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domingo, 26 de julho de 2020

Dos sofismas constitucionais à explosão da injustiça (Documento completo)




David Dinis(2)

A. Âmbito da abordagem


Recentemente publiquei um texto que versou sobre os direitos adquiridos – intitulado Os direitos adquiridos e a (dis)função sindicaldos tempos modernos –, no qual relacionei o assunto das indemnizações por despedimento com a implícita perspetiva sindical no que se refere aos direitos dos trabalhadores. Relativamente ao mesmo assunto, trouxe à colação, ainda que de forma ligeira, o entendimento dos constitucionalistas acerca dos direitos adquiridos. Agora irei abordar este tipo de direitos procurando fazer uma introspeção ao raciocínio dos constitucionalistas, com o objetivo de concluir que, contrastando com a ideia de alguns cidadãos, a opinião deles talvez não provenha de formulações subjetivas nem de juízos valorativos orientados por critérios políticos, mas antes de pressupostos a precisar de revisão.
Os direitos adquiridos constituem uma espécie atualizada, com as devidas adaptações, do conto A Palavra Mágica, escrito por Vergílio Ferreira, em que quase todos utilizavam incorretamente a palavra inoque – ou noque, para os mais preguiçosos na dicção. Constituía uma palavra mal‑afamada, associada a múltiplos sentidos negativos que a ignorância brotava. O esclarecimento somente foi superior mas não definitivamente obtido quando as desavenças causadas pelo uso e abuso ofensivo do vocábulo acabaram na barra do tribunal, onde os juízes desvendaram que na génese da discórdia estava – passo a redundância – o inofensivo significado da palavra inócuo.
Contudo, ao invés do conto, no qual os juízes desbloquearam o mistério do (i)noque, no caso dos direitos adquiridos parece que nem mesmo os profissionais da justiça dispõem de engenho para descobrir a ponta do ensarilhado novelo – às vezes, pelo contrário, fica‑se com a ideia que até acrescentam nós, como se os atuais fossem insuficientes. Creio que essa descoberta da ponta do novelo não seja possível com o recurso à lógica ou à metafísica, restando portanto acreditar que apenas será alcançada mediante soluções divinas, mágicas ou, em última instância, cartomantes que levem aqueles doutos profissionais a mudar de posição.
Na próxima secção relaciona‑se a atribuição das subvenções vitalícias com o reconhecimento dos direitos adquiridos. De facto, para realizar o exercício introspetivo avançado na parte final do primeiro parágrafo, nada melhor do que utilizar uma matéria – as subvenções mensais vitalícias – para tentar mostrar que existirão juízes do Tribunal Constitucional que, apesar de poderem estar expostos a uma situação de conflito de interesses, têm atuado de forma isenta e coerente, afastando portanto qualquer dúvida quanto aos critérios que orientam os seus pareceres vinculativos – escrevi «poderem estar expostos», na eventualidade de haver juízes desse tribunal na vida ativa que venham a usufruir de subvenções vitalícias.
Posteriormente enquadrar‑se‑ão tais subvenções e demais exemplos tanto no que concebo ser o entendimento dos constitucionalistas em relação aos direitos adquiridos, como no meu próprio entendimento. Admito que, nalgumas ocasiões, os pareceres dos constitucionalistas, incluindo os dos juízes do Tribunal Constitucional, assentam em premissas incorretas. Noutras, julgo que, não estando interiorizados determinados conceitos fundamentais referentes à racionalidade económica, as suas decisões são distorcidas, por mais digna e esforçada que seja a suprema vontade de alcançarem a justiça.
Apresentados e explicados os exemplos, abordarei depois os dois princípios que constituem os alicerces dos direitos adquiridos em Portugal – os princípios da não retroatividade e da confiança. Terminarei com algumas reflexões adicionais acutilantes sobre os direitos adquiridos, tentando justificar como os contrastes e a injustiça entre os portugueses têm sido fomentados pelas interpretações que os constitucionalistas têm formulado e pelas posições que outros atores têm defendido.

B. Subvenções mensais vitalícias


Antes de mais, cumpre‑me sublinhar que sou dos poucos a considerar que os políticos devem ser bem remunerados, visto serem os representantes da Nação e por estarem permanentemente expostos à mesquinha inveja e à vil devassa da sua vida privada. Não pretendo com isto defender a ideia de que são mal remunerados. Hoje e no passado, uns auferem e auferiram muito acima quer da competência, responsabilidade e idoneidade demonstradas, quer da utilidade prestada ao povo, enquanto com outros passa‑se o oposto.
As subvenções mensais vitalícias – vulgarmente designadas por pensões dos políticos –resultam(avam) de uma lei aprovada no mês do 11.º aniversário da Revolução dos Cravos, abrangendo não só os membros do Governo e os deputados à Assembleia da República – os políticos puros –, como igualmente os juízes do Tribunal Constitucional não qualificados como magistrados de carreira – os políticos juízes. Dez anos mais tarde, em 1995, a recompensa atribuída aos políticos e aos juízes do Tribunal Constitucional foi extensível ao governador e aos secretários adjuntos de Macau(3).
Também aqui não ouso cair na acusação fácil de arrasar o objetivo da criação das subvenções concedidas aos titulares de cargos políticos. Reconheço que a visão romântica do serviço voluntário prestado à Nação, posta em prática egregiamente pelo honroso jurista e político Manuel Fernandes Tomás até às suas últimas gotas de energia e amor pátrio, é dificilmente compaginável com os tempos modernos. Apenas num cenário imaginário de refundação do nosso sistema social e político se admitiria o aparecimento desse género de voluntariado(4).
Com a lei inicial de 1985, para ter direito à subvenção seriam precisos tão‑somente oito anos de serviço político, consecutivos ou interpolados, prestados após 25 de abril de 1974. Dez anos volvidos, o tempo necessário passou de oito para 12 anos. Em 2005 revogou‑se definitivamente a lei das subvenções vitalícias, embora tenha sido fixado um período transitório até 2009, ano do fim da legislatura, para salvaguardar os direitos de um conjunto de deputados – ou seja, continuaram a ser elegíveis os anos de serviço desempenhados pelos mencionados políticos puros e políticos juízes, desde que nesse ano de 2009 eles tivessem exercido funções durante 12 anos completos(5).
Devo todavia pronunciar‑me em relação às subvenções vitalícias no âmbito dos direitos adquiridos. Não existe explicação lógica para que alguns estejam a receber subvenções pelo exercício de cargos políticos durante oito anos, tendo para outros sido exigidos 12 anos, enquanto para os restantes não foi nem será reconhecida semelhante benesse pelo desempenho de funções análogas. A assimetria resultante da aplicação dos direitos adquiridos ao caso em apreço torna‑se mais caricata porque os políticos – puros e juízes – ainda não reformados ou aposentados – que em 2009 haviam cumprido o prazo elegível de 12 anos – têm o direito de vir a solicitar as subvenções vitalícias. Por outras palavras: para alguns políticos que estão no ativo prevalecem umas regras e para outros, também no ativo, existem regras totalmente diferentes. Não é lógico; mas certamente é constitucional(6).
Para os magnos protetores da nossa Constituição, admito que será inconstitucional a medida de reduzir significativamente o valor das subvenções mensais, porquanto desonrará os direitos adquiridos das pessoas que as recebem ou que já adquiriram o direito às mesmas. Não foi no entanto inconstitucional que, com o Orçamento do Estado de 2011, continuasse a ser possível a acumulação de subvenções com salários do setor privado e ficasse vedada a acumulação tratando‑se de vencimentos do setor público. Não me atrevo a pensar que a identificação dos direitos adquiridos esteja sujeita a regras opacas ou aleatórias; assumo antes que os critérios empregues são de impercetível alcance para os cidadãos. Em democracia convém que as regras sejam entendíveis pela maioria das pessoas; senão coloca‑se a vontade justificável de querer saber de que estirpe de regime democrático se está em presença.
Ainda, e relativamente ao facto de a lei das subvenções vitalícias ter incluído, para além dos políticos propriamente ditos, (apenas) os juízes do Tribunal Constitucional não qualificados como magistrados de carreira, cumpre informar que os restantes juízes desse tribunal têm um estatuto autónomo. Com a Lei nº 85/89, de 7 de setembro, foi aditado à lei orgânica do tribunal – a original Lei nº 28/82, de 15 de setembro – o regime de previdência e aposentação dos juízes do Tribunal Constitucional – artigo 23º‑A –, segundo o qual se dispõe que estes podem requerer a aposentação voluntária, sem necessidade de apresentação a junta médica, após 12 anos de serviço (i.e., exercício das funções de juiz do Tribunal Constitucional), independentemente da idade, ou após 10 anos de serviço, se tiverem pelo menos 40 anos de idade. Os partidos políticos hegemónicos da lusa democracia disporão da inequívoca explicação para a existência desse estranho e dogmático regime. Afastando a ideia de ser irónico, penso tratar‑se de uma das raras áreas onde terá sido celebrado tacitamente um pacto de regime entre os mencionados partidos. É uma das ocasiões em que o melhor e mais audível comentário se resume simplesmente a não comentar.

