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sábado, 4 de julho de 2020

Cegueira

Cegueira (25/04/2018)




(Fotografia tirada às 23h16m de 24 de abril de 2018, em Setúbal, na Praça de Bocage,
durante mais um concerto fabuloso da banda UHF, repartido entre

temas da própria banda e músicas de Zeca Afonso.)



O FRES Democracia elogia veementemente o que Abril fez, mas não deixa de lembrá-Lo (Abril) do que se tem esquecido de fazer. Hoje é um dia de realidade e de esperança. Sem rascunhos. A «raiva» que falta a Portugal, ao Povo maiúsculo e aos políticos minúsculos somente desaparecerá quando a verdade se transformar em Verdade. No entretanto a Cegueira impera, o povo permanece minúsculo e os Políticos continuam maiúsculos.





               Tu serás o que sonhares
               Mais o que concretizares
               Sociedade hipotecada
               Fora de tempo gerada

               Sonho afiado em esmeril
               Após chuvada de abril
               Melhor água nunca houvera
               Irrompida em primavera

               Ano em que a força regou
               O que o silêncio secou
               Raiou outra confiança
               Que aclamou a fácil esperança

               Mas os filhos da vontade
               Beberam agre verdade
               Unidade engavetada
               Flébil razão refutada

               Alegria sedutora
               Tristeza triunfadora
               Jamais nasce nova era
               A raiva de ti se espera

               A rota da coerência
               E o golpe da consciência
               São a única aliança
               Senão a cegueira avança

domingo, 28 de junho de 2020

Carta aberta a Abril Amigo

Carta aberta a Abril Amigo (25/04/2014)





Exmo. Senhor Abril Amigo,

Em primeiro lugar, peço imensa desculpa por, neste dia tão festivo – e controverso entre os atuais democratas do poder e os democratas patriarcas da liberdade – e de suprema felicidade para si e sobretudo para nós, escreverlhe para manifestar a minha avaliação sobre o balanço da sua idade. Admito que não me considere simpático, perante as observações que passo a expor. Acaso se melindre com algumas delas, gostaria que ficasse ciente que apenas pretendo ser prático. Acredite que a exposição é um pouco incisiva porque o aprecio e valorizo… profundamente. Se bem que possa prescindir da minha atenção, eu não dispenso a sua – lamento ser sincero consigo e honesto comigo.

Reconhecerá seguramente que naquela primavera o sol brilhou demais e, com tamanha alegria, cegou. Para as trevas da ignorância silenciosamente foi e continua a ir, e o seu próprio destino enterrou, levantando por oposição – contudo nem sempre legitimamente – o de tantos. Os inocentes são contagiados pelo vício de vaidade daqueles que o amigo Abril Amigo ajudou a levantar – i.e., a desequilibrar. Mais do que contágio, provavelmente é uma persistente doença – provinda da hereditariedade ou então do obscuro surgimento –, que propagou ao ponto de não se vislumbrar um tratamento que a contenha.

Por norma, o Senhor refundese no esquecimento e na sina desventurada, aguardando que um milagre venha, agora que a enfermidade foi desvendada. Tem convivido com camuflados padrastos, que o conspurcam e nem assim mostra ofensa. Viu a alma ser lancetada pelos obreiros e lordes fazedores de opinião e transformada em colossal e solidificada desgraça e em arcaica e dura mentalidade. A doçura redolente que em si brotou foi injetada pelo temporal infernal. Os sinais são reveladores dum estado febril permanente, interrompido pela loucura, típico de que o seu organismo anda fraco. Custa perguntar: desanimado e com o orgulho ferido, existe cura para a rara descrença?

Vinte e cinco e os quarenta vilões é um lugar de mansos e galifões, um reino de convívio de leões, tubarões, abutres e restantes carnívoros concorrentes à altura das galinhas no poleiro que não se importam com quem está debaixo. Duma sardinha para três pessoas, o caro Abril aceitou que frequentemente a canastra passasse para uma só. Concordará que dispõe duma infinita capacidade de encaixe: vãolhe às entranhas e não se magoa; aceita os pulhas – com as fingidas imagens boas – que esmifram tudo, sem apelo ou dó; e em contrapartida sobrevive a apertado nó. Sem querer, tem fantasiado filhos e netos; mas a involuntária tentação não releva, pois sabe que faltam valores nobres e retos.

