco dos projetos. Se pretenderem
manter as TIR, então tal objetivo terá de ser concretizado apenas com recurso
às receitas dos projetos, ou seja, o Estado liberta‑se de todos os encargos que
tem(6). Ao invés, se quiserem que o Estado assuma o risco de não verificação
das ditas condições de equilíbrio financeiro dos projetos – vd. ponto 16 –, então as TIR terão
de baixar drasticamente(7). Portanto, não há meio termo: ou TIR elevadas para
riscos elevados, ou TIR reduzidas para riscos reduzidos. Entre os dois males
para o setor privado – males porque para si o regime atual é ótimo –,
naturalmente que o menor deles será a segunda opção, ou seja, o decréscimo
significativo das TIR, por os privados preferirem – admite‑se – minimizar
a exposição ao risco dos negócios intrínsecos às PPP.
27. Os que apostam na via da renegociação real
pretendem trazer à colação as entidades concessionárias – e, claro
está, as entidades financiadoras dos respetivos projetos –, apelando aos
valores do bom senso e da racionalidade económica. De facto, se estes
imperarem, tais entidades compreenderão o momento de peculiar dificuldade
nacional –que passa inclusive pelo corte (até há alguns anos impensável
para a maioria das pessoas) do valor nominal dos salários e das pensões. Como
tal, e sob a mesma condição de aqueles valores prevalecerem, os privados terão
a honestidade suficiente para reconhecer que não podem permanecer num oásis,
ainda por cima quando estão em causa contratos abusivos para o Estado que, como
foi salientado no início do penúltimo ponto, noutros países poderiam ser enquadrados
como crimes e assim sendo tornados nulos inevitavelmente, com a correspondente
produção de efeitos retroativos que daí por força adviria.
28. Há a perfeita consciência que não é muito
plausível o cenário de imediata renegociação real por parte das entidades
privadas envolvidas nas parcerias. Não apenas porque seria uma forma de elas
reconhecerem que têm estado a extorquir montantes racionalmente injustificados,
como pela vantagem que têm em protelar a renegociação (pois para quanto mais
tarde se adiar a solução, melhor será para os seus interesses). Por tudo isso,
e dado que, no presente caso, o tempo vale mesmo muito dinheiro – o
prejuízo para o Estado cresce a cada instante que passa –, resta a via
fiscal – «bruta mas eficaz», como se adiantou também no ponto 23.
Esta via consiste em instituir um imposto especial que permita corrigir o
passado – ou melhor, corrigir efeitos futuros decorrentes de atos
contraídos no passado –, levando as taxas usurárias de dois dígitos para
cerca de metade ou menos.
29. Na senda de modificar a situação das PPP, não é
de excluir a hipótese de o Estado aplicar soluções fiscais que não só abranjam
os encargos vincendos mas igualmente os já vencidos. Ao contrário do que se
possa pensar, tal não significa a violação do princípio da não retroatividade,
atendendo a que se a medida for definida de forma correta e ponderada, não se
aplica formalmente a exercícios passados; só se aplica para o futuro, embora
tenha em conta todo o período de vigência dos contratos e não a maturidade
residual dos mesmos. Trata‑se de uma medida fiscal que o Estado poderá adotar
dentro da legalidade. Não obstante, para evitar controvérsia acrescida e
relativamente desnecessária, é preferível que a correção imposta pelo Estado se
restrinja ao futuro, isto é, somente aos encargos vincendos.
30. As entidades concessionárias e financiadoras
poderão reclamar e inclusivamente levar o assunto aos tribunais, quiçá ao
Tribunal de Justiça da União Europeia, até porque elas ter‑se‑ão defendido, dos
pés à cabeça, contra todos os riscos, possíveis e imaginários, incluindo o
risco de alteração da carga fiscal. Contudo, face à evidente situação lesiva
causada pelas PPP ao nosso País, e à gigantesca circunstância deficitária em
que Portugal se encontra, qualquer juiz ponderado entenderá a proporcionalidade
e a justeza da medida fiscal encetada, acabando por homologar que esta é a
solução mais pertinente para cortar o nó górdio das PPP. Nada fazer, por temer
as consequências de uma eventual condenação do Estado português, é um ato de infame
cobardia perante o povo.
