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domingo, 28 de junho de 2020

Riquezas semelhantes mas diferentes (parte III/III)

Riquezas semelhantes mas diferentes (parte III/III) (31/07/2014)



Assimetrias nacionais de riqueza e de oportunidades


25. Não será demais recordar que, de acordo com a conclusão do Instituto Nacional de Estatística e do Banco de Portugal aos resultados do Inquérito à Situação Financeira das Famílias, realizado em 2010, a riqueza líquida média situar-se-á à volta do dobro da riqueza líquida mediana. Segundo esses dois organismos, a riqueza líquida média das 20% das famílias portuguesas com menores rendimentos cifrava se em apenas 1/7 da das 10% das famílias que tinham maiores rendimentos. Entenda-se a riqueza como o valor patrimonial – financeiro ou não – acumulado das famílias.

26. Além disso, importa notar que, apesar da elevada assimetria da riqueza das famílias, a disparidade será ainda mais acentuada na riqueza financeira, quaisquer que sejam os produtos. Tal é provado pelo facto de o coeficiente de Gini se encontrar entre 0,61 (para os planos poupança reforma) e 0,75 (para as ações) – informação referente a 2006, obtida do Inquérito ao Património e Endividamento das Famílias e extraída da publicação A poupança em Portugal efetuada pelo Núcleo de Investigação em Políticas Económicas da Universidade do Minho –, portanto sensivelmente o dobro – entre 1,8 e 2,2 – do observado para a concentração do rendimento.

27. As informações anteriores constam do ponto 18 do documento Zerar para ressuscitar e criar oportunidades sustentáveis. Nele apontei três medidas concretas, tão impopulares quanto indispensáveis, formuladas com o objetivo de conjugar, a nível nacional, a correção do crónico desequilíbrio financeiro com a promoção de melhores oportunidades para as gerações novas e vindouras. A primeira consiste na criação dum imposto especial sobre a riqueza das famílias, cuja receita servirá unicamente para a amortização da dívida pública. As outras passam pela adoção mais progressiva do imposto sobre o IRS e pela reintrodução do imposto sobre heranças (ou dum análogo), sendo canalizada para um fundo de coesão social toda a receita obtida. Por o documento ter estado envolto em polémica, escrevi um post de esclarecimento denominado «A utopia do novo pensamento e a indefinição democrática», no qual reiterei e justifiquei a convicção que deposito nessas medidas.

28. Como facilmente se depreende, o meu fito cingiu se à urgência de articular e compatibilizar o que tem sido imiscível e conflituante: o agonizante excesso de dívida pública e a efetiva igualdade de oportunidades entre os cidadãos, conforme acabei de salientar. Não preconizei tais medidas para subscrever a corrente dos que creem que o problema do sobre endividamento do nosso País não se pode resolver com políticas de austeridade. Abstenho-me porque não alinho com os que vilipendiam as políticas nem com os que as idolatram. Não compreendo por exemplo como, a par da austeridade intensivamente perpetrada, permanece quase incólume o chocante sorvedouro de longo prazo do erário público que são as parcerias público-privadas – recorde-se o post PPP lusitanas – Das permanentes fantasias à efetiva solução.

Capitalismo das migalhas


29. Voltemos a Piketty. Mais do que as suas conclusões relativamente à distribuição do rendimento e da riqueza, mais do que a validade e a credibilidade das previsões que efetuou, mais do que o manancial de críticas abarcando questões de tratamento dos dados e metodológicas, e mais do que as quezílias intelectuais e ideológicas entre especialistas, o magistral e louvável dom do autor foi acordar as mentes para um tema que tem estado hipnotizado devido à luta incessante entre ricos e pobres – luta que está a anos luz do que as meras definições eufemísticas de riqueza e de pobreza possam indicar – sobre a responsabilidade pelo statu quo, onde nem uns nem outros têm conseguido transpirar humildade bastante para admitir que a culpa nunca morre solteira. Considero porém um clamoroso exagero associar as divergências sociais e as disparidades na distribuição de rendimentos à lógica de funcionamento do capitalismo como se duma relação causa efeito se tratasse – aí concordo com os críticos de Piketty –, falácia comparável à que consiste em defender – como alguns destes críticos fazem – que a dinâmica e o amadurecimento dos mercados são incompatíveis com a função de regulação e intervenção do Estado, na assunção de que o crescimento económico não se compatibiliza com a justiça social.