Enquanto usufrui da profunda e completa anestesia, parece que respira gáudio em ser manchado, mesmo cheio de dívidas – enforcado. Eis o fruto duma vasta hipocrisia de quem o pôs nessa vergonhosa situação. A angústia veio na esgalha porque a testosterona, irrompida em abril, no início de maio abalou. O Senhor Amigo teme os papões, permanece infantil e esquecese do que o Zeca lhe ensinou. Propagamse as colónias de fungos, vírus e bactérias, cujos vastos danos são tratados com lérias, ou não fosse a especialidade dos lentes insignes e trapaceiros.

No manicómio do pensamento castrado estão os pais que foram pelos próprios filhos desonrados e torpemente condenados. O estimado Abril tem uma grave consciência decadente, segundo apregoa a maioria da sua população. Com esse problema sério e incurável os parasitas continuam em frente e tornam a honra permeável. Possui a visão afetada mas vê de bomtom os conselhos que o afundam. Classificamno de invejoso se é causídico e reclama e, quando aponta o dedo, tomamno como malcriado. Emana raízes quadradas e cúbicas, e tãopouco uma simples erva abana.

As suas metástases abundam, e pelos vários órgãos se alastram. Julgo que para a mente destonificada a solução encontrará, embora não seja fácil, atendendo ao que tem acontecido. Constatará certamente que a ciência tem saído refutada, pois as vacinas e os cicatrizantes que lhe administram causam contraindicações más, com os antibióticos idem, e sem efeito resultam os tranquilizantes. O Senhor é refém da cura enganada, onde nem os sedativos incidem e os demais fármacos valem nada. Em si estacaramlhe o egoísmo, e por isso está pejado de ostentação e futilidade.

Equivocase, não se apercebendo que tem sido a irrefletida perfeição do servilismo. No fim de contas, para pôr no prego, sobra a saudade dos que partem levando a esperança e deixando a agonia. Paralelamente, abunda o livre fascismo disfarçado, com boys e lobbies do alto ao lado, e para música de fundo foi contratada a imprensa – que mora em igual tacho (por opção dela) ou então na ínfima posição (imposta) que pode existir mais abaixo. Ninguém ousa tocar a rebate. Os comandantes políticos expõem ações para abate, e até com o voto o povo é capacho – da esquerda à direita, a escolha revelase impossível ou demasiado estreita. Quase nada o salva, inclusive a prece, Abril – entendo que, após o que já transmiti nesta carta, posso dirigirme a si com acrescida proximidade.

Não seja dono dum corpo oco, de lógica queimada e de inteligência muda – senão mesmo decepada. Por outras palavras: embargue o império dos ilustres artistas, vestidos à moda dos claros mafiosos moralistas, onde o logro é passatempo e regalo. Alguns socialistas fascistas, ou antes, democratas oportunistas, roubamlhe as vísceras mais o falo, e o meu caro não acorda nem com forte abalo. Uma sentença suja foi declarada – ou melhor, tentada –: como é difícil a correção da direção, querem que se acomode à regeneração arruinada. Faltando a terapêutica eficaz, o desfecho passa porventura pela prevenção, ou talvez pelo sacrifício dos deuses. Acordando e sabendo onde está, concluirá quanto é carente. A cegueira endémica a atacar é o infortúnio e o abismo que assolam a sua gente.

Da romântica revolução da puberdade, uma distinta odisseia urge surgir. Acorde e mude o espírito para a responsabilidade surtir. Não pode negar que, sem humildade e justiça, nem vontade para terminar o jugo, a cunha agora corróio e enfeitiça. Atenda a que o mérito não é refugo. Não se iluda com o tradicional legado e com o corporativismo enraizado. Adote antes o genuíno e salutar empreendedorismo, declare guerra aberta à ignóbil (e ancestral) corrupção, dignifique os notáveis pescador e agricultor – nem que seja por terem sido os bobos ultrajados da adesão à CEE, como se recordará, que consolidou quer a perspetiva democrática, quer a dogmática dos capatazes das eleições –, troque o especulador (que não é necessariamente o financeiro, ao invés do que o seu estigma indica) pelo produtor e valorize a força eterna da razão, ainda que esta possa não lhe convir.

