David Dinis(1)
A. Enquadramento
1. «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.»
Volvidos quase 80 anos, parece que o primeiro verso do poema Mar Português constante do livro Mensagem, de Fernando Pessoa, constitui
o processo a adotar na conquista do atual desígnio respeitante à criação de
oportunidades, processo de facto só equiparável – dada a extrema
dificuldade em encontrar a solução – ao empreendedorismo conduzido
aquando dos Descobrimentos e da expansão do sonho e do pensamento lusitanos.
Para que a criação de oportunidades seja uma obra exequível e transponha a
vontade vã e utópica, é necessário que haja sonho e pensamento honestos sobre a
forma eficiente e equitativa de granjear as condições (desde logo financeiras)
requeridas para o efeito.
2. A maioria dos portugueses defende que a produção
de riqueza nacional e o nível de repartição da mesma entre os cidadãos estão
aquém do desejado. O Produto Interno Bruto (PIB) per capita (em paridade do poder de compra) do nosso País era, em
2012, 75% da média relativa ao espaço da União Europeia(2) – 68% no
seio da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE)(3) – e
o índice distributivo em Portugal tem sido um dos piores face ao dos restantes
países que integram os dois conjuntos internacionais atrás mencionados (não
obstante a suave tendência decrescente desse índice)(4).
3. Assim sendo, e para responder ao lugar‑comum
referente à missão estratégica de melhorar o grau de desenvolvimento da Nação e
criar oportunidades sustentáveis, a qual se consubstancia no aumento da riqueza
e na redução das desigualdades na distribuição de rendimentos, muitos
concidadãos entendem que a meta terá de se fixar na reformulação de algumas
áreas do nosso modelo de organização. A reformulação é muitíssimo mais profunda
do que a frase anterior pode sugerir. Para transformar em realidade o jargão da
criação de oportunidades, a chave tem de passar inevitavelmente pela
fiscalidade.
4. As características culturais dos povos – ainda
para mais de um povo conservador como nós temos sido – revestem uma
rigidez deveras imune ao tempo. As reformas económicas, se forem abrangentes e
estruturais, constituem um fator indutor que consegue mitigar a resistência à
mudança cultural. A via fiscal é porventura o mais eficaz instrumento económico
de apoio à renovação cultural que se impõe. Sem esta renovação é improvável
almejarmos por um País de genuínas oportunidades para a sua população, atual e
principalmente vindoura, que valorize verdadeiramente o indispensável
equilíbrio intergeracional(5).
B. Pagamento da dívida pública e fundo de coesão social
5. Quanto ao aumento da riqueza nacional, o
diagnóstico das providências está há muito realizado – que passa
inclusivamente pela atração de investimento, pelo fomento da inovação e da
competitividade e pelo decréscimo do custo dos fatores produtivos, com todos os
efeitos benéficos daí resultantes em termos de crescimento das exportações e do
emprego. Já no que toca à redução das desigualdades na distribuição de
rendimentos, as opções que têm sido tomadas mostram‑se exíguas ante a elevada e
preocupante dimensão do problema da repartição em Portugal.
6. Sem pretender questionar as decisões traçadas
(nos últimos anos e que têm envolvido várias legislaturas) com o intuito de
alcançar esses dois desideratos – produção de riqueza e distribuição
da mesma –, parece constatar‑se que, para atingir o patamar de
desenvolvimento desejado, urge mudar de paradigma. Resta assim zerar alguns
pilares do funcionamento e da mentalidade, redefinindo e articulando os
objetivos por que deve passar a nossa estratégia. Preconiza‑se que os novos
objetivos sejam a retoma da soberania financeira – por outras
palavras: o pagamento acelerado da dívida pública (em especial, da externa) – e,
paralelamente, a constituição de um fundo de coesão social.
7. Cumpre portanto obter receitas fiscais
adicionais, que servirão simultaneamente para libertar o País do jugo da dívida
e para alimentar o fundo de coesão. O objetivo primordial deste fundo consiste
na dinamização do mercado laboral, ou seja, deve ter uma natureza incentivadora
na constituição de postos de trabalho e na dignificação do trabalho enquanto
fator produtivo. Em específico, poderá revestir um caráter subsidiário
conducente quer à prossecução de medidas que conciliem adequadamente a competitividade
das empresas com a promoção do emprego, quer à subida do salário mínimo
nacional(6). Nesta fase não será todavia muito importante debruçarmo‑nos sobre
a concretização da dinamização do mercado laboral mas sim sobre a forma de
reunir o dinheiro indispensável para a ousadia, aditivo sem o qual nada se
consegue.
8. Abramos um parêntesis – este ponto e
os próximos dois – para quantificar o quão sorvedora tem sido a nossa
dívida e como prejudica o crescimento económico e as expectativas dos
portugueses. Entre 2003 e 2012, a taxa média anual de variação do PIB (a preços
correntes) foi de 1,6%, cifrando‑se as correspondentes taxas das despesas com
os juros da dívida e com o pessoal das administrações públicas – Estado,
daqui para a frente – em 7% e ‑1,9%, respetivamente(7). Assistiu‑se,
no mesmo período, a um significativo crescimento médio anual de 9,9% do stock da dívida pública (interna e
externa)(8). O peso dos juros da dívida face às remunerações dos funcionários
do Estado – 1/5 em 2003 – mais do que
duplicou durante esses nove anos, fruto da combinação, sobretudo a partir de
2011, do crescimento dos juros com o decréscimo das remunerações. Há uma década
atrás os encargos da dívida pública representavam 2,7% do PIB, assumindo em
2012 as percentagens expressivas de 4,3% do PIB e de 9,7% das despesas
correntes do Estado. Estima‑se que no final de 2013 rondem 4,4% do PIB(9).
9. O País tem‑se mostrado impotente para contrariar
o demolidor círculo vicioso do aumento da dívida, pois conclui‑se que, atentas as
características estruturais específicas da economia e da sociedade portuguesas,
o multiplicador orçamental supera o registado noutros países. A diminuição da
despesa pública tem afetado de modo negativo – porque o resultado é
pior do que o previsto(10) – quer a procura agregada, quer a
repartição de rendimentos, o que vem provocando, respetivamente, uma quebra na
coleta fiscal (tanto dos impostos indiretos como dos diretos) e uma pressão na
atribuição de prestações sociais de emergência (como resposta ao aumento da
pobreza e da exclusão social). Perante o exposto, o esmagamento da despesa
pública pode levar ao agravamento do défice, o que constitui um perigoso
paradoxo. Como resposta ao agravamento, resta contrair nova dívida e impor mais
carga fiscal e mais cortes no consumo público, o que origina crescentes
consequências pró‑cíclicas de austeridade.
