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segunda-feira, 29 de junho de 2020

Sombra do petróleo e luz da democracia

Sombra do petróleo e luz da democracia (05/10/2014)




A. Petróleo e comércio internacional


Percorrendo quase todas as latitudes e longitudes onde se estabelecem relações comerciais entre diferentes povos, dos lugares mais aprazíveis aos mais inóspitos, ressalta o domínio do petróleo. Para chegar a esta conclusão analisou-se o peso dos 20 produtos com maior valor de transação, identificando sempre que possível os países separadamente dos territórios não soberanos – por exemplo, a Dinamarca e a Gronelândia são economias distintas para efeitos da avaliação e da estrutura do comércio internacional.
A análise do comércio externo abrangeu praticamente todo o espaço terrestre, da jurisdição mais populosa (China) ao território com menos habitantes (Pitcairn). Entre o reduzido grupo – de pouco mais de duas dezenas – de economias não incluídas na análise por falta de informação, encontram-se sete países: Namíbia, Botswana, Lesoto, Suazilândia, Kosovo, Mónaco e Liechtenstein. Desse grupo, Porto Rico é o território não soberano com maior número de pessoas.

Em 2012 o ouro negro representava, no mínimo, 15,2% do montante do comércio internacional e 6,6% do PIB planetário – «no mínimo» porque apenas foram quantificadas as transações de produtos petrolíferos que se encontravam no top 20 das exportações e  importações de cada economia. Os três principais produtos envolvidos eram o petróleo em bruto (ou crude), o petróleo refinado e o gás de petróleo liquefeito, responsáveis respetivamente por 8%, 5% e 2,2% das exportações e importações mundiais.

Como aparte, note-se que as transações internacionais de metais preciosos e de produtos associados pesavam pelo menos 2,5% do valor comercializado a nível mundial – o ouro propriamente dito ocupava 69% de tais transações. O segundo grupo de produtos que concentrava maior volume de trocas comerciais – 7,6% do total – residia nos transportes (rodoviários, ferroviários, marítimos e aéreos). Deste volume, 84% referiam-se aos meios de transporte rodoviário, onde por sua vez se destacavam o comércio de carros, por um lado, e o de componentes de veículos automóveis, por outro, correspondentes a 63% e 25%, pela mesma ordem.

Voltando ao tema principal: entre as 226 economias observadas – que cobrem 99,8% do total da população estimada em 2013 e 98,9% do PIB mundial –, 48 eram exportadoras líquidas de petróleo. O crude era o principal produto exportado em 33 economias, e o segundo em sete ocasiões, frequência também verificada para o terceiro lugar do ranking das exportações. Em 28, 23 e 22 casos o petróleo refinado consistia na primeira, segunda e terceira posições das exportações.

Em 26 dessas 28 situações, tratava-se de economias deficitárias de produtos petrolíferos, facto revelador – na maior parte dos casos – da preocupação de as mesmas atenuarem a sua dependência acrescentando valor ao crude importado. Para o gás de petróleo liquefeito, sete, 15 e seis eram as correspondentes frequências para o primeiro, segundo e terceiro lugares. O ouro em si ocupava as três primeiras posições do pódio em 16, sete e quatro ocasiões. Portanto, entre os lugares possíveis no pódio – 3 x 226 –, os quatro produtos atrás identificados ocupavam 26% do total.

Restringindo a análise ao conjunto das economias da OCDE e da União Europeia, o perfil da constituição do pódio por produtos era bastante diferente. O crude era o dono da primeira posição das exportações na Noruega e no México, da segunda na Holanda e da terceira no Reino Unido e na Dinamarca. Nesse conjunto destacava-se a exportação de petróleo refinado. Este produto era o líder em 15 países – incluindo Portugal –, sendo o segundo mais exportado em quatro ocasiões, e o terceiro noutras tantas. A exportação de petróleo refinado, de carros e de componentes de veículos automóveis ocupava 40% dos lugares do pódio disponíveis no conjunto das economias em apreço.


B. Petróleo e democracia


Comprovada a hegemonia do petróleo no contexto do comércio internacional, convém contemplar outra realidade: o contributo do petróleo para o grau de democracia dos países. Para tanto foi preciso recorrer ao índice do estádio democrático respeitante a 2012, construído pelo imparcial e rigoroso jornal (ou revista) The Economist. O índice assentou em cinco categorias, a saber: processo eleitoral e pluralismo, liberdades civis, funcionamento do governo, participação política, e cultura política. A análise efetuada para efeitos do post em apreço abarca 161 nações, correspondentes a 99,3% da população e 98,7% do PIB mundiais. Comparando com a informação apresentada na parte inicial do antepenúltimo parágrafo, constata-se que os 65 países e territórios não incluídos na mensuração do jornal representavam tão-somente 0,5% da população e 0,2% do PIB.

Para aferir objetivamente a relação entre o peso do petróleo e a intensidade democrática, foi necessário dividir aquelas nações em três grupos, consoante o peso do saldo petrolífero – diferença entre exportações e importações – no total das exportações de cada país. O (A) primeiro abarca 78 países, cujo referido peso era inferior a -10% do valor global das exportações. O (B) segundo comporta 45 estados, em que o peso se situava entre -10% e 10% das suas exportações, pelo que o (C) terceiro inclui as restantes 38 nações – incluindo a Noruega –, onde o peso do saldo petrolífero assumia mais de 10% do total das exportações. Pertencentes ao grupo (B) existiam só seis economias com superavit petrolífero: Congo-Kinshasa, Costa do Marfim, Egito, Indonésia, Papua Nova Guiné e Síria.

O quadro seguinte reflete a distribuição de frequências, por grupo de países, em função do tipo de estádio democrático considerado pelo jornal.

Tipo de estádio democrático (*)
Frequências absolutas

Total
Grupo (A)
< -10%
Grupo (B)
[-10%, 10%]
Grupo (C)
> 10%
Democracia plena
Democracia imperfeita
Regime híbrido
Regime autoritário
7
30
24
17
16
13
7
9
1
8
5
24
24
51
36
50
Total
78
45
38
161

(*) Os três primeiros tipos são regimes democráticos, enquanto o último é classificado de jaez ditatorial.

Sublinhe-se que a avaliação da ligação entre o petróleo e a democracia baseia-se no índice de intensidade democrática e não no tipo de estádio constante do quadro anterior. Tal índice varia entre 0 e 10. Os valores mínimo e máximo estavam preenchidos pela lúgubre Coreia do Norte (1,08) e pela resplandecente Noruega (9,8). Tendo como referência o quadro de cima, Portugal (com um índice de 7,81) era uma das 30 democracias imperfeitas pertencentes ao grupo (A), visto que o défice lusitano respeitante aos produtos petrolíferos representava 14,2% do valor total das exportações (ou 3,7% do PIB nacional). Para o universo dos estados-membros da OCDE e da União Europeia, o défice petrolífero equivalia a 9,4% do valor das exportações (ou 3,3% do PIB).