C. Perspetiva dos constitucionalistas

C.1. Escala de direitos adquiridos


Em Portugal legisla‑se sobre quase tudo – independentemente da melhor ou pior qualidade da legislação, e da maior ou menor aplicação eficaz das leis por parte dos tribunais. Contudo, nunca se legislou o bom senso; talvez por ser impossível, por consistir numa avaliação intuitiva (mas não inata) de distinguir o bem do mal. O bom senso reside na faculdade de conseguir alcançar o equilíbrio, usando a simples técnica de separar o trigo do joio para encontrar soluções adequadas tendo em conta o enquadramento específico de cada situação e as condições e restrições dos problemas. Várias opiniões de constitucionalistas acerca dos direitos adquiridos têm estado pejadas de falta de senso.
Para agravar, até há pouco tempo era prática corrente no nosso País a ausência de credíveis estudos de custo‑benefício previamente à tomada de decisões. Os resultados estão tristemente à vista e não dignificam a nossa democracia. Devido a decisões políticas financeiramente penosas, os mais novos estão a herdar dívidas e os vindouros serão presenteados com fome de esperança. Quando se debate o tema dos direitos adquiridos é conveniente ter consciência destas questões. Sou incapaz de descortinar se a fonte de alguns problemas reside mais em quem produz as leis ou em quem as aplica. Talvez a culpa esteja irmãmente distribuída.
A cartilha de conceitos e regras usada pelos constitucionalistas está ultrapassada. Vários dos direitos que por eles são qualificados como adquiridos assentam em compromissos insustentáveis para o Estado. O caso do nosso sistema de pensões – desenvolvido adiante – é paradigmático do quão desastroso tem sido o respetivo financiamento. Apenas é possível assegurar o equilíbrio financeiro e atuarial desse sistema em duas situações extremas: aumento exponencial da população empregada, de maneira a que as contribuições para a segurança social financiem as pensões em pagamento – para além de irrealista, seria uma solução paliativa, pois o sistema produtivo nacional não conseguiria absorver infinitamente volumes crescentes de mão de obra –; ou acréscimo significativo das taxas contributivas para a segurança social por parte dos empregados e dos empregadores – seria uma solução inviável, dado que corresponderia ceteris paribus a um decréscimo draconiano do rendimento disponível dos trabalhadores.
Comprova‑se assim que o acordo geracional em que se baseia o sistema de pensões português é duplamente injusto. Injusto para o Estado, por ter criado um modelo de repartição que, logo à nascença, estava assente em premissas insustentáveis a longo prazo; e para os cidadãos mais novos, por estarem a descontar para um regime de segurança social assumindo a validade da hipótese da transitividade (i.e., no princípio de que hoje eles financiam as pensões dos mais velhos, e quando se reformarem verão as suas pensões serem financiadas por futuros ativos), quando na verdade sabem que a solidariedade geracional é uma miragem leonina e jamais se repetirá.
No quadro seguinte procuro sintetizar objetivamente a viagem feita à perspetiva dos constitucionalistas, incluindo à dos juízes do Tribunal Constitucional, socorrendo‑me para isso de vários exemplos. A terminologia adotada em relação aos direitos adquiridos que nele consta tem como único fim facilitar a comparação de pontos de vista – o dos constitucionalistas e o pessoal. Na sequência do que manifestei na primeira secção deste documento, informo que a coluna do «Entendimento dos constitucionalistas» resulta da apreciação que faço à sua atuação. As notas explicativas respeitantes à coluna das observações apresentam‑se em anexo a este documento.