31. Na verdade, se o Estado vier a ser julgado por
nacionalizar, através de mecanismos fiscais, uma porção dos lucros
contratualizados no passado, os responsáveis nacionais defender‑se‑ão de que se
tratou da resposta patriótica possível mais eficaz para corrigir –atenuar,
para ser mais rigoroso – a espoliação de uma parte da riqueza do
País, isto é, de que foi a melhor forma de honrar a grandeza do bem coletivo em
detrimento do interesse privado desproporcionado e injusto. A irreversibilidade
contratual das PPP é um argumento desprovido de razão, ou melhor, a razão desse
argumento começa quando findar a irracionalidade de cobrar encargos ao Estado
para alimentar lucros especulativos extraídos de negócios com risco mínimo. O
Estado e os portugueses não imploram esmolas nem comiseração do setor privado;
exigem tão‑só respeito pelo sacrifício por que estão a passar.
32. Sinceramente ansiamos acreditar que a adoção de
impostos para disciplinar o statu quo –à
semelhança do que será prosseguido, de acordo com o que está previsto, no caso
das empresas produtoras de eletricidade, com o objetivo de cortar as rendas
excessivas no setor energético pagas pela fazenda pública – não se
repercutirá no aumento dos preços finais. Caso contrário, seria uma imperdoável
afronta ao povo português – manso mas não tanto.
D. Dimensão e utilização das poupanças anuais
33. Por vontade própria ou por imposição do Estado,
é para a mudança de regime de funcionamento das PPP que as entidades
concessionárias e financiadoras se devem deslocar. Conforme mencionado na
última frase do ponto 26, admite‑se que os privados, mesmo num cenário de
renegociação real dos contratos, preferirão baixar fortemente as TIR, em vez de
assumir o risco dos negócios. Reduzi‑las dos atuais dois dígitos para taxas
entre 5 e 6%, mantendo o nível de risco – nível que consiste na
ausência de risco para os privados –, corresponde seguramente a um negócio
com bom custo de oportunidade para o setor privado. Taxas superiores a essas
representam, em substância, a transferência de uma parte material da riqueza do
País para a propriedade de uma minoria, situação que não se compadece com a
natureza das concessões em questão nem com os riscos a que as partes estão
efetivamente expostas.
34. Com base nos elementos incluídos na Conta Geral
do Estado de 2012 – como fora realçado no ponto 24, a informação
sobre as PPP é escassa e quase misteriosa –, o valor médio anual para a
próxima década relativo aos encargos líquidos suportados com as PPP será de
aproximadamente 1100 milhões de euros (a preços constantes de 2012). Assim,
admitindo que a TIR dos projetos ronda os 12%, estima‑se que a renegociação das
taxas para metade (i.e., 6%)
originará poupanças anuais de 40% para o Estado, que ascenderão portanto, em
média, a cerca de 440 milhões de euros. A partir do décimo ano, as poupanças,
ainda que significativas, serão decrescentes.
35. Para aferir melhor o descalabro que as PPP
simbolizam para a Nação, talvez seja adequado tentar identificar os três
maiores escândalos ou buracos financeiros da nossa história. Certamente lembrar‑nos‑emos
de imediato dos casos Alves dos Reis, BPN e PPP(8). A ordem é essa, seja em
termos cronológicos ou de prejuízo para o País, se se mantiver a situação atual
das PPP.
36. A medalha de bronze iria para o burlão Alves dos
Reis, cujas perdas para o Estado superaram ligeiramente 1% do PIB. Assistir‑se‑ia
depois a uma luta renhida entre o BPN e as PPP. Seria provável que, no final da
contenda, a medalha de prata estivesse reservada aos fraudulentos que puseram o
BPN na falência, face à qual o País teve de aceitar imparidades e o Estado foi
obrigado a injetar capital, materializando no seu conjunto verbas que muito
provavelmente chegarão a 3% do PIB. Assim, o vil ouro condecoraria os ardilosos
das PPP. Independentemente de quem venha a ser o campeão, a suprema constatação
é o palmarés angustiante e desprestigiante que Portugal consegue acumular
nestes últimos anos(9).