10. Acaso consigamos vencer a longa batalha do
défice tão‑somente com recurso às opções que nos têm sido impingidas, será uma
vitória pírrica que arrasará grande parte da população portuguesa. Para evitar
tal infortúnio é incontornável haver um sólido compromisso nacional que permita
a adoção de medidas que reduzam significativamente a dívida pública. Esta
redução será a mais sólida estrutura de alicerces do renascimento da esperança,
uma vez que o resultado dessas medidas se repercutirá também na libertação das
verbas que serão afetas à tão propagandeada retoma, ou seja, serão orientadas
para a renovação do tecido empresarial, se necessário, e a produção de riqueza.
11. Para materializar os objetivos da restituição da
soberania orçamental e da constituição de um fundo de coesão social, e
compatibilizá‑los com uma menor desigualdade entre os indivíduos, sugere‑se em
concreto a aplicação simultânea de três políticas impopulares e crispantes, a
saber: a criação de um imposto especial sobre a riqueza das famílias, a adoção
mais progressiva do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) e a
reintrodução do imposto sobre as sucessões e doações (ou de um análogo) – daqui
em diante imposto sucessório. A primeira política será extraordinária e
irrepetível, e a sua receita servirá exclusivamente para amortizar a dívida
pública. As outras duas terão de ser duradouras e – pelo menos a
última – permanentes, sendo canalizada para o fundo de coesão social
toda a receita obtida. As três complementam‑se e permitem conjugar o passado
com o futuro, respetivamente a correção do crónico desequilíbrio financeiro com
a promoção de melhores oportunidades num quadro sustentável de crescimento e
emprego. Frise‑se que as políticas recomendadas e desenvolvidas nas secções
seguintes inserem‑se no conjunto diversificado de reformas estruturais levadas
a cabo nas últimas legislaturas, ou melhor, constituem tão‑só um contributo
para solidificar a modernização económica e social do País.
C. Criação de um imposto especial sobre a riqueza
12. Para o pagamento deste imposto – que
deve ser entendido, antes de mais, como um imposto de salvação nacional – serão
chamadas todas as pessoas singulares que dispõem de património material ou de
aplicações financeiras, independentemente da natureza e do volume da riqueza(11).
Certamente as críticas a tão ousada medida fiscal serão cerradas e inúmeras,
por maior equidade que se venha a salvaguardar na progressividade das taxas de
imposto(12). Tentemos anteciparmo‑nos a algumas críticas, as quais serão de
seguida abordadas sucintamente sob várias perspetivas.
13. Em primeiro lugar, virá à tona o vil egoísmo,
isto é: os que pagarão um montante diminuto de imposto considerá‑lo‑ão injusto
porque entendem que a quantia da sua riqueza é insuficiente para o suportar; em
contrapartida, os que dispõem de maior valor de riqueza sentir‑se‑ão
fiscalmente perseguidos em detrimento dos primeiros porque acharão que o
esforço a si exigido é desproporcionado(13). À volta do risco moral orbitará
outro conjunto de críticas, esperando‑se naturalmente que sejam evocados os
tradicionais argumentos de que quem poupou para diferir o consumo ou investir
no futuro – no seu ou no dos seus herdeiros – é prejudicado
face aos que decidiram não ser previdentes e aplicaram todo o seu rendimento
disponível em consumo imediato(14).
14. Ademais, aguardam‑se as críticas relacionadas
com os problemas de natureza técnica. Estes prendem‑se nomeadamente com a
impraticabilidade de taxar o património não registado nas conservatórias(15), a
dificuldade de liquidificar o património tributável(16) e o impacto negativo
que a liquidificação forçada da poupança pode provocar na solvência do setor
financeiro e nos mecanismos de equilíbrio dos mercados de capitais(17). Jamais
será pelo facto de se reconhecer a pertinência de tais problemas que se
enveredará pela resposta fácil de abandonar a imposição do imposto especial
sobre a riqueza das famílias. Pelo contrário, devem acautelar‑se corretamente
as dificuldades previsíveis e avaliarem‑se todos os impactos, garantindo – somente
assim – a otimização do benefício nacional do imposto(18).
15. Desde que as propostas do imposto em questão
repartam com proporcionalidade o sacrifício do mesmo pelo conjunto dos
contribuintes, a abissal situação submissa do País face ao exterior não se
compadece com as críticas e os problemas elencados nos dois pontos anteriores,
por muito legítimos que aparentem ou sejam, até porque, por mais motivações que
existam para a poupança, é impossível escamotear que a variável explicativa
resume‑se praticamente a uma: o montante de rendimento disponível. Por palavras
diferentes: só poupa(ou) quem tem(teve) rendimentos. Todo o cidadão que consegue(iu)
usufruir da habilidade ou da sorte de ser reconhecido financeiramente pelo
mérito ou pela atitude pessoais, por certo terá a humildade suficiente para admitir
que uma boa parte do seu pecúlio – grande ou pequeno – se
deve(u) às oportunidades que Portugal lhe concede(u). A tormenta que a Nação
atravessa exige reciprocidade e solidariedade de todos os cidadãos.
16. Assumindo que a riqueza líquida acumulada das
famílias corresponderá a 4,3 vezes o seu rendimento disponível em 2013 (ou 3,2
vezes o PIB)(19), repartida entre o património – retirando o
endividamento(20) – e as diversas aplicações financeiras – depósitos
bancários, ações, títulos de dívida pública de adesão pessoal, seguros de
natureza financeira e participações individuais em fundos de pensões e fundos
de investimento(21) –, com uma taxa média de imposto de 5% sobre o
património e de 25% sobre as aplicações financeiras obter‑se‑ia uma receita
fiscal à volta de 57% do PIB(22), i.e.,
45% do stock da dívida direta do
Estado. Logo, com tamanha medida de esforço nacional seria possível reduzir
drasticamente a dívida, de 128%(23) para 71% do PIB – apenas 11
pontos percentuais acima do limite que permite cumprir o critério de
convergência referente à dívida pública estabelecido em 1992 no Tratado de
Maastricht. Agravando a taxa de imposto sobre as aplicações financeiras para
30%, ceteris paribus, resultaria uma
receita que representava 67% do PIB – e 53% do stock da dívida, a qual passava a ser de 61% do PIB, praticamente
em linha com o critério europeu atrás identificado.