C.2. Princípio da não retroatividade


A maioria dos juristas tem interpretado este princípio como a impossibilidade de se aplicarem novas leis a situações cujo direito já foi iniciado. Tal interpretação está em linha com a que eles empregam para o princípio da confiança. Para mim, a efetivação jurídica do princípio da não retroatividade traduz algo materialmente diferente: significa que não se podem aplicar novas leis aos factos já consumados e – questão essencial – consumidos.
A adoção direta e impensada do princípio da não retroatividade teve o resultado vertido na lei de 2011 e referida em anexo, nas observações relativas ao segundo exemplo constante do quadro da anterior subsecção, ou seja, as novas regras das indeminizações por despedimento produziram efeitos (conquanto só até 2013) unicamente nos contratos futuros; aos contratos anteriores à lei aplicaram‑se as antigas regras. Como se explicita em anexo, esta versão dos direitos adquiridos e do princípio da não retroatividade modificou‑se com a lei de 2013, pelo que, no tento dos próprios constitucionalistas, os direitos adquiridos passaram, racional e sensatamente, de primeira para segunda ordem. Levando à letra o princípio da não retroatividade, poderia defender‑se que este foi violado pela lei de 2013. Continuando a entrar no reino da fantasia das interpretações jurídicas, haveria argumentos para justificar que a concretização imediata do princípio faria com que a redução dos quatro feriados operada com a nova lei laboral aplicava‑se em exclusivo aos contratos novos ou – retomando o terceiro exemplo inscrito no quadro de C.1. – que o mesmo tipo de trabalho suplementar seria pago diferenciadamente consoante a data de celebração dos contratos de trabalho.
Entendo que existiria retroatividade se e somente se as leis produzissem efeitos não apenas no futuro mas igualmente no passado já consumado. Nos casos identificados no último parágrafo, assistir‑se‑ia à violação do princípio da não retroatividade se: a lei de 2013 relativa ao valor das indemnizações por despedimento fizesse com que os trabalhadores despedidos antes da data de produção de efeitos da mesma tivessem de devolver às entidades patronais o que auferiram a mais face ao que receberiam se o valor fosse calculado segundo a nova lei; se os funcionários tivessem de recompensar os empregadores pelo facto de outrora terem usufruído de mais quatro feriados do que agora é possível; e se, para os empregados que fizeram horas extraordinárias, houvesse lugar a estornos com os patrões por o trabalho suplementar ter sido melhor remunerado do que atualmente.
Já o pagamento de uma indemnização resultante de um acidente de trabalho constitui um facto simultaneamente consumado e consumido. Quando o valor indemnizatório é pago através de capital, compara‑se aos três exemplos do parágrafo precedente, ou seja, é impossível fazer um acerto de contas de uma quantia entretanto recebida e corretamente calculada, pelo que não há lugar a quaisquer efeitos retroativos. O mesmo acontece quando o valor é pago sob a forma de pensões porque, como se menciona em anexo, na parte final das observações referentes ao quarto exemplo apresentado na anterior subsecção, a verba correspondente ao valor atual da pensão foi integralmente transferida para a seguradora, pelo que o facto jurídico que originou o pagamento também está consumido.
O caso das pensões de reforma ou de sobrevivência do regime geral da Segurança Social e da Caixa Geral de Aposentações é completamente diferente. Os factos que deram origem ao direito já foram consumados – correspondem, por exemplo, à passagem à idade legal de reforma por velhice ou à morte do cônjuge – mas não foram totalmente consumidos – porque não houve externalização (para outra entidade) da responsabilidade pelo pagamento das pensões nem existe um montante financeiro suficiente para assegurar o pagamento vitalício das pensões, o que não acontece, repito, com as pensões de acidentes de trabalho (cuja responsabilidade pelo pagamento é externalizada para as seguradoras).
Como tal, a aplicação do princípio da não retroatividade às pensões de reforma ou de sobrevivência significa exclusivamente que uma eventual alteração do valor futuro das pensões não tem implicações nas verbas já recebidas; tem impacto unicamente para o futuro. O mesmo se passa com as subvenções vitalícias dos políticos, com o abono de família e com o rendimento social de inserção: os montantes vencidos estão definitivamente liquidados – é este o domínio a que deve restringir‑se a validade do princípio da não retroatividade – e os montantes vincendos podem ser objeto de modificação – sobre estes pode existir retroatividade de efeitos, pois já não se trata duma matéria jurídica (mas sim política, isto é, a modificação depende somente dos critérios definidos pelos decisores políticos).

C.3. Princípio da confiança


Do Estado‑providência, apanágio da era do sonho dourado e infinito, pouco mais resta que o nome. A realidade mudou por completo, inevitavelmente. As pressuposições do modelo social europeu estão a desaparecer e a repousar na memória. E como se tal inevitabilidade não bastasse, a perspetiva de futuro negro tem sido agravada com o caminho doentio de quase endeusamento dos direitos adquiridos. Apenas faria sentido evocar a violação do princípio da confiança se os veículos que materializam os direitos adquiridos estivessem adequadamente financiados ou fossem tendencialmente sustentáveis. Como tal não se verifica, a sua evocação é um logro ou então um descuido.
Tem‑se assistido cada vez mais à predominância do princípio da confiança e à desconfiança no princípio da expectativa, o que é uma fria imagem do poderio do passado e do esquecimento do futuro. Sem alarmismos – porque a realidade é bem mais alarmante do que todos os argumentos mais ou menos jurídicos –, convém ter presente que, pelo menos em tempos de crise, direitos adquiridos e futuro são imiscíveis, uma vez que a manutenção dos direitos adquiridos relacionados com os pagamentos suportados pelo Estado confisca literalmente o futuro. Com efeito, para financiar os direitos adquiridos – entendidos na aceção generalizada que tem sido seguida pelos constitucionalistas – são necessários cada vez mais impostos, o que torna o nosso País menos competitivo face ao exterior, com as graves consequências que tal acarreta, nomeadamente o aumento do desemprego e o enterro da esperança dos portugueses – sobretudo a dos mais novos. É este o cenário triste e infundadamente conservador que o fundamentalismo dos direitos adquiridos representa para as gerações vindouras.
Para que os constitucionalistas consigam desamarrar‑se de alguns vícios de raciocínio, é imprescindível que os seus entendimentos tenham em conta critérios de racionalidade. Ademais, creio que, para assegurar as sempre desejáveis coerência e razoabilidade de entendimentos, eles devem articular o tão amado e protegido princípio da confiança com o tão órfão e desamparado princípio da legítima expectativa. O primeiro tem abrangido marcadamente os reformados e pensionistas, portadores por excelência dos direitos adquiridos; o outro tem afetado mais a população ativa, que vê o seu futuro cada vez mais a engordar de vazio. A disfarçável alegria de uns é a indelével agonia dos restantes.
Reconheço perfeitamente as nefastas consequências sociais causadas pela necessidade inultrapassável de abandonar a rigidez do princípio da confiança aplicada aos direitos adquiridos. Contudo, em nome da honestidade, os cidadãos, em geral, e os constitucionalistas, em particular, não devem esquecer que a dimensão dessas consequências não é inferior à da que tem sido provocada pela abdicação permanente do princípio da expectativa. Por diversas razões, e com maior ou menor dificuldade, compreende‑se – não significa que se aceite, note‑se – que as expectativas dos mais novos tenham vindo a gorar‑se. Infelizmente, não por capricho do Homem mas sim por vontade do tempo. Ao invés, incompreensível é a visão desfocada e parcial dos que defendem os direitos adquiridos sob um olhar inexplicavelmente desenquadrado da realidade, abstraindo‑se dos ruídos geracionais que a mesma provoca. Neste aspeto, os constitucionalistas e os sindicalistas têm andado em sintonia.
Sendo o respeito pelo primado da boa‑fé um dos barómetros da qualidade democrática, os portugueses que não profiram em vão a bela palavra «democracia» auto‑obrigam‑se a ter presente que a boa‑fé é inexistente nos casos da defesa do princípio da confiança à custa da castração do princípio da expectativa. Lamentavelmente é o que tem sido encetado com regularidade. É urgente que se reflita no objetivo imperativo de articular equitativamente o respeito desses dois princípios, sem julgar que é inconstitucional a flexibilização do primeiro e constitucional a violação do segundo. Não é por questões de moralidade, mas sim para o bem da coesão nacional e do futuro de Portugal. Poderá chegar um dia em que a resignação dos mais novos se esgota. Os sofismas constitucionais são – entre outros – um dos focos da latente explosão causada pelas feridas insaráveis da injustiça geracional.
Os constitucionalistas vêm prescrevendo o princípio da confiança às situações em que o Estado, sob os pontos de vista técnico e financeiro, assumira compromissos irresponsáveis. É verdade que, para as pessoas de bem – tal como um Estado deve ser –, a palavra ou qualquer outro compromisso formal ou informal valem tanto como uma escritura, e por isso são para honrar. O problema reside tão‑só no facto sobejamente demonstrável de que o Estado é incapaz de prosseguir os seus compromissos, pelo menos nos termos outrora assumidos, donde não resta outra solução viável que não passe pelo humilde reconhecimento da situação de falência em que se encontra e pela consequente reestruturação dos compromissos passados.
Reiterando a minha plena consciência que se trata de um problema sobremaneira delicado, adianto desde já que as medidas de recuo relativamente à assunção de responsabilidades devem ser complementadas com outras, estas muitíssimo mais estruturantes e fraturantes, assentes nos elementares princípios da proporcionalidade e da solidariedade. Quero acreditar que a nossa democracia já tem maturidade bastante para definir o seu rumo. Oxalá ela se (re)conheça e saiba sobriamente o que pretende.