A média e o desvio-padrão do índice de intensidade democrática eram, respetivamente, 5,68 e 1,82 para o grupo (A), 6,37 e 2,32 para o grupo (B), e 4,09 e 1,94 para o grupo (C). Cumpre assim testar a hipótese paramétrica de as médias dos índices serem iguais entre os vários grupos. Se a hipótese de igualdade for aceite, então admite-se que o saldo petrolífero é independente do estádio democrático dos grupos; no caso de ser rejeitada, será residual o erro de inferir a existência duma relação inversa entre o petróleo e a democracia.

Para a hipótese nula de igualdade das médias nos grupos (A) e (B), o valor da estatística obtida é -1,072 – resultante de (5,68 - 6,37) / [(1,82^2) / 78 + (2,32^2) / 45]^2. Como o teste da hipótese alternativa – de desigualdade – é bicaudal, e dado que para o nível de significância de 5% provém o valor crítico de -1,96, há que admitir a validade da hipótese de igualdade entre os grupos (A) e (B), ou seja, não se pode afastar a hipótese de os índices democráticos serem semelhantes nos dois grupos, independentemente do seu saldo petrolífero.

Conclusão bem diferente extrai-se da comparação quer entre os grupos (A) e (C), quer entre os grupos (B) e (C). Com efeito, para formular a hipótese de os índices democráticos associados aos países dos grupos (A) e (B) serem superiores aos registados para os estados do grupo (C), resulta que os testes da hipótese alternativa são unicaudais à direita, de onde o valor mínimo da região crítica corresponder a 1,65 (também para o nível de significância de 5%). Para a igualdade das médias dos grupos (A) e (C), por um lado, e dos grupos (B) e (C), por outro, derivam os valores da estatística de 4,218 e 4,86, portanto claramente pertencentes à região crítica – sinónimo de que o poder do teste realizado é praticamente total –, o que permite rejeitar a hipótese de que, tanto entre os grupos (A) e (C), como entre os grupos (B) e (C), o nível médio do estádio democrático no grupo (C) difere do dos demais grupos e estará relacionado com a quantidade dos recursos petrolíferos.

Os resultados obtidos são consistentes com a ideia cimentada de que o petróleo e a democracia são frequentemente imiscíveis, tal como o azeite e o vinagre. Contudo, ao contrário destes dois – que se complementam –, o filão do petróleo e a fecundidade da democracia muitas vezes substituem-se e lutam entre si. É um confronto entre o poder da sombra e o espírito da luz. Por mais força avassaladora e constritora que a Píton petrolífera detenha, a razão e a sabedoria do Apolo democrático não se extinguirão. Será uma guerra entre o caos e a justiça, cujo epílogo se erguerá apenas quando for lançada a flecha da liverdade – liberdade com verdade –, a estrondosa estrela dos povos dignos do seu futuro.

Petróleo, dinheiro e povo

Petróleo, dinheiro e povo (01/10/2014)



O petróleo é o detergente universal que lava tudo: os princípios morais, os valores cívicos, a memória, a democracia e até o próprio dinheiro, o outro supremo poder. Conquista o universo inteiro, e com um infinito cheiro ousa o verbo corromper. É a lógica vincada do petróleo a seu bel-prazer. Porém o dinheiro – que não nasceu para ser segundo – tal lógica contraria. Ultraja este e qualquer mundo. No meio da fé abunda, do cimo ao fundo; e um vasto mar de lágrimas cria.

O povo assiste à luta titânica entre os dois primaciais poderes e concomitantemente sonha com a equidade, a paz e demais utopias. Contudo pouca pressão exerce para travar a luta. Sabe que é judas da felicidade, pois vira a cara à maldade e somente alimenta as fantasias. Muitas almas ebrifestivas não têm consciência que os teólogos agiotas do petróleo, do dinheiro e do pensamento dominam a sociedade, enquanto as restantes, apesar de conscientes, resignam-se e deixam passar os políticos idiotas que incentivam as batotas e poluem a verdade.

O petróleo não pestaneja. Está ciente que qualquer um deseja dominá-lo, mas que escassas vidas conseguem tamanho dote – apenas as que foram bafejadas pelo acaso do Criador. Apesar de o petóleo alastrar as trevas e fomentar a injustiça, quase todos perseguem os seus ígneos pecados. O dinheiro engalfinha-se e prontamente riposta com a sua vil dignidade. Afirma com arroubo e altivez que também compra moral, virtude e tudo o mais, e simultaneamente cultiva ódios e guerras. Reconhece que o branqueiam com alguns petrolíferos sais, só que ele – o dinheiro –, utilizando estratégias tais, impera em quaisquer terras, independentemente de o ouro aí existente ser negro ou de diferente cor já lavada.

Decerto que, face à força dos senhores do mando, o impávido povo adorava tanto alcançar a aura da revolta na sua alma. Seguramente ansiava ver os seus irmãos acordar e a coragem inflamar. Todavia é o egoísmo mordaz e crónico que o acalma. Ante tamanha incongruência entre a vontade duvidosa e a omissão convicta, o observador mais crítico comprovará que, mesmo o povo de honraria, nem honra dá ao seu honesto lanço. Minado de opulência e mania, contra a total tirania o Zé do Planeta é um animal soçobrado e manso. Ele é fundamental para perpetuar o tripé; caso contrário a dicefalia do poder desmoronava-se e o monstro sucumbia inanido.

A isenção fiscal das heranças e a caridade (parte II/II)

A isenção fiscal das heranças e a caridade (parte II/II) (10/09/2014)





C.2. Igualdade de oportunidades


13. O título do post «Riquezas semelhantes mas diferentes» procurou ser elucidativo. O montante acumulado de riqueza pode ser igual, ainda que a acumulação provenha de distintas ou antagónicas fontes – mérito, jogo, herança ou crime. Foi por tal razão que o post abriu com a secção intitulada «Desigualdade equitativa e riqueza imoral». Separei-me da ideia – ponto 4 do mesmo post – que desigualdade é sinónimo de injustiça. Adiantei que «Injusto é existir consenso de que o empenho e o mérito próprios são diferenciados e, simultânea e incoerentemente, defender a igual repartição de rendimentos. A concretização dessa incoerência representaria o caos em qualquer sociedade.» Esclareci depois no ponto 5 que «As políticas de correção das assimetrias devem ser distintas consoante se queira atenuar as disparidades de rendimentos ou as de riqueza, visto que a desigualdade dos rendimentos causada pelo mérito pessoal tem uma justificação equitativa, ao passo que a concentração da riqueza originada por uma herança não tributada é moralmente injustificada.»

14. Ou seja, a desigualdade resultante dos rendimentos obtidos (como por exemplo através do trabalho) pelo indivíduo que deles beneficia é um dado adquirido que urge respeitar a bem do futuro do País. Já a desigualdade oriunda não dos rendimentos próprios mas sim das heranças é questionável porque subalterniza a justa igualdade de oportunidades. Assim sendo, invocar uma solução para a desigualdade económica ignorando a sua origem resulta numa mistura de açúcar com sal em quantidades aleatórias. Mais: preconizar vãmente a criação – e deveras abundante – de oportunidades como modo de corrigir as assimetrias, assemelha-se a querer passar com uma esponja sobre os argumentos objetivos comprovativos de que a isenção das heranças fere de forma violenta o princípio de igualdade que todos manifestam defender.