37. Por se tratar de um caso que já tem quase um
século de história, e como tal o seu impacto está há muito definitivamente
quantificado, a posição da falcatrua do Alves dos Reis no pódio é fácil. O
mesmo não se passa com os outros dois casos. No crime do BPN, o balanço ainda
não está encerrado porque depende da recuperação (não muito provável) de ativos
financeiros que estavam fora da órbita do banco propriamente dito, embora até
ao momento o prejuízo final global(10) se situe à volta de 3% do PIB, como foi
indicado no ponto precedente.
38. A ascensão ao panteão dos vícios por parte das
PPP tem subjacente o expectável valor atual das despesas plurianuais do Estado
que excedem a taxa de rendibilidade de 6%, relativamente ao período residual
dos contratos de concessão – ou seja, estão excluídas as compensações
atribuídas pelo Estado reportadas a exercícios passados. Se não se vier a
inverter o rumo dos atuais contratos das PPP, a derrota para as contas
nacionais constituiria a maior indignação financeira da nossa história, com a
agravante de ser branqueada com o beneplácito de instituições internacionais.
39. A verba anual de 440 milhões de euros constante
do ponto 34 daria para impulsionar a atividade económica e atenuar o endémico nível
de desemprego, seja descendo a taxa de IVA, para dinamizar a procura interna(11),
seja baixando as taxas de IRC para as empresas do setor exportador de bens
transacionáveis, de modo a tornar as exportações mais competitivas. Com efeito,
uma redução fiscal, em 2012, de cerca de 3% na receita proveniente do IVA, ou
de aproximadamente 10% na receita oriunda do IRC, equivale a um montante na
ordem das quatro centenas de milhões de euros. Eis a estimativa da magnitude da
ingenuidade do Estado e da avareza das concessionárias e da banca (nacional e
estrangeira) financiadora dos projetos(12).
40. Outra aplicação sensata das poupanças geradas
com as PPP passaria por finalizar as obras interrompidas aquando da chegada da troika a Portugal – tal não
representa iniciar a construção de obras entretanto canceladas mas apenas
recomeçar as obras suspensas e ainda por cima com condições de equilíbrio
financeiro que se esperam bem definidas. Esta deveria ser a aplicação
prioritária, pois poria cobro à situação deplorável que grassa em várias zonas
do território nacional, em que espaços de vida foram desventrados e
substituídos por cemitérios de pilares e betão armado abandonados a céu aberto.
41. Há ainda a possibilidade – tão nobre
quanto as que passam pelo alívio das taxas de IVA ou de IRC – de
canalizar a poupança gerada para a amortização da dívida pública. Para trilhar
a vontade de acelerar a liquidação da dívida – pura utopia,
responderá a maioria das pessoas(13) – será necessário bastante mais,
visto que a poupança obtida com as PPP é insignificante face ao montante
requerido para o efeito. Contudo, deve reconhecer‑se que qualquer medida tomada
no sentido de procurar regularizar mais depressa a dívida ou de evitar a
contração de dívida adicional será muito bem‑vinda.
42. Face ao exposto, urge estancar depressa a
sangria, para que o nosso regime democrático consiga manter alguma
credibilidade e possa transmitir aos portugueses sinais de vitalidade e
energia. Criado o mal (das PPP), há que corrigi‑lo, dignificando o legítimo
interesse dos contribuintes e provando que os políticos eleitos pelos cidadãos
revelam coragem para prosseguir o benefício comum. O povo português não é assim
tão rico nem tão frouxo que se dê ao luxo de desperdiçar mais de um milhão de
euros por dia.
(1) FRES - Fórum de
Reflexão Económica e Social.
(2) A prática permite
constatar que não tem existido competência analítica para decifrar os assuntos
que se afastam da norma e para decompor os vários riscos envolvidos. Os
contratos de troca de taxas de juro celebrados entre o Estado e instituições
financeiras – swaps de
taxas de juro – são apenas mais um exemplo a acrescentar ao rol das
incompetências.