D. Outras reflexões sobre os direitos adquiridos


Em conformidade com o citado neste documento, a defesa cega e insensata dos direitos adquiridos conduz à homologação da discriminação entre os portugueses. Os constitucionalistas estarão cientes que, existindo menos vacas ou vacas mais magras, há menos leite e, logo, menos quantidade de manteiga. Julgo ainda que o seu juízo será capaz de reconhecer que, com menos manteiga disponível, para dá‑la a uns para barrar o pão é preciso tirar a outros o próprio pão. É nesta intransponível metáfora que para alguns constitucionalistas se resumem os conceitos de distribuição geracional e justiça social.
Muitos dos ilustres barões criadores de opinião têm cerrado fileiras contra os inconsistentes beligerantes que ousam beliscar os direitos adquiridos. Constatamos que a atuação daqueles tem sido desprovida de glória; estão solidamente protegidos por fortes baluartes mas são vulneráveis por ar pois têm frágeis telhados de vidro. Gostaria de realçar que sinto‑me equidistante perante ambos – barões e beligerantes.
Por um lado, considero ignóbil que tais ilustres barões, pertencentes – agora e no passado – às diversas famílias políticas nacionais, não tenham suficiente estrutura moral e cívica para reconhecer que o statu quo os favorece. Se as suas convictas e acesas manifestações de opinião estivessem isentas de conflito de interesses, atribuir‑lhes‑ia todo o meu profundo apreço; como raramente estão, sou obrigado a ceder‑lhes o meu sincero desprezo. No fundo, a sua atuação é movida por vis argumentos egoístas.
Se exprimissem o nobre sentimento de preocupação pelos filhos e netos dos outros, certamente aqueles barões utilizavam o tempo e as oportunidades que dispõem para procurar obter soluções justas e equilibradas, que diminuíssem as vergonhosas desigualdades e discriminações cada vez mais implantadas e acalentassem uma genuína esperança para os portugueses mais novos. Confesso que chego a pensar que os mesmos patriotas que em 1974 sonharam (e bem) mudar a sina do País encontram‑se muito aquém de serem verdadeiros democratas, pois esgotaram para si as oportunidades por que tanto combateram e das quais têm beneficiado até ao tutano nas últimas décadas, pouco tendo deixado para as outras gerações cujo infortúnio foi terem nascido no tempo errado. Humilhante definição de humanismo; estranha forma de democracia, subalternizada pela ditadura dos falsos direitos adquiridos.
Por outro lado, desvalorizo os inconsistentes beligerantes atrás referidos, por não serem coerentes na tarefa de renovar Portugal. Apesar do invulgar ímpeto e da louvável intenção de dar nova cara e alma ao País, revelam desarticulação e frouxidão, motivos suficientes para se poder ajuizar, sob o olhar mais objetivo possível, que não servem de referência para os portugueses. Por importantes que sejam, tomam‑se medidas frequentemente avulsas e, na melhor das hipóteses, ocasionalmente justas.
Mexer nos tão apregoados direitos adquiridos é digno de registo, é certo, por constituir um sinal de luta contra alguns interesses instalados. No entanto é deveras insuficiente. Não tem havido a ambição necessária para ir além e mais a fundo e derrubar os bastiões silenciosa mas solidamente edificados. Aí existe um mar de mundos por conquistar. Haja vontade e coragem; e não falte também espírito patriótico de todas as partes para mudar o que tem de ser reformulado, sem que cada um olhe isoladamente para o seu umbigo.
Entretanto, o povo vai‑se iludindo e definhando, décadas a fio, nas habituais incessantes guerrilhas e angustiosas batalhas entre os barões dos interesses e da utopia e os beligerantes das intenções e da demagogia, sem nunca ver o fumo branco que anuncie a vitória da guerra dos ideais e do futuro. Cada povo tem o que merece. Enquanto orgulhoso português – não português orgulhoso –, acredito, juro e aposto que merecemos mais do que exigimos e muito mais ainda do que nos oferecem.
Daí que, em último recurso e desespero de causa, preconize a opinião de que é bem‑vinda a imposição doutrinária e irrefletida dos constitucionalistas. Esta será preferível à constante e infindável indefinição do nosso trajeto, por ter a vantagem de poder obrigar os decisores políticos a zerar o modelo que tem vindo a ser trilhado nas últimas décadas. Há males que vêm por bem. Feitas as contas, renascer das cinzas será porventura uma (des)graça que nos pode cair da fortuna; tornar‑nos‑á mais fortes e fraternos. Tentemos recuperar enfim o tempo perdido.


Notas explicativas (relativas ao quadro constante de C.1.)