17. Em simultâneo, o País usufruiria de uma imediata
e avultadíssima poupança em relação ao pagamento de juros – pressupõe‑se
que o Estado negociaria com os credores de modo a que a amortização antecipada
da dívida se repercutisse nos juros a pagar –, direcionando‑a parcialmente
para a atividade produtiva, como já indicado no ponto 10. A outra porção da
poupança alimentaria o fundo de coesão social. Atenda‑se a que a receita fiscal
oriunda do imposto sobre a riqueza corresponderia a 91% ou a 107% da dívida que
Portugal contraiu no âmbito do Programa de Assistência Financeira financiado
pela troika, consoante fosse aplicada
a taxa de 25% ou de 30% sobre as aplicações financeiras (e mantendo a taxa de
5% sobre a riqueza patrimonial, ou seja, a riqueza não financeira)(24).
18. Embora esta medida – entre as três
apresentadas, a que indiscutivelmente reveste maior rutura – seja
justificada por razões de índole económica, tem a vantagem de ser um
ingrediente adicional para combater o elevado nível de desigualdade estrutural
implantado no País (pois presume‑se que a riqueza líquida média permanece à
volta do dobro da riqueza líquida mediana(25)). A riqueza patrimonial das
famílias é bastante assimétrica e a disparidade será ainda mais acentuada na
riqueza financeira, quaisquer que sejam os produtos. Tal é provado pelo facto
de o coeficiente de Gini se encontrar entre 0,61 (para os planos poupança‑reforma)
e 0,75 (para as ações)(26), portanto sensivelmente o dobro – entre
1,8 e 2,2 – do observado para a concentração de rendimentos.
D. Adoção mais progressiva do IRS
19. Em termos salariais, Portugal depara‑se com pelo
menos dois obstáculos, a saber: reduzido valor da massa salarial e acentuada
discrepância salarial. O primeiro resolve‑se aumentando a riqueza nacional,
visto que no nosso País o peso das remunerações dos empregados (as quais incluem
os salários e ordenados brutos, isto é, antes da dedução dos impostos e das
contribuições sociais pagos pelos próprios empregados, bem como as
contribuições sociais suportadas pelos empregadores) face ao PIB tem andado
próximo – ainda que ligeiramente abaixo – do da média da
União Europeia, sendo essa proximidade mais marcante quando se compara com a
média dos países da zona do Euro(27). A solução para o segundo problema apenas
é alcançável por uma duas vias: ou a correção nominal, que permita diretamente
uma melhor distribuição da massa salarial existente – impossível à
luz do modelo legal em vigor –; ou a correção fiscal, por forma a atenuar
o efeito das divergências salariais e maximizar a função distributiva do
Estado – logo, a única alternativa que resta.
20. No ponto 2 referiu‑se que, apesar de em Portugal
o índice de concentração ser elevado, tem havido uma tendência decrescente do
mesmo (visível desde os anos 90) – em grande parte devido às
políticas sociais que favoreceram os grupos populacionais com menores
rendimentos. Semelhante tendência não se verificou todavia nos ganhos salariais
(mas sim o oposto). O agravamento da desigualdade deveu‑se à circunstância de,
sobretudo ao longo das duas últimas décadas, o crescimento da massa salarial
ter sido mais acentuado nas classes com salários altos do que nas de salários
baixos(28).
21. A correção fiscal avançada no ponto 19 consiste
em aliviar tenuemente, em sede de IRS, as classes de rendimentos inferiores,
compensando o custo fiscal da medida com um esforço suplementar, por parte das
classes de rendimentos superiores, de maneira a encurtar, entre essas duas
classes, o sacrifício marginal decorrente do pagamento de impostos(29). Não
devem constituir quaisquer tabus a eventual consideração de condições de
recurso para mais facilmente se identificarem as classes de rendimentos
superiores, nem a fixação de taxas de imposto bastante maiores do que as atuais
para os contribuintes que integrarão estas classes.
22. Trata‑se duma matéria que se admite não ter
grande impacto positivo na receita fiscal; mas acaso haja impacto, ele será
canalizado para o fundo de coesão social. De qualquer modo, a principal
vantagem é contribuir fortemente para estreitar o hiato da repartição de
rendimentos. O risco de alguns contribuintes penalizados por esta medida saírem
de Portugal será despiciendo ante a utilidade social da mesma.
23. Mesmo que não se consiga abrandar a austeridade
financeira, e por isso não só será impossível aligeirar o IRS das classes mais
baixas como subsistirá a necessidade de prosseguir a diminuição do défice, a
progressividade proposta para o imposto em questão tem a vantagem de ter menor
impacto no PIB do que aconteceria se a consolidação orçamental passasse por um
decréscimo da despesa do Estado de valor idêntico ao obtido com o eventual
aumento de impostos. Isto porque em tempos de crise económica – ainda
para mais em frágeis e pequenas economias abertas como a nossa – o
multiplicador orçamental é superior e agrava as desigualdades sociais se for
induzido pelo corte nas despesas públicas (comparativamente ao efeito causado
pelo acréscimo da receita fiscal)(30).
24. Apesar de a medida ser desfavorável somente para
as classes de maiores rendimentos, é provável que muitos contribuintes, perante
o seu elevado nível de endividamento, sintam enorme dificuldade em conseguir
suportar o esforço adicional de IRS. Nesses casos, uma solução equilibrada
passa pela partilha de risco entre os contribuintes sobre‑endividados e as
instituições credoras. Se esta solução revelar‑se infrutífera, parece
inevitável que restará o ajustamento unicamente a cargo dos próprios
contribuintes(31).
E. Reintrodução do imposto sucessório
25. O regime de heranças e doações (doravante HD) vigente
em Portugal é subversivo no que respeita à igualdade de oportunidades. Um
sistema autêntico que vise criar oportunidades deve abstrair‑se tanto quanto
possível da riqueza acumulada pelas gerações passadas e procurar que os
cidadãos disponham de pontos de partida minimamente semelhantes. Ignorar este
postulado é contrariar completamente a promoção do mérito e da competência
individuais.
26. Portugal apenas não é o modelar paraíso em
termos de HD porque os beneficiários de bens imobiliários (herdados ou doados)
são taxados, no âmbito do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de
imóveis, em 0,8% do respetivo valor patrimonial, independentemente do grau de
parentesco e afinidade com o falecido ou o dador. Nos outros tipos de bens
(incluindo os valores financeiros) existe uma isenção total quando os
beneficiários são cônjuges, descendentes – filhos e netos – e
ascendentes – pais e avós. Os demais beneficiários de HD – incluindo
por conseguinte os irmãos – estão sujeitos ao imposto de selo
correspondente a 10% dos bens e valores recebidos.