15. Creio que nenhum português está contra a fluente criação de oportunidades. Ademais, uma boa parte dos trabalhadores – e até talvez dos empresários – não se oporá a que a cultura de governação das empresas esteja orientada para uma renovada distribuição dos resultados compatível com o empenho de cada elemento do processo produtivo. Convém porém que a repartição não se cinja à comum e cínica atribuição de principescos bónus (tanto monetários como de participação no capital societário) para uma ínfima minoria e de míseras sobras para o resto do contingente que – e é só a este que me refiro – trabalhou com responsabilidade e afinco não inferiores aos da citada minoria. Como aparte devo sublinhar que não consigo pensar em bónus sem me lembrar do que sucedeu nos múltiplos casos de colapsos financeiros internacionais associados à crise do subprime (iniciada em finais de 2007).

16. Contudo a problemática da isenção (ou tributação) das heranças é independente da distribuição dos resultados pelos trabalhadores competentes; portanto argumentar ao lado revela ou desatenção involuntária ou raciocínio enviesado. Como frisei – vide ponto 13 –, nunca pus em causa a diferenciação de rendimentos por via do mérito. Tenho-me centrado tão-somente na diferenciação agravada pelos rendimentos provenientes do esforço alheio. Para além disso, é indiscutível que a criação de oportunidades acrescidas, impulsionada nomeadamente por meio da mobilidade dos trabalhadores (e também dos empresários), com o fito de procurarem melhores condições económicas e sociais, é um desiderato de todas as pessoas dinâmicas. Todavia, daí a crer que o acréscimo da mobilidade resolve o problema fiscal das heranças é outro sofisma que pouco mais serve do que branquear o desequilíbrio motivado pela roleta da sorte herdada.

17. Sob a égide do universal princípio da igualdade de oportunidades, as heranças devem ser taxadas. Vejam-se os pontos 8 e 9 do post «Riquezas semelhantes mas diferentes», demonstrativos da abissal injustiça tributária entre, para o mesmo nível de rendimentos, quem aufere heranças gratuitas e quem trabalha e desconta. É claro que, se houver mais oportunidades – como seja a mobilidade referida no parágrafo anterior –, atenua-se o efeito da distorção social provocada pela isenção das heranças, mas tal não se prende ao tema em apreço.

18. A Estrada da Beira e a beira da estrada são realidades diferentes. Pugnar pelo statu quo da isenção das heranças nada tem a ver com apoiar as desejáveis – mas dificilmente concretizáveis (pelo menos enquanto a maioria de nós não fechar de vez os olhos) – alteração na cultura empresarial (de repartição proporcionada dos benefícios entre os colaboradores mais competentes) e mobilidade laboral (que assegure o melhor possível o pleno aproveitamento das oportunidades de emprego).

C.3. Risco de perda


19. Outra dialética espraiada para descredibilizar a necessidade de tributação das heranças fixou-se na ideia simplista de que o importante não é o benefício das heranças em si mas antes a capacidade de manter ou fazer crescer o pecúlio herdado, atento o risco de este minguar drasticamente. Eis mais uma exposição que impressiona e tenta ofuscar a razão e deixá-la de rastos. Mas ela não se importuna e responde ironicamente que concorda com o magnífico raciocínio apresentado.

20. A razão até confessa que, entre os casos dum indigente que tenha conhecido a ventura de receber um milhão de euros no jogo e, volvido um tempo fugaz de mordomias ou burguesias, consegue reduzir a zeros a fortuna, obrigando-o a regressar à rotina, e outro indigente que nunca saiu do seu pacato e normal estado miserável, ela opta sem dúvida pelo segundo, por este não ter sido submetido à amargura de sentir a queda social. Não querendo transmitir má vontade, eu afirmaria que, entre dispor duma longa vida de rico e padecer nos derradeiros dias como pobre, por um lado, e arcar com a triste pobreza toda a longa vida e nos últimos momentos de ancião ganhar a sorte milionária e falecer rico, por outro, indiscutivelmente preferia a primeira. Parece que os meus opositores aderiam à segunda escolha, e apenas isso justificará a invocação do impressionante argumento do risco de perda.

21. Também Nuno Álvares Pereira – o genial maestro militar e o responsável supremo pela nossa orgulhosa independência –, no fim dos seus egrégios feitos (que lhe valeram ser cumulado pelo rei D. João I ao ponto de se tornar no homem mais rico de Portugal, dono e senhor duma grande porção do território nacional, de Norte a Sul), selou o período dos seus últimos dias a praticar a caridade aos necessitados de Lisboa. Morreu com 71 anos. Todavia não tem sido suficientemente divulgada a outra dimensão do Santo Condestável.

22. Antes da decisão ascética – tomada aos 63 anos, após a morte da sua mulher – de despir-se do pecado da vida carnal e da luxúria das honrarias mundanas, ele teve o invulgar espírito samaritano de dividir (o império feudal de) as suas terras pelos três netos. É verdade que a divisão dos bens mobiliários que dispunha contemplou uma série de gente, desde ignotos pobres até aos cavaleiros chegados e à criadagem da sua casa. Foi um episódio nítido de descida na escala social que a História regista. Imagine-se se não houvesse a sublime preocupação de a repartição da fortuna – que, naquele tempo, residia na posse de terras, ao contrário de hoje – ter beneficiado os seus descendentes; seria o Deus, e não simplesmente mais um Santo.

C.4. Fuga de capitais


23. Foi igualmente referido que a tributação das heranças redundará na fuga de capitais. Ora, a fuga ocorre porque as negociatas feitas com o Estado delapidam o erário público e exigem constantes aumentos de impostos, em especial do IVA e do IRS, para tapar os buracos financeiros; porque várias políticas de atração de investimento ainda são muito incipientes e ineficientes; porque a concorrência está frequentemente minada; enfim, porque a economia portuguesa não é competitiva como se exige, não obstante as melhorias. Não é por causa da tributação das heranças que haverá fuga de capitais massiva. Aliás, se fosse por isso, Portugal seria um paraíso terreno e o centro da rota mundial de captação incomensurável de investimento e riqueza.

24. É sabido que numa sociedade aberta a deslocalização de capitais é um risco permanente. Se o argumento da fuga de capitais fosse significativo, os países que taxam as heranças aboliriam de imediato a respetiva tributação. Recupere-se a este propósito o ponto 27 do documento «Zerar para ressuscitar e criar oportunidades sustentáveis» mencionado no início da primeira parte do presente post. «Fazendo uma breve viagem pelos 41 países pertencentes à União Europeia ou à OCDE, constata-se que a transmissão de riqueza para cônjuges, descendentes e ascendentes é objeto de imposto sucessório em quase 3/5 dos casos (24). Dos sobrantes, há três países que aboliram o imposto sucessório e substituíram-no por um imposto sobre ganhos de capital – uma espécie de imposto sobre o valor acrescentado sucessório, calculado com base no acréscimo de rendimento obtido com a transmissão de riqueza (devendo, para o efeito, esta ser avaliada imediatamente antes da morte). Portanto, em cerca de 1/3 dos países (14) o regime fiscal prevê a isenção na transmissão sucessória para cônjuges, descendentes e ascendentes.»