(a) Não oferecerá qualquer dúvida que o direito à segurança e higiene no trabalho não reveste o caráter de direitos adquiridos.
(b) O direito à indemnização por despedimento foi, conforme indicado no início deste documento, objeto de outro texto, tendo nele sido explicadas as consequências das leis de 2011 e 2013 (que alteraram o valor das compensações indemnizatórias). Com a legislação de 2011 vingou a perspetiva clássica – tanto jurídica como sindical – de considerar, por um lado, que a lei só produzia efeitos para os contratos de trabalho futuros e, por outro, que para os contratos anteriores a esse diploma vingavam as regras vigentes até então. É o que se pode designar por direitos adquiridos puros (ou de primeira ordem).
Não obstante, a posterior legislação de 2013 permitiu descer o nível de qualificação dos direitos adquiridos – para direitos adquiridos de segunda ordem –, ao estabelecer que aos contratos antigos se aplicam regras menos favoráveis do que as existentes à data de produção de efeitos dessa lei. Mediante a figura do congelamento da antiguidade no momento da entrada em vigor do diploma, os constitucionalistas acabaram por reconhecer aquela descida de nível, o que para mim foi uma surpresa total por representar uma racional inflexão de interpretação.
(c) Apesar da natureza pecuniária do direito referente à remuneração do trabalho extraordinário, não se levanta o problema dos direitos adquiridos. O legislador pode mudar as regras remuneratórias na altura que quiser, as quais terão efeitos daí em diante sobre todos os trabalhadores, sejam antigos ou novos.
(d) Entre os exemplos apresentados, o direito ao recebimento de uma pensão resultante de acidente de trabalho é o único em que defendo tratar‑se de diretos adquiridos de primeira ordem. Ainda que partindo de bases distintas, creio que os constitucionalistas e eu temos idêntico entendimento. Com efeito, enquanto os constitucionalistas realçarão a forma de pagamento – portanto, assumirão que, revestindo aquele direito a natureza de pensões, os respetivos beneficiários já obtiveram o direito vitalício ao seu pagamento e como tal são direitos adquiridos de primeira ordem –, eu enfatizo o regime de financiamento intrínseco às pensões por acidente de trabalho – regime de capitalização, no caso em presença.
A opção para distribuir ao longo do tempo o montante de uma indemnização decorrente de um acidente de trabalho prende‑se unicamente com razões económicas e sociais relacionadas com a vantagem de diluir o consumo – está subjacente que, mais tarde ou mais cedo, o valor da indemnização destinar‑se‑á ao consumo –, para atenuar o risco de dependência acrescida resultante da incapacidade provocada pelo acidente. Se não houvesse tal opção, o pagamento seria efetuado de uma só vez – sob a forma de capital –, donde não se colocava sequer a dúvida acerca da existência ou não dos direitos adquiridos, pois o direito esgotava‑se no exato momento da liquidação da indemnização.
Assim, a forma de pagamento não deve relevar para o efeito, dado que o direito em causa tem características indemnizatórias. O que deve prevalecer, como realcei, é a lógica de capitalização que está intrínseca ao financiamento da pensão. Tenha‑se presente que, quando uma determinada pensão foi adquirida a favor de um sinistrado de um acidente de trabalho, entregou‑se previamente à seguradora a totalidade do valor atual da mesma e dos encargos de gestão que lhe estão associados, ou seja, transferiu‑se‑lhe na íntegra o montante, descontado financeira e atuarialmente, afeto à responsabilidade com o pagamento vitalício da pensão.
(e) O direito a uma pensão de reforma ou de sobrevivência paga pelos sistemas públicos de segurança social, abrangida em concreto seja pelo regime geral de Segurança Social, seja pela Caixa Geral de Aposentações – regimes afetos, grosso modo, ao setor privado e ao setor público, respetivamente –, é um dos domínios onde se denota uma evidente divergência de entendimentos. Os constitucionalistas defenderão que as pensões de reforma ou de sobrevivência estão salvaguardadas pelos direitos adquiridos de primeira ordem e, como tal, não são passíveis de qualquer redução, atenta a visão obsessiva do princípio da confiança – convém contudo não esquecer que nos últimos tempos a mesma visão não tem sido seguida, dados os inúmeros episódios noutras áreas que comprovam o regular desrespeito ou esquecimento desse princípio. Ao invés, eu sou dos que considera – pelas razões seguidamente expostas – que se está diante de direitos adquiridos de segunda ordem, resultando daí a possibilidade de diminuir o valor das pensões. Enquadro‑os nos direitos de segunda ordem, em virtude da necessidade inadiável de se estabelecer um equilíbrio e uma complementaridade permanentes entre os princípios da confiança e da racionalidade. O primeiro é sobretudo jurídico; o segundo é essencialmente económico.
A meu ver, para os constitucionalistas o princípio da confiança constitui uma ilusão intocável, inquestionável e posta numa redoma, e como tal pode estar desligado da realidade. Creio que eles não se interessam se subsistem ou não condições para assegurar o pagamento das pensões. Eis o motivo por que os conceitos de capitalização e valor atual seriam fundamentais para a tomada de decisões sensatas, eficazes e justas. Ao contrário do que acontece com as pensões resultantes de acidentes de trabalho – em que, tal como se explicou, à data do primeiro pagamento existe a acumulação prévia do montante correspondente a todos os fluxos financeiros associados ao pagamento vitalício –, as pensões do regime geral de Segurança Social e da Caixa Geral de Aposentações funcionam em regime de repartição (ou pay‑as‑you‑go).
Este regime assenta no pressuposto que há uma solidariedade e um equilíbrio intergeracionais, ou melhor, que as contribuições dos trabalhadores no ativo e das entidades patronais são suficientes para financiar as pensões dos atuais reformados e pensionistas. Nada mais falso pois, como a generalidade das pessoas tem conhecimento, o nosso sistema de repartição – à semelhança do de vários países ocidentais – enferma de várias entorses estruturais que se vêm agravando nas últimas décadas, em especial de índole demográfica (devido em grande parte ao aumento generalizado da esperança de vida), laboral (fruto do efeito das transformações tecnológicas e organizacionais na libertação de mão de obra) e, consequentemente, financeira (dados os avultados défices dos sistemas públicos de segurança social). As restrições financeiras acabam por resumir toda a problemática da insustentabilidade do regime de repartição, visto que há a necessidade crescente de o sistema de pensões ser financiado não apenas mediante as contribuições para a segurança social por parte dos assalariados e das entidades empregadoras, mas também pelos cidadãos, anualmente, por via de impostos (i.e., através do Orçamento do Estado) – não sendo todavia de excluir a emissão de dívida para suprir os défices. Os défices sistemáticos registados no sistema de pensões demonstram o nítido incumprimento do pressuposto de solidariedade e equilíbrio intergeracionais atrás indicado. É por tudo isso que se está em presença de direitos adquiridos se segunda ordem.
Seriam direitos de primeira ordem se o regime de repartição fosse financeiramente autossuficiente e assim continuasse válido o tão proclamado contrato geracional que lhe subjaz; ou então – situação imaginária – se as entidades públicas responsáveis pelo pagamento das pensões dispusessem dos montantes necessários correspondentes ao valor atual das pensões, isto é, se houvesse a prévia acumulação do dinheiro necessário ao cumprimento dos compromissos futuros com o pagamento das pensões. Independentemente dos repetitivos sinais de inviabilidade e iminente colapso do sistema de pensões em vigor, os constitucionalistas, ao continuarem acerrimamente a considerar o direito às pensões como direitos adquiridos de primeira ordem, estão a assumir que esse sistema permanece nas mesmas condições das existentes quando foi criado. Se a situação não fosse preocupante, poderia admitir‑se que eles têm manifestado um forte saudosismo da época áurea de há mais de meio século, fazendo crer a si mesmos que a realidade não mudou. O que se passa na verdade é bem diferente: revelam coletivamente um grave problema de deslocamento da retina que os impede de observarem, sob diferentes perspetivas, o tempo em que estão inseridos.
(f) Várias observações tecidas em relação ao direito associado às pensões de reforma ou de sobrevivência são extensíveis ao direito relativo às subvenções vitalícias apresentadas na secção B do presente documento. A grande diferença de entendimento reside no facto de eu enquadrar este último direito num nível inferior no âmbito dos direitos adquiridos, por as subvenções em causa serem financiadas só pelo erário público, por meio de transferências do Orçamento do Estado – tal como os vários subsídios que o Estado concede, como por exemplo o abono de família (AF) e o rendimento social de inserção (RSI).
Em substância, somente o horizonte temporal de pagamento distingue as despesas a cargo do Estado relacionadas com as tais subvenções das que são de igual modo suportadas por si com o AF e o RSI. O regime especial das subvenções previu o pagamento incondicional e vitalício de uma pensão, ao passo que com o AF e o RSI o pagamento é condicional – condicional ao rendimento do agregado familiar, nos dois casos, e também à idade das crianças e dos jovens estudantes, no caso do AF. Assim sendo, a legitimidade que o Estado dispõe para decidir a redução drástica ou até a eliminação do AF e do RSI – cenários teóricos e radicais, meramente ilustrativos – é extensível, em rigor, às subvenções dos políticos (incluindo as dos juízes do Tribunal Constitucional).
Todos os direitos decorrentes de atribuições pecuniárias cujo financiamento provém apenas do Orçamento do Estado – tais como as subvenções vitalícias, o AF e o RSI – têm, na minha opinião, o grau de direitos adquiridos de terceira ordem, independentemente da natureza e da designação que tenham. Deduzo que alguns constitucionalistas entendam (de forma errada) que, em matéria de direitos adquiridos, as subvenções vitalícias – não estou seguro que estendam o entendimento ao AF e ao RSI – estejam a par das pensões de reforma ou de sobrevivência e mesmo das pensões por acidentes de trabalho, quando as realidades subjacentes, em concreto no que se refere ao regime de financiamento, são totalmente diferentes entre si, razão pela qual enquadro os três tipos de direitos em causa em diferenciados níveis de direitos adquiridos. A título informativo, ou seja, abstraindo‑me de qualquer menção apreciativa ou depreciativa sobre a decisão política tomada, convém mencionar a intenção, prevista no Orçamento do Estado para 2014, de cortar 15% nas subvenções vitalícias.