27. Fazendo uma breve viagem pelos 41 países
pertencentes à União Europeia ou à OCDE(32), constata‑se que a transmissão de
riqueza para cônjuges, descendentes e ascendentes é objeto de imposto
sucessório – em sentido lato, abrange HD – em quase 3/5
dos casos (24)(33). Dos sobrantes, há três países que aboliram o imposto
sucessório e substituíram‑no por um imposto sobre ganhos de capital(34) – uma
espécie de imposto sobre o valor acrescentado sucessório, calculado com base no
acréscimo de rendimento obtido com a transmissão de riqueza (devendo, para o
efeito, esta ser avaliada imediatamente antes da morte). Portanto, em cerca de 1/3
dos países (14) o regime fiscal prevê a isenção na transmissão sucessória para
cônjuges, descendentes e ascendentes(35).
28. Abordemos o caso português. Mais grave do que a
decisão de abolir o imposto sucessório(36) – sob a justificação
(correta mas enviesada) de ser complexo e de difícil cobrança – estar
associada, em última instância, a um partido político que por inerência deve
privilegiar o supremo valor da não discriminação entre cidadãos, é a
circunstância de que, esgotados tantos anos após a abolição, o assunto
permanece adormecido para os partidos com assento parlamentar. A incoerência é
transversal: não se restringe aos ditos partidos de esquerda; abarca os da ala
direita. Uns e outros não têm manifestado qualquer pejo em sobrecarregar os
rendimentos do trabalho e, ao invés, isentar os ganhos decorrentes da
transmissão sucessória (no caso de cônjuges, descendentes e ascendentes, que é
a base de referência para a uniformização da análise).
29. Na verdade, (todos) os partidos portugueses que
se intitulam de esquerda não têm revelado suficiente discernimento – ou
vontade política, que para o caso tem o mesmo resultado – para se
aperceberem que as isenções e os benefícios fiscais em matéria de HD não se
compadecem nem com os seus princípios ideológicos (quer de defesa do bem
coletivo, quer de combate contra o vincado individualismo e porventura – para
alguns daqueles partidos – contra a iniciativa privada), nem com os
tão populares e bem‑aventurados emblemas da igualdade de oportunidades e da
redução da concentração de riqueza. Em paralelo, os partidos mais conotados com
a direita contradizem‑se inconscientemente na argumentação, desprezando o facto
de que o seu princípio ideológico de marcada valorização do mérito e da
competência individuais somente é atingível se houver um sólido sistema que
promova a igualdade de oportunidades, o que não é compatível com as isenções e
os benefícios fiscais existentes na área de HD.
30. Embora a receita fiscal provinda da reintrodução
do imposto em apreço venha a ter um benefício imaterial para o erário público – na
ordem de poucas décimas percentuais do PIB(37) –, a medida prima pelas
grandes vantagens que emergirão. Para além de as receitas fiscais obtidas serem
integralmente canalizadas para o já mencionado fundo de coesão social,
constituirá – repita‑se – um efetivo mecanismo de atenuação
da diferença de oportunidades e um decisivo elemento para a diminuição do nível
de distribuição dos rendimentos gerados, contribuindo por isso para a melhoria
da justiça social e da equidade financeira(38). Ademais, impõe ter‑se presente
que a despeito de o regime atual não castrar a iniciativa pessoal, não a
fomenta. Logo, a reposição do imposto sucessório será um excelente incentivo
para impulsionar o empreendedorismo que tanto tem sido defendido como uma das
nossas necessidades fundamentais.
31. Ao contrário do que sucedia até há ao final da
década de 90, hoje em dia a máquina fiscal nacional está suficientemente oleada
para garantir a eficácia do imposto sucessório – e dos restantes
impostos, incluindo o imposto especial sobre a riqueza –, podendo e
devendo usufruir das tecnologias de informação e potenciar o cruzamento de
dados. O conhecimento e o controlo dos territórios offshore estão agora incomparavelmente mais desenvolvidos do que se
verificava no fim do século passado. Em matéria de imposto sucessório não será
necessário inovar muito; basta adotar as boas práticas internacionais,
adaptando‑as aos intemporais critérios de equilíbrio e sensatez. Assim, à
semelhança do que vigora em bastantes países, será profícuo nomeadamente que: o
imposto seja progressivo, cujas disposições referentes às taxas de tributação e
aos limites de isenção devem ser definidas de maneira a distinguir a
transmissão em função da proximidade entre o falecido e os herdeiros(39), bem
como a não prejudicar os rendimentos do trabalho(40); a transmissão de bens
para fins de caridade seja objeto de discriminação positiva; e o regime seja
estável, condição indispensável para criar um clima de confiança nos
contribuintes, sobretudo no que toca às decisões de longo prazo que afetem a
poupança. A criação de um imposto sobre ganhos de capital, como substituto do
imposto sucessório, seria uma forte e plausível hipótese a estudar(41).
32. Facilmente se anteveem as críticas que se
apontarão como resposta à reintrodução do imposto sucessório. Ignorando as
razões de cariz ideológico que os críticos desenvolverão(42), os principais
sofismas apresentados serão porventura o desencorajamento da poupança (e o
consequente impacto económico negativo), a dupla tributação e a dificuldade de
obter liquidez para regularizar o imposto. Tal como acontecerá com as outras
duas medidas fiscais explicitadas neste documento, os argumentos expostos pelos
críticos são desmontáveis(43).
F. Notas finais
33. É certo que as políticas cambial e monetária não
podem ser exploradas como elemento artificial de competitividade da economia
portuguesa. A política orçamental está igualmente vedada, pelo menos enquanto
não reouvermos a independência financeira. Certos setores da sociedade sustentam
a corrente de que o fator de competitividade desagua nas políticas salariais.
Esquecem‑se que o peso das remunerações do trabalho no PIB nacional não
ultrapassa o registado para a média dos países da União Europeia, facto que permite
refutar o argumento de que a competitividade nacional se deve fazer pela
desvalorização salarial, nomeadamente os salários mais pequenos, incluindo o
salário mínimo nacional.