25. Em matéria de isenção no seio da União Europeia e da OCDE, Portugal tem a companhia dos seguintes estados: Áustria, Bulgária, Chipre, Eslováquia, Eslovénia, Estónia, Lituânia, Malta, México, Nova Zelândia, Polónia, República Checa e Suécia. Acrescente-se – como consta duma nota de rodapé daquele ponto 27 – que, no universo dos estados onde está institucionalizada a tributação da transmissão gratuita de bens, «Determinados regimes dispõem de regras que privilegiam a transmissão de bens para instituições de caridade. Acontece, por exemplo, nos seguintes países: Alemanha, Hungria, Finlândia, Holanda, Itália, Noruega, Reino Unido, Suíça e Turquia.» São estes bons exemplos de incentivo à caridade – através da fiscalidade, ao invés da caridade dispersa e muitas vezes fútil deixada ao arbítrio de cada um – que têm de ser seguidos. Para evitar mal-entendidos, sublinhe-se que não é minha intenção questionar sequer a utilidade social da caridade pura brotada pela vontade desinteressada dos cidadãos.

D. Outras notas de reflexão


26. O nosso País – i.e., o nosso povo – só propagará genuinamente o humanismo e a igualdade de oportunidades quando se empenhar em derrotar sem apelo nem agravo os rebuços enraizados, dos não religiosos aos das obras divinas, que minam a consolidação da democracia e crispam as relações entre os cidadãos, precisamente porque maculam a própria igualdade de oportunidades. Curiosamente não é raro que muitos dos elementos das organizações embuçadas não rejeitam a caridade como via de correção dos desequilíbrios sociais.

27. Uma grande quantidade de indivíduos preconiza inconscientemente um jaez de capitalismo das migalhas – para os competentes não alinhados ou não enraizados – e das esmolas – para os menos esforçados –, sem ter a mínima perceção de que o engodo é atroz e contrário aos seus interesses. Relembre-se a imagem da distribuição da fornada do pão descrita na secção dedicada ao «Capitalismo das migalhas», apresentada na terceira parte do post «Riquezas semelhantes mas diferentes». Reafirmo – desconforto presente no último ponto desse post – que «Para cada migalha que se desperdiça parece haver um batalhão de almas cândidas mas com vontades trovejantes a crer e defender que a fornada chega para todos.» Moral da história: basta que o todo seja suficiente, independentemente da maneira como se distribui; o que importa é não desperdiçar. Não acabei a frase com um ponto de exclamação mas impunha-se.

28. Continuo a não conseguir encontrar cabal justificação para esse capitalismo das migalhas (e das esmolas) perdidas. O moralismo oco colado com saliva, de que a panaceia para as assimetrias – qualquer que seja a sua natureza – se resolve com a igualdade de oportunidades tem funcionado porque a maioria do gentio tem avistado poucos palmos à sua frente. Como não podia ser doutra forma, o gentio é diversificado: reúne consensualmente almas ditas da esquerda, da direita, de cima, de baixo, de todo o lado, que tanto serve para isco como para presa. Uns sabem e aproveitam a sedução das migalhas – muitas e negras –; os outros não se revoltam porque teimam em não acordar.

29. Quando alguém belisca interesses instalados, aqui-d'el-rei. Graciosa gente que perde o sentido do coletivo e do bem comum e se fecha unicamente no bunker do seu microscópico umbigo. Mercê nomeadamente do tentaculoso peso corporativo na sociedade portuguesa, o escol do pensamento económico conveniente tudo decide – conveniente para ele mesmo, centro e circunferência, desde os arquitetos e estrategas aos serventes e acólitos alistados ou simpatizantes. É normal acautelarem o seu interesse; incompreensivelmente anormal é a chusma não dispor da noção de que é sempre o elo frágil dum jogo demagógico e viciado. O filão de oportunidades férteis senta-se em mesa reservada para um punhado, e é escudado pelo entretenimento da chusma dançarina de sonhos alimentada com migalhas.

30. Sabemos que há bombeiros a atear fogos e polícias a cometer crimes. Carece agora conhecer o número dos que defendem simultaneamente a caridade – ou a solidariedade voluntária (pois a outra, a solidariedade institucional, a que mais releva e deve ser fomentada, é alheia a esta polémica) –, a igualdade de oportunidades e a manutenção da isenção fiscal das heranças. Quanto maiores forem a assimetria económica e a pobreza, maior será a propensão para a cooperação social e a caridade. Temos de reconhecer que manobras retóricas e argumentos de diversão desse género são difíceis de desmontar e põem a anos-luz os paradoxos de Zenão, que é para aqui chamado sem ter qualquer culpa. As minhas desculpas.

A isenção fiscal das heranças e a caridade (parte I/II)

A isenção fiscal das heranças e a caridade (parte I/II) (09/09/2014)




A. Enquadramento


1. O presente post constitui a continuação duma peça que dura há meses. O primeiro ato consistiu no documento «Zerar para ressuscitar e criar oportunidades sustentáveis», de 13 de dezembro de 2013 (que, de tanto ruído gerado, originou a nota de esclarecimento «A utopia do novo pensamento e a indefinição democrática»). Entre outras polémicas – com destaque para a relativa à criação dum imposto especial sobre o património (financeiro ou não) das famílias para amortizar a dívida pública –, aquele documento aborda sucintamente, na sua secção E (referente à reintrodução do imposto sucessório), o tratamento fiscal das heranças, incluindo os regimes instituídos nos vários países da União Europeia ou da OCDE.

2. O segundo ato da peça reacendeu-se com o post trifásico «Riquezas semelhantes mas diferentes» (1.º2.º3.º), que por sua vez nasceu com a controvérsia irrompida pelo livro O Capital no séc. XXI, de Thomas Piketty. Este autor alertou para a necessidade de reformular o atual modelo de distribuição dos rendimentos e denunciou as assimetrias da riqueza. Para além de me ter debruçado acerca da celeuma criada à volta do livro, procurei estruturar e sintetizar a origem dos rendimentos e da riqueza, pelo que foi impossível não mencionar que a OCDE desaconselha a isenção tributária das heranças.

3. Fazendo jus ao benfazejo pluralismo de juízos de valor, recebi bastantes opiniões discordantes do teor desse post, que desde já agradeço. Analisados os argumentos críticos que me foram expostos – cujo resultado constará das subsecções C.2 a C.4 –, entendo respeitosamente que não se ajustam ao âmago do tema em questão, pelo que admito não ter havido uma leitura cuidada do post que permitisse aferir em que medida os comentários transmitidos se inserem no mesmo. Como irei concretizar, algumas críticas tecidas, apesar de teoricamente válidas, prendem-se a matérias não abordadas no post. Para o pluralismo acrescentar utilidade é essencial que os intervenientes estejam todos concentrados nos mesmos alvos, e não nos que lhes convêm.