30. Há a reconhecer que o capitalismo não só está longe de ser um ninho de vícios como é o melhor sistema até hoje desvendado para assegurar progresso e gerar bem-estar. O mal é que, atrás desta constatação, cresce um embuste enraizado e viçoso. Porque cada sujeito se centraliza quase exclusivamente no seu singular umbigo, e sabe que outro tipo de organização social seria deveras pior do que o existente, ainda não vingou uma corrente doutrinária – desde logo apoiada por uma franja significativa do povo – que manifeste sequer coragem para refletir no melhoramento do modelo vigente. Jamais se pode esquecer que a História ensina nos que não existem modelos perfeitos.

31. É devido ao engodo da falta de alternativa fraturante viável que a esmagadora maioria dos cidadãos, desde as massas às elites, respira um comodismo crónico ante o sistema atual e permanece na ilusão preocupante de que qualquer aperfeiçoamento é prejudicial. As massas não sabem e as elites fingem não saber que o problema com que o regime capitalista se depara continua a ser a repartição dos benefícios do mesmo – é nisto que a atenção deve recair. Há pessoas simples das massas que se julgam capitalistas, enquanto há membros poderosos das elites que se consideram vulgares lacaios do capitalismo. Eis porque alterar o que quer que seja tem sido uma lida inglória. (Con)vivemos mais com a forma da fama do que com a substância do proveito.

32. Por o regime de base capitalista abdicar bastante da equidade e dar primazia à eficiência, não tem pejo com os casos em que, na distribuição da fornada de pão, a parte do leão caiba a uma minoria de privilegiados, os batedores e os acólitos mencionados no ponto 1 (da primeira parte do post) sejam presenteados com algumas fatias dum avantajado pão, e ao gentio esteja generosamente reservado um monte de migalhas a dividir pelos indivíduos que o compõem. Ninguém poderá queixar se com a divisão, pois a mínima modificação irá prejudicar alguém – se os que ficam com a parte do leão ou com o monte de migalhas, pouco interessa. É com este falso e perverso ótimo de Pareto que a população se deixa adormecer e às vezes fascinar. O capitalismo com que muitos ainda sonham é semelhante à imagem da fornada – o capitalismo das migalhas distribuídas.

33. A correção das assimetrias inicia se com a mensuração da concentração do rendimento. O processo de correção deve depois aprofundar se, assegurando uma correspondência, tão próxima quanto possível, entre a distribuição do rendimento e a distribuição da riqueza, de modo a reduzir sobremaneira o hiato entre as duas (bem visível pelos elementos apresentados no ponto 26). Nesta tarefa a política fiscal desempenha um papel central e inalienável. Percebe se assim que a fiscalidade, ao mesmo tempo que moraliza a sorte e disciplina as desigualdades seja do rendimento ou da riqueza, cria anticorpos resistentes a tantos arautos do capitalismo (que ocupam os diferentes quadrantes políticos).

34. Ou será que eles, os arautos também do espírito empreendedor, do engenho empresarial e da filosofia da economia de mercado são incapazes de aceitar o humanismo e prosperar em democracia? Para cada migalha que se desperdiça parece haver um batalhão de almas cândidas mas com vontades trovejantes a crer e defender que a fornada chega para todos. O leitor atento tente terminar este raciocínio celestino, se não for pedir muito. Eu tentei; mas não consegui encontrar justificação para esse capitalismo das migalhas... perdidas.

Riquezas semelhantes mas diferentes (parte II/III)

Riquezas semelhantes mas diferentes (parte II/III) (22/07/2014)



Capital da discórdia


14. As duas secções anteriores constantes da primeira parte do post conduzem a um assunto que tem estado na ordem do dia: o livro O Capital no séc. XXI, de Thomas Piketty, ou melhor, as críticas que publicamente têm sido apontadas. Não o li e, pela simples razão de viver afastado de mim o hábito de leitura, presumo não vir a lê lo – além de que não ficava tranquilo comigo se o fizesse sem antes visitar profundamente a pioneira obra O Capital (no séc. XIX) de Karl Marx. Do velho Capital da rutura de Marx praticamente tudo foi diagnosticado e avaliado. A confusão à volta do novo Capital da discórdia de Piketty ainda vai no adro e está para durar. Na atual secção é exposta uma brevíssima resenha sobre o frenesi que circunda o livro, sem no entanto dispensar de exprimir o meu entendimento acerca do tema.

