David Dinis(1)
A. Das ditaduras consolidadas às democracias desenvolvidas
Cada
ordenamento político tem o seu ADN, desde logo porque da mera crítica ao
espírito crítico dista uma vastidão. A crítica espontânea e não fundamentada é
fácil, e por isso nada acrescenta. A crítica que, embora não seja tão linear
como a anterior, aborda sofisticamente a realidade – uma parte da
verdade é analisada de maneira séria e a outra é omitida ou tratada de modo
deturpado – também não vale muito.
O futuro
exige ser livre e aberto. Ora, a crítica espontânea e não fundamentada engana‑o,
enquanto a sofística o encana. O futuro obtém‑se essencialmente com espírito crítico,
o símbolo do auge democrático. É desmesuradamente mais difícil do que a
crítica, pois requer trabalho e organização. No fundo ele consiste na crítica
construtiva, resultante da complexa articulação entre crítica, verdade, razão e
sensatez.
Fazendo uma
viagem rápida à história mundial, podemos concluir que, apesar de a crítica
constituir uma das características humanas a valorizar – porque vai
evoluindo e tornando‑se útil para a sociedade –, não releva devidamente
para a qualidade democrática. Somente com apreciações proporcionadas, apoiadas
na equidade e na eficiência, é possível alcançar tal qualidade. No quadro
seguinte atrevo‑me a resumir simplificadamente uma abordagem acerca das
combinações entre a crítica e o espírito crítico.
Se houvesse
um democrómetro para mensurar a
densidade democrática, certamente registaria um valor significativo quando a
crítica e o juízo crítico atingissem índices bastante elevados, situação que
ocorre apenas em modelos democráticos maduros – estádio (D). Nas
democracias desenvolvidas o hiato entre os resultados da crítica e da análise
crítica é reduzido. O mesmo sucede nos regimes totalitários, independentemente
da sua natureza – estádio (A) –, só que nestes tanto a crítica
como a análise crítica assumem níveis deveras diminutos. As ditaduras
consolidadas são um buraco negro onde o temor impede sonhos e pensamentos,
castrando qualquer opinião não coincidente com a doutrina instalada, desde a
crítica amarga e ignóbil ao julgamento crítico exemplarmente fundamentado.
Os estádios
(A) e (D) são os polos políticos. A sequência (A)‑(B)‑(C)‑(D) refletirá o
sentido de evolução dos sistemas onde prevalece o respeito pela lei e pela
ordem. Contudo, ao longo daquela evolução este respeito nem sempre existe. Por
outras palavras: durante o desenvolvimento político não é rara a ocorrência de
momentos onde a violação da lei e da ordem, o caos e a anarquia alastram e
vulgarizam‑se – embora não seja expectável que surjam nos estádios
(A) e (D), ou seja, acontecerão principalmente em ditaduras inseguras ou em
democracias frágeis.
Na passagem
do estádio (B) para o (C) há ganhos e perdas: ganha‑se no volume da crítica e
perde‑se na respetiva qualidade. Quando a crítica não sustentada se banaliza
perde credibilidade. É vulgar, pois a democracia traz a voz do povo para a rua;
todos desabafam, tantas vezes sem razão. Entre esses dois estádios irrompe um
vulcão infinito de sonhos acumulados. São estes sonhos (nascidos nas ditaduras
decadentes) que, ao expandirem‑se, transformam o embrião da democracia num ser
autónomo.
B. Espanto, desencanto e encanto
Qualquer
democracia nasce de um processo metamórfico que procura elevar a utopia ao
patamar da verdade. Depois de um período em que predomina o espanto, as
democracias assistem a ciclos alternados de desencanto e de encanto. Enquanto a
fase do espanto é emotiva, as do desencanto e do encanto revestem um caráter
tendencialmente racional. Os cidadãos, individual ou coletivamente, atribuem ao
desencanto e ao encanto a importância que melhor entenderem. O teor das sucessivas
manifestações democráticas ocorridas nessas duas últimas fases, bem como a
duração e a intensidade das mesmas, permitem caracterizar e distinguir as
democracias.