(1)  Agradeço ao Paulo J.S. Barata pela utilidade dos seus comentários em relação ao conteúdo e à organização deste documento.
(2)  FRES - Fórum de Reflexão Económica e Social.
(3)  Os ex‑Presidentes da República beneficiam de um outro regime especial de subvenções mensais vitalícias.
(4)  Aliás, a criticar a criação dessas subvenções, o mesmo teria de fazer com a bonificação que aumenta em 15% o tempo de serviço, para efeitos de aposentação no âmbito da Caixa Geral de Aposentações, dos funcionários que integram, entre outras carreiras profissionais, as organizações policiais e as corporações de bombeiros, como forma de reconhecimento da perigosidade das funções desempenhadas.
(5) Na mesma lei foi revogada a disposição vigente desde 1987 referente ao tempo de serviço prestado pelos autarcas em regime de permanência de funções. Aí se estabelecia que a antiguidade era contada a dobrar, como se o serviço tivesse sido efetuado nos quadros do Estado ou de outra entidade patronal, até ao limite máximo de 20 anos de serviço, se fossem cumpridos seis anos, seguidos ou não, no exercício das funções. Não me pronuncio igualmente sobre se essa revogação foi uma boa ou má decisão.
(6) Situação similar acontecerá – voltando à penúltima nota de rodapé – com os bónus de tempo de serviço concedidos nomeadamente aos polícias e aos bombeiros, pois pretende‑se que o acréscimo bonificado de antiguidade seja elegível apenas para o serviço prestado até ao final de 2013. Por ora, a proposta de corte na bonificação não abrange os militares nem o pessoal das missões humanitárias e de paz colocados no estrangeiro.



25 de outubro de 2013


sábado, 25 de julho de 2020

Os direitos adquiridos e a (dis)função sindical dos tempos modernos (Documento completo)


                                                  
Os direitos adquiridos e a (dis)função sindical dos tempos modernos
David Dinis(1)


A. Direitos adquiridos sob ameaça


Quando uma raposa ronda a capoeira, os moradores cacarejam a rebate, pois têm o instinto inato para prever que, se ninguém lhes valer, acabarão na barriga do carnívoro astuto e persistente. O mesmo sucede com os portadores de direitos adquiridos e os que creem que já adquiriram algum direito. Nunca se ouviu falar tanto nestes direitos como nos últimos tempos, haja ou não conhecimento suficiente do respetivo significado. São compreensíveis as reações e os estados de alma de quem é obrigado a pôr as barbas de molho, dada a maior ou menor possibilidade de ser atingido pela inevitável onda de redução dos direitos (adquiridos ou por adquirir).

Quase todos conhecem – mas muito poucos têm a coragem de reconhecer – o hiato abissal que vem separando os portugueses que possuem ou pensam possuir direitos adquiridos dos que têm a mera obrigação de se conformar com as leis que cada vez menos direitos lhes vão consagrando. Somos um povo que consegue garantir o equilíbrio social convivendo pacífica e conscientemente com uma balança em que num prato está a defesa acérrima dos direitos adquiridos e no outro está um conjunto quase vazio de expectativas.

Trata‑se assim de um tema onde é fácil aplicar o princípio de Maquiavel – não sei se também maquiavélico, na aceção menos favorável ou até pejorativa que vulgarmente é atribuída – sobre a necessidade de dividir para reinar. De facto, perante a falta de equilíbrio em matéria de direitos adquiridos, não admira que aos decisores não reste outra alternativa que não seja a iniciativa – umas vezes mais homologada do que outras – de distinguir os cidadãos, pois desse modo a batalha não é tanto entre os governantes e os portugueses mas sim sobretudo entre os próprios portugueses.

Existem várias situações que ilustram a volatilidade temporal das perspetivas jurídica ou sindical acerca dos direitos adquiridos. Cingir‑me‑ei à área das compensações indemnizatórias por cessação dos contratos de trabalho – doravante, para atalhar a exposição, as menções têm subjacentes os contratos de trabalho sem termo –, por duas razões: creio ser um dos processos isolados onde o tema dos direitos adquiridos acabou, após algumas experiências legislativas, por ser abordado de forma minimamente sensata e equilibrada, e para além disso constitui uma boa referência do que pode ser identificado como práticas sindicais incorretas.

Frise‑se que, ao ter qualificado a solução encontrada como sensata e equilibrada, não quero transmitir a ideia de que o valor das indemnizações resultante da atual legislação é ou deixa de ser suficiente – claro que para os trabalhadores o montante compensatório é sempre diminuto e para os patrões é demasiado excessivo. Pretendo unicamente manifestar a opinião de que entendo ter havido, naquele processo, a preocupação simultânea de assegurar um razoável tratamento não discriminatório entre os antigos e os novos trabalhadores, por um lado, e de garantir um adequado nível de segurança jurídica para não prejudicar sobremaneira as expectativas das pessoas com antigos contratos pelo facto de as regras terem sido modificadas, por outro.