34. Não é honroso defender esse argumento. Pelo
contrário, e como já foi justificado, há algumas condições para que o salário
mínimo nacional beneficie de ligeiros ajustamentos através de mecanismos de
melhor repartição dos rendimentos gerados. O relançamento económico passará
forçosamente pelo aumento da competitividade, cuja prossecução se fará não com
a redução dos salários – muito menos dos mais baixos – mas
sim com o decréscimo do preço da energia, o alívio da carga fiscal, a
minimização dos custos de contexto e a existência de uma máquina judicial
eficaz e credível. Para os variados efeitos – incluindo, assim, o da
competitividade –, e como se fundamentou neste texto, será necessário
pagar o mais rapidamente possível a dívida pública, empreitada de convergência
para a qual se devem direcionar as forças. Unicamente após todas as condições
impulsionadoras da competitividade nacional estarem asseguradas e esgotadas
poderá fazer sentido abordar o assunto de ajustamentos salariais adicionais.
Até lá, há que saber usar convenientemente a nossa tábua de salvação: a
política fiscal.
35. Perante o crescimento insustentável do stock da dívida direta do Estado e dos
respetivos encargos, todas as medidas que sejam tomadas à luz do modelo vigente
para diminuir o serviço da dívida não passam de paliativas, por mais dolorosas
que sejam. Dado que o País não consegue produzir riqueza a um ritmo suficiente
que permita saldar os seus compromissos financeiros, tem impreterivelmente de
os estancar, sob pena de que tudo fique cristalizado à volta da dívida. Se o
empobrecimento dominante é por si agonizante, quando adicionado à injustiça
crescente transforma‑se em fatalismo. Para que Portugal evite continuar a
afundar‑se, tem de encontrar uma solução e respeitá‑la fielmente sem hesitação,
pois tempo passado é futuro perdido. Há que esmagar com celeridade a dívida
para ressuscitar, façanha possível recorrendo à riqueza das famílias,
independentemente da composição e do montante desta. É a forma mais equilibrada
de distribuir, por todos nós, os esforços que a amortização da dívida acarreta.
36. Para amenizar, tanto quanto possível, o
sacrifício resultante da hercúlea tarefa de liquidar a dívida, os eventuais
apoios externos que recolhamos são bem‑vindos. Seria ótimo que conseguíssemos,
desde logo no âmbito da União Europeia, dispor de um enquadramento comercial
benéfico que nos permitisse gerar receitas adicionais para honrar os
compromissos e assim aliviar o impacto das medidas de austeridade que estão a
hipotecar essencialmente as novas gerações e a esperança da Nação. Os mais
cândidos e justos creem que os Estados europeus periféricos e endividados devem
usufruir de um tratamento semelhante ao que foi concedido aos alemães,
relativamente às condições de reestruturação e liquidação da sua dívida
externa, aquando do Acordo de Londres celebrado há quase 61 anos entre a ex‑República
Federal da Alemanha e os países credores.
37. De qualquer maneira, por conta própria ou
apoiado, Portugal pode transpor as adversidades e atingir a sua merecida
pretensão de ser livre e feliz. Entendo que somos invulgarmente nobres e
orgulhosos para não pedir perdões parciais de dívida nem solicitar o
reescalonamento do prazo ou a diminuição das taxas de juro – a única
renegociação cingir‑se‑ia ao não pagamento dos juros vincendos referentes ao stock da dívida amortizada
antecipadamente. Apesar de todos nós ficarmos mais pobres com a transferência
de uma parte da riqueza das famílias para o Estado, criávamos as bases sólidas
para nos relançarmos no futuro com eficiência e equidade inigualáveis.
38. Paralelamente ao épico empenho nacional de
reduzir a dívida, é imprescindível fazer emergir um fundo de coesão social para
financiar a criação de oportunidades sustentáveis. As suas fontes de
financiamento podem ser diversas. No documento em apreço avançou‑se com três
propostas: a utilização parcial da poupança decorrente dos juros da dívida, o
proveito resultante da adoção de IRS mais progressivo e a receita originada
pela reintrodução do imposto sucessório. As duas últimas incidem sobre os
contribuintes de rendimentos elevados e os beneficiários de transmissões
sucessórias. Nada move a administração fiscal contra tais contribuintes. Pelo
contrário: a Nação precisa destas pessoas porque é a partir delas que se
estimula um novo ciclo de desenvolvimento social e de diminuição das fortes
desigualdades que têm imperado no nosso território. Por certo aqueles patrícios
honrar‑se‑ão por desempenhar a excelsa função de melhorar o bem comum e batizar
a confiança das gerações vindouras.
39. Se o individualismo prevalecer – na
aceção mais dura e literal que a palavra reveste –, é óbvio que as
vantagens das medidas fiscais apresentadas nas secções C a E serão
insuficientes para derrubar os obstáculos que se lhes depararão. Erguer‑se‑ão
inúmeras vozes opositoras à criação do imposto especial sobre a riqueza das
famílias. Provavelmente serão as mesmas que se insurgirão contra a reintrodução
do imposto sucessório. Será impossível traçar um perfil‑tipo dos opositores
desses dois impostos, visto que lamentavelmente o egocentrismo grassa por vezes
na sociedade atual – atinge pobres e ricos, novos e velhos, liberais
e conservadores, esquerdistas e direitistas. Creio sinceramente que no fim do
ruído, natural ou instrumentado, essas vozes não serão a maioria, e que o
esclarecimento acabará por prevalecer.
40. Estamos quase a comemorar o 40º aniversário do
25 de abril. O País encontra‑se a navegar no mar alto da liberdade (sobretudo
da de expressão, aos níveis mais variados). Muitos defendem que nem sempre a
navegação tem sido feita com norte. Não obstante a legitimidade de os mais
céticos e inconformados pretenderem novamente – mas desta vez pela
via democrática, que não estava ao alcance do heroico e malogrado Salgueiro
Maia – «acabar com o Estado a que chegámos», neste momento nada
importa o que não fizemos ou o que realizámos mal ou menos bem. Importa, sim,
que ousemos colocar solidamente Portugal no rumo certo e na posição mundial que
todos aspiramos. Tendo presente de antemão que o interesse coletivo supera de
longe a soma de todos os interesses individuais, devemo‑nos refundar, para que
saibamos cultivar os superiores valores patrióticos que nos definem enquanto
Povo. «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.»
(1) FRES -
Fórum de Reflexão Económica e Social.
(2) Considerando
os então 27 Estados-membros em 2012, o PIP per
capita português era apenas superior ao de sete países – todos
estes integraram a União Europeia após os alargamentos de 2004 e 2007. (Em
2004, o PIB per capita do Chipre, da
Eslovénia, de Malta e da República Checa já suplantavam o de Portugal. Em 2012,
o PIB per capita da Eslováquia estava
ao nível do nosso – em 2004 era cerca de 3/4 do
português.)
(3) No
conjunto dos 34 Estados‑membros, Portugal ocupava a 27ª posição (ou a oitava
mais baixa).