A primeira etapa
para a construção democrática – o período do espanto – é
bela e transcende, de uma forma infantil – na aceção inocente da
expressão –, a própria lógica. Assiste‑se a uma espécie de processo
experimental em que as palavras dos poetas descodificam‑se e superiorizam‑se
face aos argumentos dos advogados; as melodias dos músicos até então votadas ao
silêncio ecoam e impõem‑se perante as análises dos economistas; as obras
erguidas pelos escultores livram‑se das algemas e dos grilhões e suplantam os
projetos dos engenheiros. Enfim, o mundo velho controlado por ilustres
políticos, nomeadamente advogados, economistas e engenheiros encartados, fica
totalmente diferente; não porque as coordenadas tenham sido reinventadas mas
sim porque os sentidos do Homem livre rompem o lazarento véu do passado.
Durante o
posterior desencanto impera a crítica – numas ocasiões – e
o espírito crítico – noutras. É um momento de ebulição onde salta a
vontade – desde que honesta e bem‑interessada, que é a única
meritória – de mudar e, acima disso, de melhorar. Melhorar o bem de
todos, pois se as melhorias forem boas para o conjunto, necessariamente serão
para a esmagadora parte dos elementos que o compõem. O oposto não é verdade, ou
seja, o bem de um punhado não significa forçosamente o bem de todos. Se o
próprio Adam Smith do séc. XVIII, criador da tese da mão invisível,
assistisse à civilização contemporânea, compreenderia com facilidade que as
leis naturais da Física não são transponíveis para os sistemas socioeconómicos
como entendera. Ele e o tenaz oponente Karl Marx do séc. XIX estariam
equidistantes da realidade, ainda que situando‑se em posições antípodas.
As
democracias que seguem o caminho da generalizada crítica irrefletida estão mais
vulneráveis ao totalitarismo popular. Não há dúvida que, por emanarem do voto
soberano do povo, são democracias tão legítimas como as restantes. No entanto
não se pode afirmar que estejam em níveis semelhantes aos das democracias
desenvolvidas, pois estas últimas firmam‑se em eleitores esclarecidos e
lúcidos, isto é, em opiniões públicas informadas e cientes das efetivas
consequências – imediatas e mediatas – das suas decisões.
Daí a referência ao ADN com que se iniciou este documento.
Todas as
democracias têm defeitos, inclusive as consideradas sólidas que, para a maioria
das pessoas, representam a verticalidade máxima da organização social e
política atingível pela inteligência humana. Quando os defeitos forem
eliminados, conhecer‑se‑á outra área que extravasa a democracia. Entrar‑se‑á no
reino da utopia, e portanto – dado que esta é insustentável e como
tal serve de lastro para as atrocidades antidemocráticas – na
imposição do autoritarismo e na cerceadura do pensamento.
Cada cidadão
consegue usar corretamente o seu apurado juízo crítico e identificar um rol de
imperfeições em qualquer democracia. É normal e benéfico. Tanto é benéfico para
o cidadão como para a democracia – porque a fundamentação crítica (e
não a crítica em si mesma) desenvolve o raciocínio e contribui para o
desenvolvimento da sociedade.
Depois do
desencanto, o encanto vem. Os cidadãos são capazes de conviver com as decisões
mal tomadas, pois percebem que a democracia também contém erros. Acabam por
agradecer ao sistema que lhes permite manifestar publicamente a sua opinião. Na
fase do encanto examinam‑se as virtudes democráticas e passa‑se pelo humilde
pensamento de comparar a realidade (imperfeita) com a vida (hedionda) se não
houvesse democracia. Os sujeitos acusadores do regime têm capacidade para
aferir que sem a luz da democracia a sociedade seria doentia e estéril.
C. A nossa maravilhosa geringonça democrática
Aterrando no
passado da democracia lusitana, podemos associar a etapa do espanto ao período
dominado pelos excessos de criança – quanta pena temos dos tempos de
petiz em que quase nada nos era proibido – e terminado quando
concluímos que a utopia era impossível alcançar, por distintos e supremos que
fossem os sonhos e as ideias. A repreensão e o açoite surgiram cedo, em 1978 e
1983, com os programas financeiros do Fundo Monetário Internacional. Seguiram‑se
os ciclos de contínuos (des)encantos.
A democracia
em que vivemos é maravilhosa. Maravilhosa não por ser imaculada – até
porque nenhuma compreende tal nível de perfeição, embora umas sejam mais
pecadoras do que outras – mas sim porque é a nossa – o
bastante para ter uma característica especial – e porque houve tantos
milhares de patriotas que lutaram e padeceram por ela. Há a relembrar que tais
ousados amigos voluntários da Pátria despiram‑se da cobardia e da resignação
fáceis, pondo à disposição do próximo tudo o que de melhor tinham: a vontade e
a força de transpor o genuíno desejo de liberdade política.