15. O título do livro em questão não terá sido atribuído em vão, intenção que poderá explicar parcialmente o êxito que vem granjeando. Analisei algumas notas críticas tecidas ao seu redor e observei que elas centram se em argumentos algo semelhantes entre si, o que facilita a apreciação das mesmas. Não tive a curiosidade de percorrer os diversos elogios que o livro recolheu, para não ser influenciado. Com efeito, como ponto de partida é preferível dar o benefício da dúvida a apreciações aparentemente erradas do que a crenças em verdades não fundamentadas.

16. Pelo que pude constatar, o erro – se crasso ou não, depende da presunção e da água benta que cada um usa no quotidiano – que Piketty cometeu foi tentar dar um passo maior do que a perna. Associe se a perna ao trabalho hercúleo de compilação de séries longas de dados seculares referentes à distribuição do rendimento em quase 30 países desenvolvidos espalhados pelos vários continentes, enquanto o passo corresponde à justificação limitativa e fácil para a evolução das assimetrias – que, na opinião dele, reside no sistema capitalista –, bem como às previsões por si formuladas.

17. Ele prevê para as décadas vindouras que, por o retorno do capital exceder o dos demais fatores de produção, as remunerações do património assumirão um peso crescente face aos rendimentos totais e, consequentemente, agravar se á o fosso entre os ricos – i.e., os detentores do capital – e os assalariados. De facto, se são extremamente incertas as previsões de variáveis macroeconómicas para um horizonte temporal de escassos trimestres, não é prudente defender a credibilidade de estimativas para as próximas décadas.

18. As previsões são o grande denominador comum das críticas que se podem apontar, até porque – ou antes: porque – é a partir dessas que Piketty preconiza soluções fiscais controversas para atenuar a desigualdade, designadamente a aplicação quer de taxas ainda mais progressivas (até 80%) para o imposto sobre o rendimento, quer de (irrealistas e também progressivas) taxas globais sobre o património e a herança – «irrealistas» porque seriam harmonizadas entre os países, para desincentivar a transferência de riqueza duns para outros. Sejamos transparentes: a essência do alarido não está nas previsões em si mesmas; com alguns subterfúgios, o pomo de discussão centra se, sim, no alerta veemente do autor para a necessidade de mudar o atual modelo de distribuição do rendimento e da riqueza.

19. Parece que o trabalho de Piketty tem sido desvalorizado – e o próprio autor excomungado intelectualmente – por esse motivo, de ter ousado penetrar no âmago dum tabu e questionado a validade dos forais dum incomprovado manifesto capitalista que a todo o custo se quer manter intocável. O resto é acessório e serve principalmente para desviar a atenção do que releva, à guisa dos sofísticos argumentos ad hominem. Aliás, nas entrelinhas de determinadas críticas apontadas ao (autor do) livro por vezes são transpirados nítidos sinais de engulho mal digerido por parte de quem, perante um trabalho empírico árduo e de valor autoritário mas aparentemente simples, não teve a capacidade para se antecipar na descoberta do Ovo de Colombo.

20. Em rigor talvez não se trate tanto duma descoberta mas antes dum renascimento. Regressemos ao documento da OCDE de maio de 2014 enunciado no ponto 13. Nele é referido explicitamente que a tributação progressiva do rendimento e da herança levada a cabo entre os anos 20 e os anos 70 do século passado conduziram a uma queda significativa do peso das remunerações mais elevadas, conforme demonstrara o estudo efetuado por Atkinson e outros autores em 2011. O mesmo documento acrescenta imediatamente a seguir que em meados dos anos 70 as taxas máximas de imposto eram iguais ou superiores a 70% em metade dos Estados membros da OCDE, e que foram sendo reduzidas (para metade) em vários países até ao fim da primeira década deste século. Logo, as propostas de Piketty não são novas para originar tanta celeuma.