(4) Segundo o
Eurostat, em 2012 o coeficiente de Gini na União Europeia cifrava‑se em 0,304,
observando‑se o valor mínimo (0,237) na Eslovénia. Atrás da Letónia (0,359), a
Espanha (0,35), Portugal (0,345) e a Grécia (0,343) eram os piores países em
matéria de distribuição dos rendimentos gerados.
De
acordo com informação publicada pela OCDE em 2011 – An Overview of Growing Income Inequalities
in OECD Countries: Main Findings –, para o período compreendido entre
2006 e 2009, e no universo dos países que integram a Organização, Portugal era
o sexto pior país em termos do coeficiente de Gini para a população em idade
ativa – Chile, México, Turquia, Estados Unidos da América e Israel
registavam os valores mais elevados na concentração do rendimento disponível.
Dados reportados a 2010 e respeitantes ao conjunto da população – não
apenas da população em idade ativa – colocavam Portugal na mesma
posição.
(5) O tema do
(des)equilíbrio intergeracional mereceria uma atenção suplementar. Tal não será
efetuado porque a entrada na vastidão do tema e as conclusões a que se chegaria
desviar‑nos‑iam das ideias deste documento.
(6) Embora
exista uma forte correlação positiva entre o salário mínimo nacional e o PIB (per capita) – em relação a
2012, e com base nos valores em paridade do poder de compra, obtém‑se uma
correlação de 0,8 considerando os 21 Estados‑membros da União Europeia onde
está instituído o salário mínimo –, não se pode negar que há alguma margem
para subidas moderadas do salário em apreço, até porque a produtividade
portuguesa excede proporcionalmente a da média europeia (dado que, apesar de
tanto o custo da mão de obra como a produtividade em Portugal serem inferiores
aos correspondentes valores médios europeus, a amplitude de afastamento do
custo da mão de obra nacional face ao correspondente custo no espaço da União
supera a existente entre as produtividades portuguesa e europeia).
No
entanto, é demagógico pretender aumentar o salário mínimo nacional sobremaneira
sem ter em conta a verdadeira capacidade de produção de riqueza nacional. Por
exemplo, convém recordar que, não obstante o salário mínimo luxemburguês ser
mais do dobro do português, o PIB per
capita do Luxemburgo excede o triplo do registado em Portugal. Aquele Grão‑Ducado
tem o salário mínimo e o PIB per capita
mais elevados da União Europeia. No lado oposto, a Bulgária e a Roménia são os
países com quantias mais baixas de salário mínimo e também aqueles que têm
menores PIB per capita. Os montantes
do salário mínimo nacional e do PIB per
capita portugueses representam, respetivamente, 4/5
e – vide ponto
2 – 3/4 da média europeia.
(7) Através da
informação da plataforma Pordata, verifica‑se que, de 2003 até 2012, os juros
da dívida aumentaram 84% – 26% até 2010 e 46% a partir
daí – e os custos com os funcionários públicos reduziram
16% – acréscimo de 8% igualmente até 2010 e decréscimo de 22% após
esse ano.
(8) As taxas
anuais foram de 7,3% entre 2003 e 2008, e de 13,2% depois de então. Significa
que, durante o horizonte temporal em análise, o stock da dívida direta do Estado incrementou 133% – 42%
nos primeiros cinco anos e 64% nos quatro restantes.
Foi
intencional não seguir os mesmos subperíodos considerados para efeitos dos
juros da dívida – i.e., de
2003 a 2010, e de 2010 a 2012 –, atendendo a que a evolução dos dados das
duas séries – stock e
juros – pode não ser exatamente proporcional, como sucede no nosso
caso.
(9) Visto que
5,5% é o défice orçamental para 2013 acordado com a troika, o encargo anual da dívida representa 4/5
do défice. O ano de 2014 será original porquanto o custo da dívida ultrapassará
o montante do défice orçamental – note‑se que a meta do défice para o
próximo ano é de 4% do PIB.
(10) Como se
referirá no ponto 23, em épocas de crise a queda do PIB será mais acentuada
quando a redução do défice se procede pelo lado da despesa – nomeadamente
pensões e prestações sociais – do que quando se opera pelo lado da
receita – sejam impostos indiretos ou diretos, embora a preferência
recaia sobre os últimos (dada a tendência para que a acentuação do decréscimo
do Produto seja superior quando o aumento da receita fiscal provém de impostos
indiretos).
(11) Para
garantir um forte espírito de unidade nacional, praticamente apenas os
indigentes ou paupérrimos cidadãos serão dispensados do imposto. Como não
poderá deixar de ser, as pessoas com um baixo valor patrimonial (imobiliário e
também mobiliário) ou com uma ínfima poupança financeira pagarão quase nada,
pese embora não seja de afastar a hipótese alternativa de se estabelecerem
adequados limites de isenção.
(12) Admite‑se
como exequível um sistema progressivo de taxas entre 1% e 15% para o património
material, e entre 5% e 50% para as aplicações financeiras. As taxas poderão ser
diferenciadas em função do tipo de património material (desde logo imobiliário
ou mobiliário) e de aplicações financeiras (atendendo ao grau de liquidez, por
exemplo).
(13) Desde que
sejam assegurados critérios de razoabilidade, esta crítica não incorpora
suficiente importância, por se circunscrever a interesses exclusivamente
pessoais. Recordemos o lapidar argumento secular proferido em 1906 pelo
presidente norte‑americano Theodore Roosevelt (que convém ter sempre presente
porque se emprega a imensas ocorrências quotidianas), de que quem é rico possui
uma particular obrigação perante o Estado porque a mera existência de governo
permite‑lhe recolher vantagens especiais – «The man of great wealth owes a peculiar obligation to the state because
he derives special advantages from the mere existence of government.»
(14) As pessoas
que advogam este argumento esquecem‑se que quem nada poupou continua a nada
ter, enquanto quem poupou apenas será privado de uma parte do valor acumulado e
portanto permanece em melhores condições de futuro face aos que foram incautos
e tudo consumiram.
(15) Obras de
arte, peças de ouro e diamantes de distinto valor são os principais exemplos
desse género de património.
(16) O problema
da transformação (mas sem perda significativa de valor) de parte da riqueza em
meios líquidos colocar‑se‑á em famílias com um avultado património material e
com uma reduzida poupança financeira.
(17) O
levantamento precipitado de depósitos bancários e a venda massiva de títulos
seriam as maiores consequências indesejáveis que causaria a aplicação imediata
e irrefletida do imposto em causa.