Em seguida explicar‑se‑á de forma sucinta a longa gestação de quase dois anos para alcançar o resultado final de tornar a lei laboral mais flexível no que se refere especificamente às indemnizações por despedimento, que culminou numa convergência porventura aceitável entre os direitos atribuídos aos antigos e aos novos trabalhadores. Posteriormente, e tendo como ponto de partida esse aspeto específico da lei laboral, será analisada a postura dos sindicatos em relação à defesa dos interesses dos trabalhadores.

B. Convergência das indemnizações por despedimento


As compensações indemnizatórias por despedimento são uma área que foi objeto de duas – três, em rigor – alterações desde 2011. Apesar de a última modificação (ocorrida em 2013) ter aligeirado bastante, conforme mencionado, a clivagem entre os antigos e os novos contratos de trabalho, cumpre realçar que a primeira delas – Lei nº 53/2011, de 14 de outubro –, fazendo jus ao desiderato dos paladinos dos direitos adquiridos, permitia separar, sem apelo nem agravo, os trabalhadores em dois conjuntos, consoante os contratos tivessem sido celebrados até 31/10/2011 ou após esta data.

As regras introduzidas pela lei de 2011 centravam‑se somente nos novos contratos de trabalho. Logo, para os despedimentos futuros que abrangessem antigos contratos, a lei conferia aos trabalhadores despedidos o direito a uma compensação ilimitada, correspondente a um mês (ou 30 dias) de retribuição‑base e diuturnidades mensais – salário, daqui em diante – por cada ano completo de antiguidade. Para os novos contratos, a compensação baixava para 20 dias, com a agravante de se ter passado a considerar o limite máximo de 18 anos de antiguidade – ou 12 salários, equivalentes a 18 x 20 / 30. Ou seja, as indemnizações para os novos contratos de trabalho reduziam‑se, no mínimo, ⅓ face ao regime anterior. Para o caso de uma antiguidade de 25 anos, por exemplo, a penalização total (decorrente da passagem de 30 para 20 dias, por um lado, e da limitação da antiguidade, por outro) aumentava de 33,(3)% – 1 - 20 / 30 – para 52% – 1 - (18 x 20 / 30) / 25.

Indicou‑se atrás que, em rigor, foram efetuadas três alterações ao Código do Trabalho (no tocante ao sistema de compensação por cessação dos contratos de trabalho). Contudo, parece que com a segunda alteração – Lei nº 23/2012, de 25 de junho – o objetivo era tão‑só integrar no mesmo artigo os dois regimes que passaram a existir com a precedente lei de 2011 – 30 dias para os antigos contratos e 20 dias para os novos. Ao realizar tal integração, admite‑se que o legislador tenha descuidadamente repristinado a compensação ilimitada de um mês de salário por cada ano de antiguidade para os detentores de contratos de trabalho celebrados entre as datas de produção de efeitos dos dois diplomas.

Dado que a troika não se mostrou convencida com a reforma da lei laboral que havia sido encetada relativamente ao valor das indemnizações por despedimento, procedeu‑se a mais uma revisão – Lei nº 69/2013, de 30 de agosto –, na sequência da qual os montantes da compensação devida por cessação dos contratos de trabalho sofreram outro corte significativo, tendo os mesmos – a fazer fé nos elementos disponibilizados para o público – ficado alinhados com a média dos países europeus. A recente lei de 2013 começou a produzir efeitos em 01/10/2013, ou seja, apenas 23 meses depois do início da vigência da primeira lei (de 2011).

Para os novos contratos, celebrados a partir de outubro de 2013, a indemnização corresponde a 12 dias de salário por cada ano de antiguidade, adotando‑se desta vez o limite máximo de 30 anos de antiguidade – apesar de na lei de 2011 admitir‑se um limite mais baixo (de 18 anos), o valor da compensação quando atingida a antiguidade máxima será o mesmo, visto que tanto 18 anos na lei de 2011 como 30 anos na de 2013 correspondem aos mesmos 12 salários (18 x 20 / 30, na primeira, e 30 x 12 / 30, na última). Portanto, para os novos contratos de trabalho, o decréscimo da indemnização em comparação com o regime anterior cifrou‑se em 40% – 1 - 12 / 20 –; face ao regime antecedente à primeira alteração, a redução foi, no mínimo, 60% – 1 - 12 / 30, para antiguidades não superiores a 30 anos.

Para além da modificação do regime aplicável aos novos contratos, a lei de 2013 abrangeu os antigos contratos. Para os contratos celebrados até 31/10/2011, foi instituído um algoritmo de aplicação transitória e algo labiríntica que pode envolver o cálculo de várias parcelas – para os contratos que em 01/10/2013 ainda não tinham três anos determinam‑se quatro parcelas (usando para o efeito, em cada uma delas, 30, 20, 18 e 12 dias). Simplificando, retira‑se do algoritmo que para os contratos vigentes em 30/09/2013 a indemnização ficará congelada ao valor calculado com base na antiguidade nessa data, independentemente do momento de ocorrência do despedimento, nos casos em que daí resultar uma compensação superior a 12 salários, ou seja, o trabalhador mantém o direito já formado mas não acumula mais antiguidade. Nos demais casos, a indemnização máxima estará limitada a 12 salários, à semelhança do que ocorre com os novos contratos.

Pelo exposto, confirma‑se que com a lei de 2011 não houve, por parte do Governo e dos parceiros signatários do acordo de concertação social, qualquer pejo em assumir que para os trabalhadores com antigos contratos as regras seriam totalmente distintas das aplicáveis aos trabalhadores com novos contratos. Ao invés, com a lei de 2013 criou‑se, para os antigos contratos, uma espécie de direitos adquiridos de segunda ordem, assentes não na aplicação cega e integral das regras vigentes à data de produção de efeitos da nova lei – como acontecera com a lei de 2011 – mas sim no montante reportado a essa mesma data calculado com as regras então vigentes – figura do congelamento do benefício, expressa na penúltima frase do parágrafo anterior. Voluntariamente ou não por parte dos sindicatos, conseguiu‑se que o resultado não fosse tão discriminatório como o que sucedera com a lei de 2011. De facto, e apesar de haver a noção de que a discriminação não poderia ser eliminada (dado que tal eliminação significaria forçosamente que as regras manter‑se‑iam inalteradas), cumpre reconhecer que nalgumas situações ela pode ser acentuada, pois por exemplo para os trabalhadores que antes da entrada em vigor da nova lei tivessem 20 anos de antiguidade, a respetiva indemnização na eventualidade de despedimento seria de 20 salários à luz da antiga lei, e será de somente oito salários segundo a nova lei.