Se efetuarmos
uma simples autocrítica, identificamos matérias em que objetivamente a lusa
democracia se destaca quer pelo lado positivo, quer pelo negativo. Saindo por
breves instantes da discrição, devemos reconhecer a área da saúde como um
aspeto onde a democracia portuguesa tem sido literalmente maravilhosa. Cumpre
enaltecer a demonstração civilizacional e humanista do Serviço Nacional de
Saúde (independentemente das falhas que subsistem).
Ao invés,
salienta‑se a má lição crónica que a área da justiça tem dado à democracia (não
obstante o esforço por vezes hercúleo para tentar inverter os vícios do sistema
judicial). A indisfarçável tendência de justiça dicotómica para pobres e ricos
(conforme o dinheiro disponível para comprarem a sua defesa) e os impunes
crimes financeiros de lesa‑pátria são dois exemplos. Portugal não consegue
livrar‑se do subdesenvolvimento judicial enquanto o vulgar cidadão não entender
que: o ato de lesar o Estado prejudica‑o sobremaneira, ao contrário do que lhe
parece; a injustiça não é muito pior do que a justiça tardia; e um sistema
judicial eficaz e célere é uma variável explicativa fundamental para a criação
de riqueza e emprego.
Para viver em
democracia não chega pintar com tinta transparente as grades da liberdade de
pensamento. Para que a democracia não seja uma geringonça mas sim uma máquina
credível é imprescindível que a população sinta o peso crescente da
responsabilidade. A qualidade da democracia afere‑se nomeadamente pelo modo
como se exige a consolidação da efetiva liberdade de
oportunidades – sem a qual o princípio democrático do respeito pelo
próximo é oco, opaco e cínico – e se usa a liberdade de expressão.
A
exigência – enquanto atitude cidadã – manifestada pelos
eleitores é essencial para a democracia avançar. Todavia a crítica e a vontade
manifestadas pelo povo não fazem progredir a sociedade se a maioria optar pelo
lado oposto ao que a razão e o bom‑senso preconizam. A meu ver é essencialmente
isto que distingue as democracias; explica o motivo por que há sociedades onde
os avanços são regulares e outras em que os avanços são frequentemente
interrompidos por estagnações ou até retrocessos. A consistência democrática
compadece‑se com perenes juízos críticos, e não com
repentinos – mesmo que efémeros – estados de desencanto à
base da crítica impolida.
Com efeito, a
democracia terá tanto mais qualidade quanto melhor a concertação nas fases de
encanto e sobretudo de desencanto. A união de esforços na etapa do desencanto é
uma condição necessária mas não suficiente para empreender a democracia; é
preciso que haja abundante audácia e sustentação crítica para tapar as
adversidades do sistema. Na situação específica destes quase 40 anos de
experiência democrática, parece que um dos grandes problemas é que cada
português usufrui da democracia amadoramente e à sua maneira – e não
de uma forma coletiva e articulada com os restantes. É legítimo, bem sei. Tão
legítimo como natural é o resultado do individualismo e da desarticulação, que
está patente às pessoas que não são cegas de espírito.
Quem pensa
que a democracia se restringe à promoção da pluralidade de opiniões, ou é
ingénuo ou é ardiloso. Há portanto que levantar o espírito crítico e pô‑lo em
marcha, ao serviço da Pátria. Para que a democracia se fortaleça e navegue em
velocidade de cruzeiro é necessário que conjugue adequadamente o voto e a
liberdade de pensamento com o conhecimento e a responsabilidade.
D. A idade adulta do 25 de Abril
Para o grosso
da população é tentador proferir incondicionalmente as máximas «Viva o 25 de
Abril!» ou «25 de Abril sempre, fascismo nunca mais.» Embora a custo, não atuo
desse modo, pois entendo que as frequentes referências ao 25 de Abril tornaram‑se
anacrónicas. Os acontecimentos que rodearam a primavera de 1974 constituem um
romantismo sublime mas já passaram, e por isso têm um lugar reservado na
História e na RTP Memória. O 25 de Abril deu o mote; tivemos quatro décadas
para o desenvolver.