(18) Em relação ao
património não registado nas conservatórias, coloca‑se a dúvida se vale a pena
entrar nesse domínio. Certamente será desnecessário. Ainda assim, caso se
pretenda alargar o imposto a tal património, poderia ponderar‑se a extensão do
conceito de bens registados nas conservatórias ao de bens segurados para
efeitos de indemnizações em caso de sinistro.
Quanto
à liquidificação da riqueza – últimos dois problemas identificados no
ponto a que a presente nota alude e que merecem uma ímpar acuidade dada a
dimensão das possíveis repercussões –, uma solução eficaz passaria pelo
estabelecimento de um razoável período transitório de regularização do imposto,
cuja duração dependeria da natureza e do volume da riqueza.
Com
vista a assegurar a eficácia deste imposto, a riqueza deverá ser mensurada com
referência a uma data anterior ao anúncio do mesmo – como por exemplo
o final de 2013 –, de modo a que, mesmo havendo posteriormente tentativas
de ocultação de valores financeiros ou de fuga de capitais, a administração
fiscal disponha de informação credível para que a cobrança da receita prevista
seja o mais equitativa possível.
(19) Extrapolação
porventura por defeito feita a partir de informação recolhida do documento Household wealth in Portugal: revised series,
publicado pelo Banco de Portugal em setembro de 2008. Nele consta a
estimativa, para 2007, de que 4,78 era o rácio entre a riqueza líquida total e
o rendimento disponível. Ora, assumindo que, desde esse ano – eclosão da crise do subprime, cujas metástases proliferaram rapidamente pelos vários
setores de atividade e, perante as evidências, ainda não foram
debeladas – até agora, o efeito do gasto da riqueza acumulada tenha
superado o da criação da mesma, admiti que nos últimos seis anos aquele rácio
tenha sofrido um decréscimo de 10%, passando de 4,78 para 4,3.
(20) O
endividamento (esmagadoramente imobiliário) dos particulares não estará longe
da metade do património bruto das famílias. Os conceitos de «particulares» e
«famílias» são equiparáveis, pois o endividamento das instituições sem fins
lucrativos ao serviço das famílias (que também pertencem ao universo dos
«particulares») é imaterial.
(21) Os planos de
poupança‑reforma integram os seguros de natureza financeira e as participações
individuais em fundos de pensões e fundos de investimento.
(22) Admitiu‑se
que em 2013 o PIB conhecerá uma recessão de 1% face ao ano transato. Por outro
lado, considerou‑se que as aplicações financeiras representam próximo de 2/3
da riqueza, estando o remanescente 1/3 afeto ao património
líquido. Incidindo sobre estas duas parcelas da riqueza as mencionadas taxas de
25% e 5%, a receita fiscal gerada equivaleria a cerca de 18% da riqueza das
famílias.
(23) De acordo
com as metas traçadas pela troika
aquando da sétima avaliação, a dívida pública portuguesa não deveria exceder
123% do PIB no final de 2013.
(24) Os
empréstimos concedidos a Portugal, a partir de junho de 2011, ao abrigo desse
Programa representam 1/3 do atual stock da dívida pública.
(25) Conclusão do
Instituto Nacional de Estatística e do Banco de Portugal aos resultados do
Inquérito à Situação Financeira das Famílias, realizado em 2010. Segundo estes,
a riqueza líquida média das 20% das famílias portuguesas com menores
rendimentos cifra‑se em somente 1/7 da das 10% das famílias
que têm maiores rendimentos.
(26) Informação
referente a 2006, obtida do Inquérito ao Património e Endividamento das
Famílias e extraída da publicação A
Poupança em Portugal, efetuada pelo Núcleo de Investigação em Políticas
Económicas da Universidade do Minho.
(27) No entanto,
e retomando a primeira parte da nota de rodapé nº 6, não devem ser
excluídos eventuais pequenos acréscimos salariais.
(28) Dedução
baseada na informação constante do trabalho Desigualdade
Económica em Portugal, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.
(29) O alívio
terá de ser ténue porque, como é de todo compreensível, há incomparavelmente
muitíssimo menos contribuintes com rendimentos elevados do que contribuintes
com rendimentos diminutos.
(30) Por o corte
no consumo do Estado penalizar a procura agregada e o aumento dos impostos
diretos afetar unicamente o rendimento e a riqueza, aquele corte tem uma
consequência direta no PIB, ao passo que este aumento se repercute no PIB por
via indireta. É a conclusão retirada de um trabalho publicado em julho de 2013
pelo Banco de Portugal, intitulado Fiscal
multipliers in a small euro area economy: How big can they get in crisis times?
A
preferência do acréscimo de impostos em detrimento do decréscimo da despesa
pública diverge da conclusão extraída de um estudo do Fundo Monetário
Internacional (FMI) publicado em junho de 2013 – The Distributional Effects of Fiscal Consolidation –,
recorrendo a 173 casos de consolidação orçamental prosseguidos em 17 países da
OCDE (incluindo Portugal) entre 1978 e 2009, no qual se preconiza que cortes na
despesa pública são menos penalizadores do que aumentos de impostos. Convém
frisar que o estudo não inclui o período de austeridade nos últimos anos, após
o início da crise das dívidas soberanas de vários países da área do
Euro – designadamente a consideração do círculo vicioso do aumento da
dívida e do agravamento paradoxal do défice enunciados no ponto 9 –, razão
que explicará a evidente divergência entre as conclusões do estudo do FMI e as
do trabalho publicado pelo Banco de Portugal.
(31) Um exemplo
de ajustamento consiste na adaptação do património habitacional dos
contribuintes à sua efetiva capacidade financeira.
(32) Assumi
conscientemente o risco de a análise de direito comparado efetuada aos regimes
fiscais de HD nesses países poder conter erros de desatualização da
informação – por não ser de excluir a eventualidade de algum regime
ter sido modificado nos últimos tempos – e de imprecisão dos resultados – por
não ter sido realizado um estudo mais exaustivo. Mesmo tratando‑se de um tema
cuja sistematização ou síntese não é linear, entendo ser preferível apresentar
as conclusões da análise individual feita aos regimes dos Estados‑membros, por
forma a refletir objetivamente a posição de Portugal entre os congéneres.
(33) Incluem‑se
neste grupo os quatro países onde internamente existe uma variedade fiscal.