4. Outras críticas são totalmente ilógicas e revelam que os seus autores estão presos com fortes e invioláveis rebites a convicções pessoais avulsas, pelo que tenciono não identificá-las, quanto mais comentá-las. Apenas remeto para o que escrevera na nota de esclarecimento citada no ponto 1, designadamente para o primeiro parágrafo da terceira secção. Transcrevo: «Não há liberdade sem promoção da igualdade de oportunidades, nem democracia sem justiça (tanto individual como social). Não reconhecendo estas verdades cristalinas, será difícil compreendermo-nos como um país democrático. Se continuarmos a constatar que cada iniciativa para fazer alterações estruturais colide com a tradicional parede de interesses (pessoais, partidários ou corporativos), tenhamos ao menos hombridade para assumir que vivemos numa democracia das bananas, bem nascida mas mal crescida e empalada.»

5. Faltando espírito aberto – ou melhor: espírito objetivo –, o debate é infrutífero. Subsistindo dúvidas quanto à perspetiva que venho manifestando sobre o imposto sucessório, terá existido um erro de comunicação. Porque também admito não ter sido suficientemente claro nos três posts atrás indicados – 2+1, explicitados nos dois primeiros pontos –, cumpre fazer uma derradeira abordagem. Será a última para o peditório, pois caso contrário eu e os meus ilustres oponentes dos vários quadrantes passaríamos a ser atores duma espécie de duelo cálido e hilariante parecido com o descrito de seguida.

B. Tintalhéis


6. Nos idos em que a moeda nacional ainda era o Real – talvez nos primeiros anos do séc. XX –, houve uma discussão acesa – e salutar para a história popular local, como será explicado – entre duas almas assertivas e convictas da sua doutrina. A cavaqueira decorria à tarde numa taberna e desembocou numa área para a qual nenhuma delas possuía dote assinalável: a dicção, concretamente a pronúncia de «trinta réis». Nessa altura o povo já transformara os «reais» em «réis», para se referir ao plural de Real.

7. Provavelmente ambos coadjuvados por um elixir concentrado de uva, esgrimiram-se com troca de razões – dos anais desconhece-se se com impropérios à mistura – para vencer a batalha de como falar corretamente. Um defendia em altivo som que era «tlhinta glhéis» (ou «tlhinta guéis», desconhece-se ao certo), enquanto o outro, nada intimidado com o primeiro, vociferava que era «tinta lhéis». Foi um arremesso sucessivo de tentativas que durou um bom bocado.

8. O imperdível espetáculo sem rede nem ensaio para rir até rebentar as ilhargas foi desde então gravado pela atenção dos restantes utentes do estabelecimento comercial, tendo o momento ficado eternizado no nome do beligerante cujo problema na dicção era mais fácil de ser reproduzido pela assistência. «Tinta lhéis» soa incomparavelmente melhor que «tlhinta glhéis» (ou «tlhinta guéis»). A investigação histórica foi incapaz de desvendar o verdadeiro mistério para que o outro gladiador das palavras não tenha sido lembrado pela memória do tempo: se por o seu sotaque não ser tão sensual ou por ele ter perdido a contenda linguística (ou pelas duas hipóteses). Se foi exclusivamente pela primeira hipótese que permaneceu ignorado, então não há dúvida que a História foi ingrata.

9. Assim, a partir daí «Tintalhéis» passou a ser uma marca imaterial registada, embora sem visíveis benefícios financeiros. Somente por manifesta falha grave da heráldica faltou o mais que merecido brasão. Mas ao contrário das tradicionais e gradas famílias portuguesas de sangue azul, naquele caso o nome que os pais e padrinhos do combatente lhe atribuíram foi completamente apagado – e substituído por Tintalhéis –, como se ele tivesse sido novamente crismado. Não fosse, nessa época, a cor do sangue um elemento diferenciador, e diferente galo cantaria. Se fosse hoje, mesmo numa república em velocidade de cruzeiro, haveria provavelmente na região grupos de pressão a reivindicar o aditamento do título honorífico de Dom, para assinalar a devida dignidade da pessoa – Dom Tintalhéis, dobre-se a língua. No mínimo, seguramente ficava registado no seu epitáfio.

10. Segundo consta, os familiares do Tintalhéis – daquele Dom não colocado que, com a sua bravura, a História preservou, onde só os melhores deixam legado – foram igualmente renomeados à custa do herói da corruptela recordado pelo povo, inclusive os que já tinham partido dos prazeres e das agruras da vida. Não importavam os nomes e sobrenomes. A mulher do Tintalhéis, o filho mais velho do Tintalhéis, o pai do Tintalhéis, a falecida sogra do Tintalhéis – rebatizada postumamente, pois faleceu na posse do seu nome de berço –, por exemplo, passaram a ser referências vinculativas, relegando para o esquecimento os registos civis da conservatória.

C. Análise dos argumentos críticos


C.1. Mensagens preliminares

11. Reconheço que é arriscado ou utópico propor medidas contrárias às conveniências da maioria, sob pena de renascer um combate interminável entre os apoiantes do «tlhinta glhéis» (ou «tlhinta guéis») e os do «tinta lhéis», qualquer que seja o tamanho de cada um dos conjuntos de apoio. Ante uma população egoísta, é normal que seja ostracizado quem defende o altruísmo; e se ela é altruísta, a ostracização recairá sobre quem preconiza o egoísmo – independentemente do que o egoísmo ou o altruísmo encerram. Portanto, se o denso caudal das pessoas – situem-se ou não nos antípodas do pensamento ideológico – acha que taxar as heranças afronta a liberdade, pouco ou nada valerá provar que o benefício fiscal da benesse – sorte grande, nalguns casos – das heranças afronta quem vive exclusivamente do trabalho (assalariado ou não, e com mais ou menos afã).

12. Para mim o alarido esclareceu-se, até porque se está perante um problema cultural duma sociedade arcaica em determinados valores. Será o desejável modus vivendi. Que se pronuncie «trinta réis» como se quiser ou souber. Convinha apenas ter presente que, para dignificar a troca de opiniões, o facto de se ser fiel às ideias e honrar o ponto de vista subjetivo não colide com a obrigação de se munir de argumentos comparáveis. Para terminar esta fase, e à guisa de declaração de interesses, devo realçar que felizmente serei um dos portugueses a quem a tributação das heranças irá prejudicar. Entremos enfim no cerne dos argumentos.

domingo, 28 de junho de 2020

Competitividade – Do elixir do crescimento aos planos quinquenais de pensamento (parte II/II)

Competitividade – Do elixir do crescimento aos planos quinquenais de pensamento (parte II/II) (02/09/2014)


Principais fatores problemáticos para a atividade empresarial


13. Do inquérito anual de opinião indicado no ponto 7 solicitava-se também aos vários gestores executivos de cada país que escolhessem e ordenassem os cinco principais fatores que, na sua opinião, constituíam obstáculos à realização de negócios, entre uma lista prévia de 16. Antevia-se que alguns pudessem estar correlacionados, designadamente o nível tributário e a lei fiscal, bem como a instabilidade política e as turbulência governamental e possibilidade de existência de golpes de Estado. As respostas confirmaram a antevisão; os correspondentes coeficientes de correlação foram de 0,623 e 0,565 para o conjunto dos 148 territórios inclusos no relatório.