Recordar é
viver; mas viver requer muitíssimo mais. Mesmo que sejamos idólatras, convém
que selecionemos os alvos e separemos as águas, sob pena de sermos
profundamente injustos com quem merece. Logo, dou vivas ao gentio anónimo que
concedeu toda a sua energia e sabedoria ao nascimento da democracia, e em troca
eu desprezo os comandantes da democracia – com destaque para os
obreiros da sua gestação – que ainda não ensinaram aos eleitores como
distinguir a crítica do espírito crítico.
Concretizo a
separação dos elogios das reprovações, a qual serve simultaneamente para
manifestar o meu entendimento acerca do que deve ser o futuro da nossa
democracia. Assim, vivam os que sucumbiram pela liberdade e os que, havendo
sobrevivido, souberam sair em tempo oportuno, nobre e desinteressadamente, da fase
do encanto. Abaixo os que, tendo inclusivamente lutado pela liberdade e pago
com o corpo e a alma, aproveitaram‑se dela em proveito próprio, como que a
Nação lhes fosse devedora pelo contributo que deram aquando da batalha coletiva
travada contra a ditadura.
Abaixo quem
se resigna ante o corporativismo e os negócios – perpetrados com a
aceitação e o compadrio, ou a irresponsabilidade e a incompetência dos
decisores estatais – que, à custa dos contribuintes, beneficiam uma
franja da população. Vivam os que usam a força dos argumentos para exigir que o
Estado trate os seus cidadãos como seres iguais, e não deserde nem lapide o
futuro da gente banal e ignota em prol de um punhado de almas que teve a sorte
de ser reconhecida pela sua inteligência emocional de saber levar a água ao seu
moinho.
Abaixo a
amorfia de coerência, que hipoteca a esperança e troca o futuro maciço pela vã
ilusão do presente. Abaixo a descaracterização de pensamento, que fomenta a
formulação de críticas sem ter o mínimo cuidado de descobrir as soluções, e que
espalha a ignorância e ateia a ganância. Viva quem está afastado dos
estereótipos (de esquerda, direita ou centro) e munido de perspicácia bastante
para identificar adequadamente o rumo do bem comum. Viva o lote do povo educado
e consciente, que não se fica pela rama nos comentários proferidos.
Abaixo os
democratas – cujo raciocínio, por maior que seja, é diminuto ante a
dimensão do seu umbigo – que alimentam a onda do desconhecimento e da
desinformação, em vez de avisarem a plebe incauta que a procela a arrastará.
Vivam os cidadãos dotados de responsabilidade e de respeito pela dignidade do
próximo, que têm a ímpar ousadia de pôr a razão ao serviço do interesse geral,
mesmo que a mensagem fira de morte tanto a conveniência pessoal como o
populismo ou o totalitarismo popular.
Prestes a
atingir 40 anos, a democracia portuguesa ainda permanece em formação e num
estado algo incipiente. Assim, e na sequência do que se referiu no penúltimo
parágrafo da secção A, não estaríamos a salvo de um revés. Contudo, depois de
48 anos de trevas, o cenário de rutura com a democracia será obviamente
impensável, até porque estamos inseridos na União Europeia – com
todos os juízos que se possam tecer, é uma união – e noutras
organizações internacionais que congregam países democráticos. A evolução
democrática é por conseguinte uma viagem de sentido único.
Face ao
exposto, após arduamente superada a ditadura e desvendado o carril da
liberdade, resta‑nos a tarefa de consolidação da democracia. O caminho mantém‑se
longo. Pese embora as tamanhas e impensáveis façanhas já alcançadas e alguns
viciosos e retrógrados tabus enfim derrubados desde 1974, estamos longe de
chegar a um limiar próximo da plenitude democrática. A generalidade dos
eleitores desconhece quão distante se encontra, e os pastores políticos fingem
desconhecer o real afastamento.
O 25 de Abril
fez‑se com ações e não tanto com intenções. Apesar da sua idade adulta, parece
por vezes esquecer‑se das próprias raízes e do modo como nasceu. O seu futuro
terá igual e inevitavelmente de ser feito mais com ações do que com intenções.
Ao longo destas décadas tem sido frequente invertermos a lógica: reclamar sem
pensar – forma adaptada da abordagem pidesca de exercer e justificar o poder, em que primeiro atacava e
depois perguntava. Se quisermos saborear a verdadeira democracia, então temos
de modificar a nossa mentalidade. Devemos pensar primeiro antes de criticar.
Eis o desafio que se nos coloca. Haja humildade para entendê‑lo.
(1) FRES - Fórum de Reflexão Económica
e Social.
23
de dezembro de 2013