Eles são: a Bélgica – as isenções e as taxas de tributação variam
conforme as regiões –; a Espanha – o cálculo do imposto depende
não só da lei geral mas também da lei de cada comunidade autónoma (que pode
prever a isenção total) –; os Estados Unidos da América – cada
estado federal tem o seu regime fiscal, havendo uns em que a isenção é total
para cônjuges, descendentes e ascendentes, outros cuja isenção não abrange
descendentes e ascendentes, e ainda os que impõem o pagamento de imposto,
quaisquer que sejam os herdeiros –; e a Suíça – não sendo o
imposto sucessório compulsório a nível nacional, vários cantões impõem‑no.
Indicam‑se
os restantes países que entendem a transmissão gratuita de bens (mobiliários ou
imobiliários, financeiros ou não) como um privilégio, razão por que o imposto
está institucionalizado: Alemanha, Chile, Coreia do Sul, Croácia, Dinamarca,
Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Irlanda, Islândia,
Itália – que reintroduziu o imposto em 2006, depois de o ter abolido
em 2001 –, Japão, Letónia, Luxemburgo, Noruega, Reino Unido, Roménia e
Turquia. Como é normal, este conjunto agrega países com realidades bastante
díspares. Nalguns a herança para os cônjuges está totalmente
isenta – Dinamarca, França, Noruega e Reino Unido. Noutros a taxa de
tributação é fixa – Croácia, Islândia e Roménia. Na grande maioria
das situações observadas vigora um sistema articulado em que as taxas
(progressivas) e os limites de isenção dependem do grau de parentesco e
afinidade, do valor da riqueza transmitida ou de ambos.
Determinados
regimes dispõem de regras que privilegiam a transmissão de bens para
instituições de caridade. Acontece, por exemplo, nos seguintes países:
Alemanha, Hungria, Finlândia, Holanda, Itália, Noruega, Reino Unido, Suíça e
Turquia.
(34) Austrália,
Canadá (onde cada província ou território estabelece as suas regras fiscais) e
Israel.
(35) Para além de
Portugal, tal isenção verifica‑se nos seguintes estados: Áustria, Bulgária,
Chipre, Eslováquia, Eslovénia, Estónia, Lituânia, Malta, México, Nova Zelândia,
Polónia, República Checa e Suécia. Não obstante, na Áustria e em Malta há um
sistema semelhante ao nosso: apesar de não vigorar um imposto sucessório, os
beneficiários estão sujeitos a um imposto sobre a transferência de bens
imóveis – embora as taxas sejam incomparavelmente superiores à
portuguesa (de 0,8%, como consta do ponto 26). Ademais, em países como a
Eslovénia, a Lituânia, a Polónia e a República Checa o imposto
cobrado – grosso modo, quando a transmissão não envolve cônjuges,
descendentes ou ascendentes – resulta de uma taxa progressiva, em
média entre 4% e 20%, em função tanto do grau de parentesco e afinidade como da
massa sucessória – em Portugal aplica‑se a taxa fixa (de 10%).
(36) Foi
substituído pelo regime resumidamente já explicitado no mencionado ponto 26.
(37) Convém ter
presente que a reduzida dimensão do benefício estará em linha com o que, para
esse género de imposto, se passa em múltiplos países, por um lado, e com o que
se verifica, em Portugal, com vários impostos, por outro.
(38) Mesmo que
não se pretenda colocar a questão da justiça social, por revestir (também) uma
natureza ideológica, o problema da equidade financeira é totalmente objetivo e
intransponível. De facto, visto que em regimes fiscais minimamente profundos e
abrangentes a maioria dos investidores paga impostos sobre as mais‑valias e os
ganhos de capital, não há qualquer motivo lógico para que se isente, por
exemplo, a valorização não realizada de um ativo ocorrida entre o momento
inicial da aquisição por parte do falecido e o momento da transmissão
sucessória. Neste exemplo, ao contrário do que preconizam os críticos – os
quais apontam a dupla tributação como uma razão para manter o statu quo, como se abordará no ponto
32 –, o imposto sucessório é primário e não (conforme acontece quando se
está perante a dupla tributação) secundário.
(39) Há países
onde os maiores limites de isenção são aplicados aos cônjuges,
depois – aproximadamente metade do limite para os
cônjuges – aos filhos, a seguir – cerca de metade do limite
para os filhos – aos netos, e no fim há um limite muito baixo para os
demais herdeiros. Também existem casos em que se estabelece um limite de
isenção algo elevado apenas para os cônjuges, sendo ínfimos os limites para os
restantes beneficiários.
(40) As taxas
efetivas de imposto devem ser fixadas por forma a que os ganhos extraídos da
transmissão sucessória não sejam tributados a um nível inferior ao que decorre
das taxas estabelecidas para os rendimentos do trabalho.
(41) Contudo, ao
contrário do imposto sucessório, que incidiria unicamente sobre os montantes
que excedessem os limites de isenção, no imposto sobre ganhos de capital seriam
tributados todos os tipos de mais‑valias brotadas da transmissão sucessória.
(42) Relativamente
às críticas do foro ideológico aplica‑se, com as devidas adaptações, a nota de
rodapé nº 13.
(43) Passa‑se a
explicar porque se qualificam os três argumentos elencados como sofismas.
Relativamente às contrações da poupança e do crescimento económico, admite‑se,
com muito boa vontade, que numa primeira fase as repercussões da reintrodução
do imposto sucessório possam ser incertas. Contudo, não há
sustentação – evidência empírica ou teoria económica – que
confirme o presságio avançado pelos críticos, até porque a existência ou não de
imposto sucessório é uma variável que, pelo menos a nível europeu, não explica
a formação de poupança. Aliás, com base na informação do Eurostat referente a
2012, a taxa de poupança média nos países com imposto sucessório supera
ligeiramente a correspondente taxa nos países sem esse imposto, o que
inviabiliza o argumento. Nesses dois conjuntos de países tanto se verificam
taxas de poupança altas como baixas.
Quanto
ao argumento do efeito da dupla tributação, cumpre ter presente, para além da
observação tecida na nota de rodapé nº 38 – acerca da falsa
dupla tributação –, que esse efeito não constitui uma situação isolada em
Portugal. Veja‑se, por exemplo, a sobreposição do imposto sobre o valor
acrescentado em relação ao imposto sobre veículos (anterior imposto automóvel),
sobreposição inclusivamente corroborada pelo Tribunal de Justiça da União
Europeia em 2011.
A
dificuldade (se comprovada) de obter liquidez para pagar o
imposto – problema que se colocará igualmente na liquidação do
imposto especial sobre a riqueza, como foi indicado na secção
C – poderá ser resolvida com a exigência de pagamento no momento em
que as mais‑valias se tornem efetivas.
13 de dezembro de 2013