14. Para os 41 estados da OCDE ou da União Europeia, os cinco maiores obstáculos – que reuniram 61% das respostas – foram a burocracia (14,2%), o acesso ao financiamento (13,5%), o nível tributário (11,9%), a rigidez das leis laborais (11,5%) e a lei fiscal (9,6%). Para as restantes 107 economias, esses mesmos cinco obstáculos recolheram 41% das respostas e, entre os cinco principais obstáculos selecionados – 53% das respostas –, o que mereceu maior atenção foi o acesso ao financiamento (13,4%), portanto praticamente igual à percentagem identificada para a média dos 41 estados atrás apresentados. Foram ainda invocadas a corrupção (12,4%), a burocracia (11,3%), a insuficiência das infraestruturas (8,4%) e a desadequação da mão de obra (7,1%). O nível tributário recolheu só 5,8% das respostas, menos 6,1 p.p. do que no grupo de nações da OCDE ou da União Europeia, enquanto neste grupo a corrupção apenas mereceu a atenção de 4,8% das respostas, i.e., menos 7,6 p.p. face às restantes economias.

15. Apesar de o conjunto das 107 economias ser bastante diversificado – em termos de competitividade o abismo vai do Chade a Singapura, e de PIBpc do Malawi ao Qatar –, somente 11 delas tinham simultaneamente maior competitividade e maior PIBpc do que Portugal. Nove países eram mais competitivos embora possuíssem menos PIBpc. Não havia qualquer caso em que o PIBpc era superior ao português mas a sua competitividade era inferior. Isso significa que 87 economias – 81% de 107 – registavam valores mais baixos do que Portugal em competitividade ou em PIBpc, razão pela qual se decidiu tratar de forma agregada os territórios não pertencentes à OCDE ou à União Europeia.

16. Em Portugal os cinco fatores mais problemáticos concentraram 78% das respostas. Para os gestores portugueses as algemas e os grilhões mais possantes residem nitidamente no acesso ao financiamento (22,3%) – 8,8 p.p. acima da média dos 41 estados da OCDE ou da União Europeia. Os outros quatro obstáculos reclamados que tornam a realização de negócios mais periclitante foram a burocracia (15,8%), o nível tributário (15,6%), a instabilidade política (12,9%) – mais 6,9 p.p. comparativamente à média dos mencionados 41 estados – e a lei fiscal (11,2%). Acrescente se que a insuficiência das infraestruturas foi tão-só nomeada em 0,3% das respostas, ao passo que para a média dos países da OCDE ou da União Europeia o nível de respostas foi de 5,1%.


Competitividade de Portugal


17. No universo das 148 economias o País detinha a 39ª e a 51ª melhores posições no ranking do PIBpc e no da competitividade, respetivamente – percentis 74 e 66. No segundo pilar da competitividade – infraestruturas – ocupava o percentil 85. Em termos de saúde, educação e formação dos empregados – quarto e quinto pilares –, e de capacidades de leitura tecnológica e de inovação – nono e décimo segundo pilares –, os percentis fixavam-se entre 80 e 82. Contrariamente, os piores percentis situavam-se nos pilares 3, 7 e 8, ou seja, referentes ao ambiente macroeconómico, ao mercado de trabalho e ao mercado financeiro – percentis 16, 15 e 23. Cumpre por conseguinte debruçar um pouco sobre estes três pilares.

18. Apesar de Portugal ser um dos países com o melhor ranking em relação à inflação (por a moeda corrente ser o Euro), a fraca competitividade macroeconómica deve-se essencialmente ao défice orçamental e – sexta posição mais desfavorável entre os 148 territórios – ao peso da dívida pública, na medida em que a Nação vê-se bastante limitada em prestar serviços estatais eficazes e em reagir perante crises que afetam a atividade empresarial. Ademais, a qualidade creditícia e a taxa bruta de poupança nacionais são indicadores que deixam o País mal comparado com os demais. Trata-se de indicadores objetivos, por serem quantitativos. Foi o principal pilar responsável para que Portugal tenha descido, entre 2011 e 2013, do percentil 68 para o 66 no índice de competitividade global. É um dos quatro pilares que compõem o subíndice dos requisitos básicos, aliás o subíndice mais relevante – na óptica do FEM – para os países com níveis de desenvolvimento inferiores, por ser o mais valorizado (60%) para a determinação do índice de competitividade, como foi salientado no ponto 9.

19. Portugal também se destaca claramente pela negativa em dois pilares: os últimos dois enunciados no ponto 17. Acerca do mercado de trabalho, o País registava a 15ª pior posição no tocante aos custos (expressos em número de semanas de salário) com os empregados redundantes – indicador quantitativo. A Dinamarca – que era a 15ª economia mais competitiva entre as 148 – possuía o primeiro lugar neste item dos custos de redundância. Os restantes quatro indicadores avançados pelos gestores – do ranking 139 (i.e., 10ª posição mais modesta) ao 111 – eram: o efeito dos incentivos fiscais ao emprego; as práticas de contratação e de despedimento; a relação entre os salários e a produtividade; e a capacidade nacional para manter os talentos, ligada sobremaneira à fraca cultura nacional da meritocracia.

20. Relativamente ao pilar do mercado financeiro, do ranking 121 ao 118 encontravam-se os indicadores referentes à facilidade de acesso ao crédito, à solidez dos bancos e ao índice de direitos legais. Este índice advém de informação quantitativa e mede a eficácia das leis de garantias e falências no tocante à proteção dos direitos dos mutuantes e dos mutuários, e por isso é uma proxy importante sobre o grau de facilidade na concessão de empréstimos. Deve-se atender a esta concessão numa ampla aceção, no sentido de incluir não apenas o financiamento das ações operacionais mas também o financiamento das atividades de investigação e desenvolvimento.

21. A Nação guardava ainda uma posição desfavorável (face ao seu índice compósito ou global) no pilar 6, o da acessibilidade eficiente ao mercado – percentil 51. Os indicadores claramente piores eram o efeito dos incentivos fiscais ao investimento e os custos da política agrícola – rankings 139 e 117. Os outros indicadores (igualmente qualitativos) que revelavam a necessidade dum vasto trabalho por encetar pertencem ao pilar das instituições – pilar 1. Trata-se de itens relacionados com os custos significativos suportados à margem dos negócios propriamente ditos, em especial – do ranking 132 ao 118 – os encargos com a sobrerregulamentação, com as despesas respeitantes à resolução da litigância – problema endémico do sistema judicial português, abordado nos posts O réquiem pela justiça e a operação Mãos Dadas com Abril, publicados em 28 de junho e 2 de julho p.p. – e com o desperdício dos gastos do Estado.