21. As restantes críticas – não tão materiais, quanto a mim – resumem se a dois tipos: técnicas e ideológicas. As primeiras prendem se essencialmente com problemas nos dados e na metodologia do estudo, que poderão pôr em causa a conclusão de Piketty acerca do aumento da concentração da riqueza após 1970. Os críticos identificaram um rol de falhas, tais como: falta de justificação para a adoção de desiguais períodos de tempo, utilização não citada nem explicada de elementos quantitativos, problemas na transcrição de informação a partir das fontes originais dos dados em bruto, e uso da média aritmética – em vez da geométrica – para calcular os valores médios (entre países) refletidos em gráficos nucleares do livro. Outra crítica que lhe foi apontada situa se no âmbito espacial do estudo, por este se ter restringido aos países desenvolvidos. Proferem (corretamente) que, se o estudo não omitisse o fenómeno de decréscimo consistente, nas últimas décadas, da pobreza em diversos países menos desenvolvidos, sobretudo em Estados populosos da Ásia, então porventura as conclusões seriam diferentes das obtidas para os territórios do mundo ocidental.

22. Algumas das alegações técnicas apresentadas pelos críticos têm sido objeto de contestação por pessoas alinhadas com o pensamento de Piketty. De qualquer modo, ele afagou o ego dos críticos ao admitir ter efetuado ajustamentos casuísticos que incidiram sobre os dados originais, como forma de procurar uniformizar as bases de dados quer ao longo do tempo, quer entre os países analisados. Ainda assim, fleumático e assertivo, contra argumentou que as assimetrias observadas nos últimos anos poderão estar subavaliadas, em virtude de uma parte da riqueza financeira, por se encontrar parqueada em paraísos fiscais, não estar registada nas contas nacionais dos países alvo do estudo.

23. Pelo que já foi mencionado, não estranha que, expressa ou tacitamente, o maior caudal de críticas se estenda ao domínio ideológico. Retomemos a parte inicial do ponto 17. Para Piketty as sociedades tendem a ser dominadas pelos detentores de riqueza, por a respetiva taxa de retorno – vulgo taxa de juro – superar a taxa de crescimento económico, o que lhe permite concluir que o benefício do património prevalece face à labuta da população assalariada. Trata se duma abordagem ideológica algo anacrónica, pois à partida parece renascer a teoria de economia política de Marx respeitante às leis da acumulação do capital e da exploração do fator trabalho.

24. Acima de tudo, seria de extrema importância que, para atenuar crispações e dissipar dúvidas, tanto os apoiantes de Piketty como os seus opositores disponibilizassem elementos alusivos à efetiva evolução, separadamente, da concentração do rendimento e da concentração da riqueza. Somente com dados objetivos acerca destes dois tipos de evolução, durante as últimas décadas e para os variados géneros de países – dos mais aos menos desenvolvidos –, será possível enterrar o machado de guerra que turva a reflexão construtiva. Antevê se que faltem autores voluntários para abraçar um trabalho de investigação de sapa de tamanha dimensão. Custa menos criticar do que construir.

Riquezas semelhantes mas diferentes (parte I/III)

Riquezas semelhantes mas diferentes (parte I/III) (15/07/2014)

Desigualdade equitativa e riqueza imoral


1. Riqueza: palavra bipolar, ora amada e endeusada, ora odiada e repudiada; atacada e invejada por muitas pessoas; e transfigurada pela parte da população que a possui, bem como pelos pelotões de batedores e restantes acólitos que dessa parte colhem alvíssaras. Resulta da acumulação de rendimentos, qualquer que seja o modo como foram obtidos. A sua proveniência tem como antípodas as atividades ilegais (ou pouco escrupulosas) e o trabalho principescamente pago – pois o trabalho normal não conduz à riqueza e o trabalho servil ou quase inanimado assegura não a dignidade mas sim a sobrevivência.

2. A riqueza – e portanto os rendimentos – pode ou não resultar do esforço. Ela pode ser vista noutras perspetivas, independentemente do esforço que está na sua génese. No quadro seguinte apresenta-se resumidamente a origem da riqueza sob duas perspetivas, consoante assenta na igualdade de oportunidades ou na sorte. Reconheço que tal apresentação é demasiado redutora da realidade, porquanto a riqueza dum sujeito pode provir da conjugação de múltiplos fatores e da combinação de várias fontes. O quadro tanto é válido para a riqueza – na aceção da acumulação de rendimentos mencionada no ponto anterior – como para qualquer rendimento em geral.

