A homilia de Fátima e os contratos de associação (15/05/2016)
Ontem à noite ouvi que, na homilia das celebrações das Aparições de Fátima, o Cardeal-Patriarca Manuel Clemente – pessoa em quem eu, mesmo não sendo católico (ou pertencendo à massiva legião de “católicos não praticantes”) deposito uma grande empatia – veio a terreiro, ainda que de forma subtil, defender a continuação do statu quo no que se refere aos contratos de associação no ensino.
O Senhor Cardeal-Patriarca referiu que, «Sendo as famílias e o catolicismo realidades fundantes do que somos hoje, ainda que sejamos diversos, hão de ser tidos em conta por organizações posteriores, como o Estado ou as instâncias internacionais, quando legislam ou administram o que a todos respeita». Assim, para a Igreja – acredito que o Cardeal-Patriarca, por ser uma pessoa incomparavelmente mais aberta do que a Igreja conservadora que representa, não pensará aquilo que as suas palavras transmitem –, dado que o Estado é uma organização “posterior” ao catolicismo (porque veio depois deste), deve submeter-se à Igreja.
Defendeu – com certeza sem querer, razão pela qual desvalorizo o alcance subjacente à comparação – que, pelo menos na área da educação, para a Igreja o catolicismo está acima do Estado. É verdade que as famílias são uma realidade fundante; assim é em Portugal e em quase todo o Mundo, daí que o Estado e as «instâncias internacionais» as devam respeitar. Porém, pôr no mesmo patamar as instituições família e religião católica é no mínimo questionável. O catolicismo está a anos-luz das famílias, ainda mais num Estado constitucionalmente laico. Ademais, sob uma perspetiva ecuménica que a Igreja deve cada vez mais ter nos tempos atuais, é anacrónica a colocação da família e do catolicismo no mesmo altar. A família foi usada como escudo de proteção do catolicismo e principalmente dos contratos de associação.
Ainda na homilia, o Senhor Cardeal-Patriarca prosseguiu: «As entidades políticas servem o bem comum, que é o bem de todos segundo as legítimas escolhas de cada um. Porque solidariedade sem subsidiariedade, não o é de facto. É neste ponto que culto, cultura e sociedade se devem harmonizar, mesmo e sobretudo em sociedades plurais e democráticas, como quer ser a nossa.» Também aqui os conceitos foram desadequadamente utilizados, ou antes, foram corretamente empregues de acordo com a interpretação da Igreja. As expressões «bem comum», «legítimas escolhas de cada um» e «subsidiariedade» têm um significado para a Igreja católica que jamais prevalece em termos legais. Apenas prevaleceria se o Estado e a Igreja continuassem umbilicalmente apegados como sucedia no Estado Novo. Forçar esse apego, sobretudo em «sociedades plurais e democráticas, como quer ser a nossa», pode soar a um ténue desejo de recuar 42 anos.
Portugal é uma república laica, pelo que a liberdade religiosa deve revestir-se em todos os atos do Estado, desde logo no ensino. Por aplicação do laicismo, o Estado não deve subsidiar as escolhas das famílias em função dos credos, e portanto não fica bem à Igreja pressionar o Estado nesse sentido. As preocupações da Igreja portuguesa devem ser outras. Ela está bem ciente que, à luz da Constituição da República Portuguesa, o Estado somente deve firmar contratos de associação para efeitos da aplicação do princípio da subsidiariedade.
O post tripartido «Serviço Nacional de Educação e livre escolha subsidiada - Argumentos [i(deo)]lógicos», publicado nos dias 5, 12 e 19 de junho de 2015, desenvolve este tema, pelo que é dispensável a sua repetição. Contudo, não posso deixar de retomar parte de dois dos seus 81 pontos, a propósito da igualdade de oportunidades, outro argumento invocado pelos defensores da livre escolha, ou melhor, pelos apologistas da livre escolha (mas) subsidiada. São os pontos 50 e 51.
«50. (...) para alguns liberais do ensino, respeitar as convicções individuais e legitimar o ensino privado presidido por valores filosóficos, estéticos, políticos, ideológicos ou religiosos significa a obrigação de o Estado apoiar financeiramente os interesses individuais. Algaraviada de pensamentos sui generis, de quem vive abeberado com tanta liberdade e mistura a esmo o direito de cada um escolher o melhor para si com o dever de o Estado financiar as preferências individuais.»
«51. (...) Ou o Estado, para salvaguardar a igualdade de oportunidades entre os estudantes, financia em idênticas condições o ensino público e – quando a rede pública de ensino revelar-se escassa – o ensino privado, caso em que as famílias nada têm de pagar (tanto nas escolas públicas como nas privadas); ou o Estado concede total direito de as famílias selecionarem as escolas, cabendo às primeiras o exclusivo financiamento das opções. Assim, ao contrário do que os partidários do ensino privado subsidiado apelam, o conceito de igualdade de oportunidades aplicado à educação está relacionado com os princípios da gratuitidade e da universalidade, e não com o princípio da liberdade de escolha.»
A Igreja portuguesa está nitidamente desesperada, desde as bases à cúpula (ainda que não em pânico comparável ao que foi provocado pela Revolução Russa de fevereiro de 1917, ao ponto de, escassos meses depois, terem sido reveladas as Aparições da Virgem Maria aos Pastorinhos na Cova da Iria). Se calhar o desespero é tanto da Igreja como de outras pessoas influentes que negociaram com decisores públicos vários contratos de associação. A Igreja tem-se manifestado ativamente contra as intenções do Governo; as referidas outras pessoas aproveitam o ensejo e colocam-se na sombra.
Com o lobby instalado, porventura não faltará quem ventile constituir uma comitiva lusitana para deslocar-se propositadamente a Roma, com o intuito de falar com o Papa Francisco – aliás, a personalidade que, a meu ver, simboliza fiel e finalmente a missão do catolicismo. No mínimo uma comitiva, pois o melhor mesmo será convencer o Papa a incluir (o assunto dos contratos de associação em Portugal) no discurso feito numa das habituais missas na Praça de São Pedro aos domingos de manhã.