22. Como se compreende, o rol de itens apresentados na presente secção não é exaustivo. Embora as áreas afetas aos mesmos sejam provavelmente as mais problemáticas no domínio da competitividade nacional, importa realçar que existem outras que requerem uma reformulação da abordagem que tem vindo a ser seguida, fundamental para Portugal posicionar-se na parte da frente do pelotão internacional. É notório que o País não tem aproveitado como seria desejável as vantagens nos cinco pilares mencionados no ponto 17, onde goza duma visível vantagem competitiva relativa – pilares 2, 4, 5, 9 e 12.

23. Para que possa colher o fruto dessa vantagem, torna-se urgente refletir, de forma aprofundada e articulada, acerca das medidas que tenham maior impacto na competitividade nacional. Ante uma área tão nevrálgica como esta, e tendo ficado bem patente na primeira secção a relação causal entre a competitividade e a riqueza, é essencial que a Nação desbrave o caminho recôndito para conquistar o âmago das soluções e consiga identificar a luz para além da aurora do horizonte.

24. Não basta copiar as melhores práticas. Acima de tudo há que adaptá-las inovadoramente, procurando antecipar-se à própria evolução natural dos acontecimentos, na senda da diversificação e modernização da atividade produtiva, da economia e da sociedade portuguesas, o que carece da prévia existência da diversificação e modernização da mentalidade do povo e dos seus representantes. É necessário pensar vários anos à frente do tempo, sendo obrigatório ter permanentemente presente duas condições invioláveis: a articulação estreita entre competitividade e sustentabilidade não somente no domínio económico, e o respeito sincero pelas gerações mais novas e vindouras. Para tal, serão precisos planos quinquenais de pensamento que incluam o maior número possível de intervenientes sensatos com ideias honestas.

Competitividade – Do elixir do crescimento aos planos quinquenais de pensamento (parte I/II)

Competitividade – Do elixir do crescimento aos planos quinquenais de pensamento (parte I/II) (29/08/2014)


Relação robusta entre competitividade e riqueza dos países


1. Competitividade é uma palavra fadada que está associada ao elixir do crescimento. Mais do que isso, ela define frequentemente a potência do motor da riqueza material de cada nação, visto que tem uma relação estreita com o nível de produtividade, do qual dependem a magnitude do desenvolvimento económico, dos rendimentos gerados e do bem-estar usufruído pelas populações. O gráfico seguinte evidencia a forte correlação (ρ) positiva entre a competitividade e o PIB per capita (PIBpc) – ρ=0,839 –, para a totalidade das 148 economias consideradas para efeitos da elaboração do relatório do Fórum Económico Mundial (FEM) sobre a competitividade mundial, publicado em 2013 – The Global Competitiveness Report 2013-2014.



Os triângulos vermelhos representam os países da OCDE pertencentes à União Europeia – o triângulo maior, na área central do gráfico, localiza Portugal. Os quadrados amarelos, os círculos rosa e os losangos pretos simbolizam, respetivamente, os países da OCDE não pertencentes à União Europeia, os países da União Europeia não pertencentes à OCDE e os países da OPEP (excluindo o Iraque). Os três pontos assinalados com “+” (na zona do canto superior direito) traduzem os Tigres Asiáticos – inclui Hong Kong, não obstante ser uma região administrativa chinesa (tal como Macau, ainda que não presente no relatório); falta a Coreia do Sul, por integrar a OCDE.

2. O tratamento efetuado à informação original constante do relatório do FEM – e posto em prática unicamente por facilitar a análise dos dados e a exposição gráfica dos mesmos – cingiu-se em logaritmizar o PIBpc – em base neperiana – e transformar a escala do índice de competitividade – de 1-7 em 0-100. Das duas séries de dados resulta a seguinte equação de regressão linear:

ln PIBpc = 2,731 + 0,113.competitividade
                                               (0,3298)  (0,0061)

sendo o coeficiente de determinação de 0,704 (= 0,839^2), pelo que cerca de 70% da variação do logaritmo do PIBpc explicam-se pelo índice de competitividade global mensurado pelo FEM – abordado na próxima secção –, o que é relevante tanto do ponto de vista estatístico como do económico. Em virtude de nenhum país registar um nível competitivo nulo ou próximo de zero – o valor mínimo é de quase 31 –, não há interpretação económica para a estimativa 2,731.

3. Cumpre referir que, para o teste unicaudal aplicado ao coeficiente de correlação, o valor da estatística empírica – em concreto 18,632 – excede incomparavelmente o valor da correspondente estatística teórica para qualquer região crítica – 2,352 para o nível de confiança de 99%, por exemplo. Assim, o valor de probabilidade (ou p-value) é infinitesimal, o que confirma a intensa significância estatística da relação entre a competitividade e o PIBpc (pese embora as séries se reportem a anos diferentes), ou seja, dada a abrangente dimensão da amostra – 148 observações –, a probabilidade de essa relação não ser fortuita é praticamente 100%. A análise de variância da regressão indica que o modelo obtido parece encontrar-se ajustado à realidade refletida nos dados inscritos do relatório e pode ser utilizado para realizar previsões. Tendo em conta o erro-padrão estimado do coeficiente de inclinação (0,0061), para um nível de confiança de 99% para tal coeficiente a sensibilidade ou elasticidade do PIBpc (em base logarítmica) face ao índice de competitividade situar-se-á entre 9,9% e 12,8%.

4. Adiante-se que, quaisquer que sejam os usuais níveis de significância considerados (nomeadamente 1%), são válidos os pressupostos de que os resíduos são independentes e identicamente distribuídos e seguem a distribuição Normal com média 0 e variância constante (0,663). Para verificar a hipótese da normalidade dos resíduos recorreu-se ao teste de Kolmogorov-Smirnov, e para rejeitar as hipóteses de autocorrelação e de heterocedasticidade dos mesmos – por outras palavras: hipóteses de que não são independentemente distribuídos e que a sua distribuição não tem uma única variância – adotaram-se os testes de Durbin-Watson e de Breusch-Pagan, respetivamente. A escolha deste último teste deve-se às circunstâncias de se estar em presença dum número suficientemente grande de observações e de se ter provado que os resíduos seguem assintoticamente uma distribuição Normal.

5. De modo a tentar incrementar a qualidade estatística da regressão – que é de 0,704, conforme mencionado –, procurou acrescentar-se outras variáveis para além da competitividade, desde que não fossem redundantes (para não incorrer no problema da multicolinearidade). Com vista à redução dos 29,6% da variação do PIBpc não explicados pela competitividade, ensaiaram se como variáveis explicativas o peso do comércio externo – exportações e importações – face ao PIB, o nível de desigualdade na repartição dos rendimentos – medido pelo índice de Gini –, o grau de religiosidade dos cidadãos e a inserção (ou não) – variável artificial – nos espaços da OCDE ou da União Europeia. A inclusão (de forma isolada ou conjunta) destas quatro variáveis contribuiu imaterialmente para a qualidade da regressão, não chegando o coeficiente de determinação a atingir 0,75. Importa portanto atribuir especial cuidado à competitividade, a variável-chave para que se criem oportunidades de crescimento e emprego e o calcanhar de Aquiles para que muitas sociedades não se consigam libertar da pobreza castigadora.