Através do Acórdão nº 602/2013, de 20 de setembro, o Tribunal Constitucional pronunciou‑se sobre a inconstitucionalidade de um conjunto de alterações ao Código do Trabalho, que abrangeu o despedimento por extinção do posto de trabalho, a cessação dos contratos de trabalho por inadaptação ao exercício das funções e a sobreposição da lei laboral em relação aos contratos coletivos (no que respeita nomeadamente ao descanso compensatório e à majoração das férias). Constata‑se assim a contrario que aquele tribunal entende que o decréscimo acentuado dos montantes compensatórios por despedimento não fere qualquer preceito constitucional. É curioso que aqui, e também de forma voluntária ou não, os constitucionalistas, em geral, e os juízes do Tribunal Constitucional, em especial, ter‑se‑ão conformado com a nova versão light dos direitos adquiridos – direitos adquiridos de segunda ordem, como explicitado no último parágrafo – (aparentemente) imposta pela troika, atendendo a que não formularam observações ou pareceres de opinião contrária. Isto talvez se tenha verificado porque implicitamente existe uma escala de prioridades no vasto domínio dos direitos adquiridos e, no contexto do respeito gradativo pela Constituição da República Portuguesa, os constitucionalistas entendem que os direitos provindos do despedimento por cessação dos contratos de trabalho aproximam‑se de um nível inferior da escala. Por agora nem vale a pena entrar nesse domínio, para não nos desviarmos da rota definida. Centremo‑nos então na prática sindical.

C. Atuação dos sindicatos


Desconhece‑se se tem sido por dolo ou por nescidade que, no que concerne aos direitos adquiridos, os sindicatos são um dos engenheiros da criação de castas de trabalhadores. Ainda que se esgrimam em argumentos durante o processo negocial, o produto final tem sido quase invariavelmente o mesmo, como a lei de 2011 pôde comprovar: os sindicatos acabam por salvar o grupo dos trabalhadores que possuem contratos de trabalho mais antigos e, em contrapartida, por sacrificar o grupo dos que têm contratos mais novos, com o resultado flagrante e grave de os interesses dos sindicalistas que participam nas negociações ficarem mais ou menos blindados pela razão de pertencerem àquele primeiro grupo. Têm‑se registado inúmeros exemplos desse tipo de resultado final das negociações, sobretudo quando envolvem matérias de índole pecuniária.

É racionalmente compreensível que as corporações patronais não se oponham de forma tenaz à discriminação entre trabalhadores, dado que para elas, na essência, terá de relevar mais o critério da eficiência e não tanto o da equidade. O que legítima e compreensivelmente as move é o lucro dos elementos que as integram, e nesse sentido elas maximizam o seu papel de maneira eficaz. Lamentavelmente não se pode dizer o mesmo acerca da eficácia dos sindicatos. Estes deveriam ser norteados sempre por critérios de equidade – ao invés de eficiência –, e como tal o seu papel teria de consignar‑se escrupulosamente à pugnacidade dos interesses dos seus aderentes.

O equilíbrio de bem‑estar alcança‑se se cada uma das partes – corporações patronais e entidades sindicais – desempenhar a sua função do modo que lhe compete e para a qual está mandatada pelos correspondentes representados. Quando uma das partes falha na sua missão, o desequilíbrio surge ou agrava‑se, invariavelmente com o prejuízo dos mais fracos, que no caso em apreço são os novos trabalhadores. Convinha que os sindicatos fizessem um exame de consciência sobre estas agres evidências.

Se os sindicatos concluem que não conseguem obter os seus ardentes anseios, então jamais podem resignar‑se e pactuar, em jeito de Pilatos, com a injustiça, deixando cair os interesses de uns trabalhadores em detrimento dos de outros e assim agravar o fosso entre eles. A defesa do princípio do mal menor ou da minimização dos estragos reveste uma atitude indigna por parte dos sindicatos, por ser a confirmação tácita que para eles há uns que são tratados como filhos e existem os outros. É uma postura pouco democrática, com características dinásticas ou de morgadio, e portanto totalmente desfasada do tempo.

Os combates sindicais são um dos poucos domínios onde, a meu ver, a nobreza é reconhecida quando existem lutas não vacilantes pelo bem grupal, ainda que motivadas por ideais utópicos ou pouco consistentes, e não quando há negociações que, sob o objetivo – ainda que muito meritório – de alcançar um desejável equilíbrio, findam na divisão do grupo. Qualquer sindicalista que interiorize os valores de justiça e se orgulhe da sua suprema função, nunca deverá permitir a discriminação entre trabalhadores – seja em que área for –, e terá de colocar no seu missal reivindicativo regras elementares que permitam afastar qualquer situação de conflito de interesses.

Para o seu próprio bem, é necessário que os sindicatos se adaptem ao mundo de hoje e assumam valores de efetiva e permanente lealdade e fraternidade. As suas decisões devem ser salomónicas. Quando os sindicatos não promovem a honesta coesão, questiona‑se a importância dos mesmos nomeadamente para os trabalhadores mais novos. Já há muito que os sindicatos deveriam libertar‑se tanto da utopia que tantas vezes tolhe o seu pensamento, como de alguns interesses mais mundanos que não credibilizam a sua imagem, e rebatizar‑se nos princípios puros da sempre atual glasnost e sob a luz de uma troika mais aberta – a perestroika.


10 de outubro de 2013



(1) FRES - Fórum de Reflexão Económica e Social

sábado, 27 de junho de 2020

Dos sofismas constitucionais à explosão da injustiça

Dos sofismas constitucionais à explosão da injustiça (27/10/2013)



Só realizando uma introspeção ao raciocínio dos constitucionalistas é possível entrar na floresta dos sofismas à volta dos direitos adquiridos. Conclui‑se que as suas abordagens são algumas vezes frágeis e voláteis, por constituírem um enviesamento da realidade. Para melhorar a qualidade da nossa democracia, haveria toda a conveniência que os profissionais da justiça, e em especial os juízes do Tribunal Constitucional, estivessem minimamente familiarizados com certos conceitos económicos elementares, de forma a tomarem decisões sensatas, eficazes e justas.
Os constitucionalistas deveriam analisar os assuntos sob vários ângulos. Ao invés, por ausência de preparação e aceitação multidisciplinar, cingem‑se à perspetiva jurídica dos problemas, como se esta fosse o centro à volta do qual a realidade e o mundo giram. O resultado dos seus pareceres é frequentemente uma espécie de roleta russa, aleatoriedade que nada dignifica a nossa democracia e, pior do que isso, poderá dividir as gerações deste País.
Não tem havido vontade política para inverter a atual situação. Os cidadãos também não se mostram muito preocupados com o rumo que os acontecimentos têm vindo a seguir. Uns, por endémico desconhecimento; outros, por confrangedor egoísmo.
Entretanto, as metástases vão crescendo, até ao dia em que a bomba da injustiça explode. Vendo os problemas pelo lado positivo, talvez seja a melhor solução, pois já se provou que com equilíbrio e racionalidade nós, portugueses, não ousamos almejar o futuro. Já imergimos e continuaremos a imergir prolongadamente. Resta‑nos optar entre sobreviver nas trevas ou então emergir para renascer. Se formos um povo esclarecido, cabe‑nos traçar a rota; senão, entregamo‑nos à sorte do destino.


Fresbook e não Facebook do FRES

Fresbook e não Facebook do FRES   (25/04/2020) O FRES - Fórum de Reflexão Económica e Social sempre foi um Grupo plural para o lado...