(3) Se os órgãos
técnicos aconselharam adequadamente os decisores, então não se coloca a questão
da incompetência dos primeiros e, em contrapartida, a irresponsabilidade dos
últimos assume contornos ainda mais problemáticos. Cremos não ter sido o caso.
(4) Pelo que tem
vindo a lume, a maioria dos projetos rodoviários tem subjacente um volume de
tráfego irrealista em condições económicas normais. Seria portanto expectável
de antemão que, ao mínimo sinal de abrandamento económico, o Estado fosse
chamado a assumir os encargos criados com os erros de estimativa. Dadas as
condições de equilíbrio financeiro estabelecidas, para os privados das PPP
lusitanas é irrelevante se os erros são ínfimos ou grosseiros, o que é paradigmático
de uma contratualização perfeitamente desajustada face à desejável sustentação
lógica.
(5) Convém esclarecer
que desse povo fazem parte todos – pobres e ricos, ideologicamente
mais próximos ou mais afastados entre si – que não usufruem dos
negócios das PPP.
(6) Para efeitos
desta opção seria perfeitamente lógico que os contratos fossem renegociados no
sentido de dilatar o prazo de concessão, de modo a que os privados dispusessem
de tempo suficiente para recuperar o dinheiro investido. Previamente seria
necessário calibrar os modelos previsionais para obter projeções credíveis das
receitas futuras dos projetos.
(7) Também aqui os contratos de concessão terão de
ser modificados, de modo a refletirem, após a calibragem dos modelos
previsionais, razoáveis e verosímeis condições de equilíbrio financeiro.
(8) Os contratos de
derivados de swaps de taxas de juro
ainda em vigor constituem uma situação relativamente diferente, na medida em
que os fluxos financeiros dependem de uma variável exógena (pelo menos para o
Estado): as taxas de juro Euribor. Esta observação não constitui no entanto
qualquer atenuante para a irrefutável imprudência manifestada aquando da
celebração dos contratos, imprudência que está, aliás, alinhada com o que fora
indicado a propósito das incompetências dos órgãos técnicos
estatais – vide primeira
nota de rodapé do ponto 14.
(9) Esperemos que o
palmarés não cresça. Não querendo agourar, convém notar que pode haver outras
injeções de capital, já efetuadas pelo Estado em instituições bancárias
nacionais, que se venham a traduzir em prejuízos para os contribuintes, se as
instituições não conseguirem devolver o dinheiro injetado. Seria mais um grave
revés para as contas públicas.
(10) O prejuízo final global corresponde à soma da injeção de capital feita
pelo Estado com as imparidades dos ativos que têm sido (e porventura
continuarão a ser) reconhecidas em vários exercícios económicos.
(11) A quantia poupada anualmente decorrente da correção fiscal aplicável às
PPP – ou a equivalente renegociação real – corresponderá a
quase metade do acréscimo das receitas, de 2011 face a 2010, proveniente do
aumento da taxa normal de IVA de 21 para 23% e da eliminação da taxa reduzida
sobre a eletricidade e o gás natural.
(12) Convém realçar que, apesar de o Banco Europeu de Investimento (BEI) ser,
em última instância, o principal financiador das PPP dentro do espaço
europeu – relembre‑se uma das suas primeiras intervenções, em 1987,
no túnel do Canal da Mancha (apenas inaugurado em 1994), sem a qual seria quase
impossível a construção da fantástica obra –, não está ao mesmo nível dos
demais bancos que financiaram o projeto. O BEI, por dispor de uma elevada
qualidade creditícia, concede crédito aos bancos europeus cobrando spreads diminutos. Assim, a agiotagem
vigente nas PPP portuguesas não envolve diretamente o BEI mas sim os bancos que
se financiaram junto do BEI a taxas muito baixas e usaram o dinheiro desse
financiamento para satisfazer as necessidades do Estado português a taxas
elevadíssimas e totalmente desproporcionadas face aos riscos incorridos nas
concessões.
(13) Há medidas duras mas equitativas que podem ser adotadas. Fiquemo‑nos
por aqui, para não nos afastarmos do tema central em análise, ou seja, as PPP.
15 de novembro de 2013