6. Graficamente conclui-se com facilidade que os outliers são os pares de observações (35,8; 8,7), (39,2; 9,5) e (53,5; 6,5), afetos a Angola (A), Venezuela (V) e Ruanda (R), por terem, em termos relativos, por um lado, valores reduzidos para a competitividade e elevados para o PIBpc – os dois primeiros pares – e, por outro, um valor elevado para a competitividade e reduzido para o PIBpc – o último par. Mediante os dados divulgados pelo FEM conclui-se que os percentis da competitividade e do PIBpc são 4 e 47 (A), 9 e 66 (V), e 55 e 9 (R). Do ponto de vista analítico confirma-se que os maiores resíduos da regressão – 2,293 (V), 1,88 (A) e -2,262 (R) – correspondem nitidamente aos anteriores três pontos identificados. Com a exclusão dos mesmos, a qualidade da regressão melhoraria ligeiramente, passando a equação a ser definida por lnPIBpc=2,52+0,117.competitividade. Os coeficientes de correlação e de determinação passariam de 0,839 e 0,704 para 0,862 e 0,743, e a elasticidade de 0,113 para 0,117.

Índice de competitividade global


7. O índice de competitividade obtido pelo FEM é fidedigno e completo. Foi construído através de 114 indicadores – dos quais a maioria (80) refere-se a informação de natureza qualitativa extraída do inquérito anual de opinião dirigido aos gestores executivos –, repartidos por uma dúzia de pilares, a saber:
   1) Consolidação das instituições públicas e privadas (21 indicadores)
   2) Oferta de infraestruturas (9 indicadores)
   3) Estabilidade do ambiente macroeconómico (5 indicadores)
   4) Saúde e educação básica da força de trabalho (10 indicadores)
   5) Educação e formação da mão de obra (8 indicadores)
   6) Acessibilidade ao mercado (16 indicadores)
   7) Funcionamento do mercado de trabalho (10 indicadores)
   8) Desenvolvimento do mercado financeiro (8 indicadores)
   9) Aproveitamento dos benefícios tecnológicos (7 indicadores)
   10) Dimensão do mercado interno ou externo (4 indicadores)
   11) Sofisticação dos processos de negócio (9 indicadores)
   12) Fomento da inovação (7 indicadores).

8. Retomando a elasticidade PIBpc-competitividade expressa na última parte do ponto 3, constata-se que o acréscimo duma unidade de competitividade (na escala até 100) pode passar por uma melhoria inicial num item. Esta melhoria terá um efeito multiplicador, dado que os indicadores não são completamente exclusivos. A resposta ao aumento – concreto ou, nas situações de informação qualitativa, apreendido – dum indicador no PIB é economicamente válida, pois a atração de investimento (nacional ou estrangeiro) depende da taxa de retorno do capital investido, a qual varia bastante em função do nível de produtividade dos fatores de produção. É aí que reside porventura a principal fonte de competitividade entre os países, necessária para um efetivo crescimento sustentável.

9. Para calcular o índice de competitividade global o FEM empregou uma metodologia própria. Criou três subíndices e ponderou-os consoante o tipo de economias, aliás em linha – como o próprio Fórum reconhece – com as teorias (neoclássicas) sobre o estádio de desenvolvimento dos países. O primeiro subíndice – de requisitos básicos, segundo a sua terminologia – inclui os quatro primeiros pilares; o segundo – de eficiência reforçada – abarca os seis seguintes; e o terceiro – de inovação e sofisticação – contempla os dois últimos. Para as economias que se encontram no patamar mais baixo de crescimento, os referidos subíndices tiveram a ponderação de 60%, 35% e 5%. Para as que pertencem ao segundo nível, os ponderadores foram 40%, 50% e 10%, enquanto para as que estão no limiar superior de crescimento passaram a ser 20%, 50% e 30%. Para os países em fase de transição – entre o primeiro e o segundo e entre o segundo e o terceiro níveis –, os ponderadores foram escolhidos individualmente adotando dois critérios: o PIBpc e o peso das exportações de produtos minerais no total das exportações (de mercadorias e serviços).

10. Há todavia a frisar que se prescindia da incursão do FEM aos modelos económicos de desenvolvimento para determinar o grau de competitividade. Não tanto por serem controversos para algumas correntes de pensamento mas sim por se revelarem indiferentes para o caso em apreço. Entre optar pela metodologia intricada descrita no ponto anterior – da qual resultou ρ=0,839, como já indicado – e adotar a média simples dos três subíndices – de onde provir ρ=0,842 – ou aplicar aos vários países as ponderações supra apresentadas – advindo ρ=0,865, 0,856 ou 0,832, para os pesos 60%-35%-5%, 40%-50%-10% ou 20%-50%-30%, seguindo a mesma ordem –, conclui-se que se mantém o nível da robustez da correlação entre a competitividade e o PIBpc. Tal sucede porque os vários subíndices estão fortemente relacionados entre si – entre 0,833 e 0,925.

11. Como o FEM sublinha, a competitividade é uma condição necessária mas insuficiente para a prosperidade, não apenas porque os valores modernos de cidadania conduzem a que o progresso esteja intimamente associado ao respeito pelo Homem e pela Natureza - este argumento não foi invocado pelo Fórum -, mas também devido ao evidente impacto benéfico que a sustentabilidade social e ambiental provoca nas políticas económicas e no respetivo desempenho, constituindo ela própria desse modo um fator competitivo de crescimento de longo prazo. Assim sendo, o FEM efetuou um ajustamento ao índice de competitividade global, incorporando as componentes social e ambiental. Concretamente aplicou ao índice de competitividade quer um coeficiente de sustentabilidade social, quer outro de sustentabilidade ambiental, os quais variam entre 0,8 e 1,2. Por ausência de informação, 27 dos 148 territórios foram excluídos da análise. Para os 121 países para os quais foi possível calcular o índice de competitividade global corrigido, a correlação deste com o PIBpc – 0,843 – é praticamente igual à obtida sem o ajustamento – 0,832 (que era de 0,839 para o conjunto das 148 economias, como se tem repetido).

12. Os dois coeficientes acima citados contêm certas limitações, decorrentes nomeadamente do facto de eles permitirem compensações entre os diferentes indicadores que comportam cada um dos coeficientes, por um lado, e de diversas importantes métricas sociais e ambientais não terem sido incorporadas por falta de informação, por outro. Não obstante, são um barómetro fragrante (e flagrante) das condições de vida duradouras e da prosperidade sólida, porquanto a competitividade ajustada às dimensões social e ambiental fica dotada duma perspetiva de estabilidade temporal que o índice de competitividade global por si só não possui.

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