Origem da riqueza



(1) Abarca, por um lado, os rendimentos auferidos pelos próprios ricos, provenientes do seu mérito e associados à remuneração dos fatores de produção – o espectro de remunerações inclui designadamente salários, lucros, rendas e juros – e, por outro, os rendimentos herdados (ou recebidos por doação), tenham decorrido da remuneração dos fatores de produção ou doutras origens. 
(2) A riqueza oriunda da herança é legal, por oposição ao que sucede com a proveniente do crime. Não obstante esta diferença abissal, ambas as formas de riqueza distorcem o princípio da igualdade de oportunidades entre os cidadãos: a segunda, por penalizar quem honra o dever de cumprir a lei; a primeira, por desvalorizar o mérito e depender da riqueza doutrem. 
(3) A sorte reside tanto no jogo propriamente dito como na herança. A sorte com o jogo advém da iniciativa individual de o apostador ter astúcia para tentar transformar o risco num proveito financeiro. A sorte com a herança brota de diversas circunstâncias, nomeadamente o berço afortunado ou o casamento conveniente, as quais permitem o usufruto da audácia e do mérito alheios.
3. O quadro serve para ilustrar que a palavra riqueza comporta uma panóplia de origens. Pugnar por soluções que combatam as assimetrias da riqueza sem conhecer a natureza desta constitui um procedimento a evitar. Para materializar tais soluções, mais do que identificar o valor do património, há que aferir cuidadosamente o processo de nascimento e acumulação do mesmo. Por os termos riqueza, património e capital serem sinónimos para efeitos do presente post, doravante serão usados de maneira relativamente indiferente.

4. Associa-se geralmente a desigualdade à injustiça. Injusto é existir consenso de que o empenho e o mérito próprios são diferenciados e, simultânea e incoerentemente, defender a igual repartição de rendimentos. A concretização dessa incoerência representaria o caos em qualquer sociedade. A função distributiva do Estado – materializada não exclusivamente por via da fiscalidade – procura garantir a compatibilidade entre as assimetrias socialmente aceitáveis e o princípio universal da solidariedade.

5. As políticas de correção das assimetrias devem ser distintas consoante se queira atenuar as disparidades de rendimentos ou as de riqueza, visto que a desigualdade dos rendimentos causada pelo mérito pessoal tem uma justificação equitativa, ao passo que a concentração da riqueza originada por uma herança não tributada é moralmente injustificada. Frise-se que não se está a sugerir que as heranças sejam proibidas; somente se deseja que sejam adequadamente moralizadas.

Moralização da sorte

6. Para concluir que as heranças são privilegiadas ante os rendimentos do trabalho não é preciso tentar refutar a tendência economicamente inevitável da evolução favorável da taxa de remuneração do capital em comparação com a taxa de crescimento do produto interno – esta evolução desaguará na segunda parte do post. Deve ter-se presente que o facto de a primeira taxa tender (ainda que com frequentes exceções) a ultrapassar a segunda é intrínseco às decisões de investimento útil e de criação de valor; caso contrário a decisão racional seria não investir. Chega-se àquela conclusão acerca do privilégio das heranças bastando efetuar um singelo exercício de âmbito fiscal, expurgado de juízos de valor.

7. Voltando ao ponto 5: não se pretende acabar com a sorte das heranças ou doutras prerrogativas – tal sorte resulta da força dinâmica do tempo, que sempre existiu e continuará. O objetivo é simples: apenas moralizar o condão da sorte. O capitalismo do séc. XXI deve assentar bastante na acumulação de conhecimento e informação e não primordialmente na de capital. A afirmação parece uma heresia para alguns e uma utopia para muitos mais. Assim não será se forem levados a sério os discursos de intenções proferidos (pelos decisores nacionais e pelos responsáveis de instituições internacionais) em relação à necessidade de articular o sistema económico com a inclusão e a justiça sociais.

8. Suponhamos que um qualquer lusitano compatriota bafejado pela sorte para a qual nada contribuiu aufere um milhão de euros – por exemplo através dum depósito bancário – a título de herança dos pais. Abstraindo – para simplificar – o desconto financeiro decorrente da erosão monetária e o efeito do risco de mortalidade, admita-se que o indivíduo que recebe o generoso pecúlio é jovem e tem uma visão parcimoniosa de longo prazo ao ponto de dividir a herança em 50 partes iguais – que correspondem hipoteticamente ao número de anos de vida ativa, desde a entrada no mercado de trabalho até à idade de reforma por velhice. O herdeiro teria uma remuneração anual – para o caso tanto faz ser bruta ou líquida, dada a ausência de imposto sucessório – de 20 mil euros, ou seja, 1429 euros mensais, acrescidos dos 13.º e 14.º meses.

9. Em contraste, compare-se que atualmente a retenção na fonte para um trabalhador que aufere os mesmos 1429 euros mensais é de 18,5% – trabalhador por conta doutrem, não casado e sem dependentes. Pode invocar-se que essa taxa fiscal não é efetiva na medida em que, a título de auxílio adicional de financiamento gratuito concedido pelos contribuintes ao Estado português, as taxas de retenção são excessivas – talvez 2 p.p. a mais – face ao imposto anual calculado aquando do seu apuramento final. Observação correta. Convém todavia ter noção que o trabalhador, para além de ter de pagar o IRS, está sujeito à (im)previsibilidade da sobretaxa extraordinária em sede de IRS, tudo a que o herdeiro em apreço está dispensado.

10. Os defensores liberais – politicamente da esquerda à direita, atendendo a que quando ecoa a taxação de heranças a maioria da população está em sintonia de pensamento – responderão que quem trabalha terá direito a uma pensão após a passagem à reforma, o que não sucede a quem não efetuou contribuições para o regime previdencial. Pura ilusão pois – como acontece com os indivíduos que orbitam na economia paralela – o felizardo da herança pode poupar o montante equivalente ao que um trabalhador desconta para a Segurança Social e pô lo a capitalizar, optando por transformar numa pensão vitalícia o valor acumulado dessa poupança – valor que resultaria da capitalização até à idade em que a pessoa se reformava-se estivesse abrangida pelo regime contributivo da Segurança Social. Ademais, quando atingisse tal idade de reforma, se tivesse um moderado talento teatral ainda beneficiaria duma pensão mínima paga pela Segurança Social ao abrigo dum regime não contributivo.

11. Como o argumento do ponto antecedente não tem validade, os protetores da manutenção da ausência de imposto sucessório inventam outro, relembrando que são raras as situações em que a herança avulta um milhão de euros. É um facto indesmentível. Se a herança for de meio milhão de euros, então os 18,5% explicitados no penúltimo ponto descem significativamente para 7,5%. Ripostarão que meio milhão continua a ser um exagero. No entanto a verdade suprema permanece intacta; a verdade reside na injustiça de as heranças poderem ser beneficiadas, nem que seja tão só num único caso, em detrimento do labor dos cidadãos que colaboram ativamente para o andamento da Nação.

12. No nosso País a riqueza oriunda do jogo é taxada, por se entender que a sorte é uma regalia. Ao invés, sucede que a sorte dos benefícios sucessórios (por exemplo dos pais) está isenta do pagamento de impostos – é hilariante que alguém possa retorquir que os beneficiários de bens imobiliários (herdados ou doados) são taxados, em sede do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis, em 0,8% do valor patrimonial. Pelo que já foi evidenciado, as heranças contribuem para o agravamento das assimetrias porque desvirtuam o princípio da igualdade de oportunidades.

13. Chamemos à colação o recente documento da OCDE de maio, intitulado Focus on Top Incomes and Taxation in OECD Countries: Was the crisis a game changer? A Organização considera necessária uma abordagem abrangente para alcançar os objetivos de redução das disparidades entre cidadãos e de fomento da igualdade de oportunidades, abordagem que deve passar pela fiscalidade e também por políticas de transferência de rendimentos e outras políticas sociais, assim como por políticas orientadas para o mercado de trabalho e a educação. No âmbito específico da fiscalidade, a OCDE identifica um conjunto de opções de reforma, elaboradas com o fim de aumentar a taxa média de tributação dos contribuintes com remunerações mais altas sem agravar demasiado as respetivas taxas marginais. Duas dessas opções são inequívocas: difusão de formas alternativas de tributação da riqueza, nomeadamente através do imposto sucessório; e promoção da harmonização fiscal entre os ganhos do capital e os rendimentos do trabalho.

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