Desmonte do asno velho e lento – atitude benéfica para os dois – e prossiga o caminho pelo seu pé. Não tolere que a fome e a caridade sejam o panteão dos pobres. Há outras formas de padecer e de distribuir o pão – migalhas não, por favor. A virtude da modéstia consoláloá tãosó quando decidir aplicar oportunamente a dose adequada de sulfato para prevenir a moléstia que o atinge. Com inúmeras experiências realizadas, falase que as suas dúvidas não advêm da doença mas sim da metafísica ou de algo transcendente – os efeitos resistem há tanto que até poderão advir do quebranto. Independentemente da origem terá de inverter a sua estratégica: não votar – única alternativa.

Deixe de ser refém de incomprovada verdade. Afaste quem usa a palavra liberdade para brincar com a democracia. Sabe bem que jamais dramaturgo testava tal brincadeira. Não queira ser o laboratório de escuros padrões nem o chão de sol com luz sombria, onde para a horda é noite e para o escol é dia. Enjaule os bichos que o envenenam, cumpra a paz com o futuro e descreia dos mentirosos que acenam com promessas fúteis de bom fado. Atice o seu brio. Não permita que lhe chamem sociedade hipotecada fora de tempo gerada. O Abril Amigo será o que sonhar e mais o que concretizar.

A revolta em si começa. Para defender o seu interesse – o nacional – não basta mexer somente numa peça quando a avaria tem mal geral. O partido da sensatez e a ideologia da coerência são a benévola aliança, senão a incompetência (que cada vez mais avança) ficará tatuada na sua testa. Alistese em nova consciência, desfaça o cordão da resignação e aposte sem medo na convicção. Com esforço e coragem consegue o rumo que há décadas persegue. Ainda que com problemas de natalidade – não forçosamente de virilidade –, implore que nasça o povo merecedor da querida e excelsa Nação.

Caríssimo amigo Amigo, nunca se esqueça que a ilusão é efémera, ao contrário das necessidades, e por isso lembrese que nada é ilimitado, nomeadamente a paciência. Subscrevome com a máxima consideração, desejandolhe, neste seu 40.º aniversário, imensurável saúde e felicidade, na companhia de todos nós – que infinitamente o estimamos – e dos vindouros – espero e acredito que trilhem semelhante estima. Estime(n)os bem, pois o seu nome de Abril é para os que já foram, os que estão e os que virão.

sábado, 27 de junho de 2020

Império dos enteados ou democracia empalada?

Império dos enteados ou democracia empalada? (07/04/2014)


 


Enquadramento


Um sonho afiado em esmeril cortou a corda que amarrava a esperança. A libertação primaveril aclamou a celestina confiança e irrigou o chão que o sal das mágoas lacrimejadas secara. Contudo, finda a bela primavera, os descendentes do mesmo empenho beberam diferente engenho e, com a unidade engavetada, a alegria inicialmente sedutora transformouse numa vaga de tormento duradoura. Haja portanto arte para pôr em marcha a obra hercúlea da ressurreição do ânimo.

A população em geral persiste na convicção de a democracia ser controlada pelos republicanos azulados e pelos democratas filiados, a quem as pessoas atribuem, à boca cheia, o rastilho do nosso atraso. Com efeito, eles encontramse misturados no próprio povo, no qual largam, estratégica e cuidadosamente, os seus bemaventurados e prodigiosos ovos. O gentio não faz caso da desdita, ignorando que há uma transmissão – por vezes da desmoralização – dos velhos para os novos. Uns e outros estão ligados a igual teia – genética ou não –, sendo o código de acesso o milagroso condão de sucesso. O desconhecimento e a resignação são formas tácitas de aceitação do mal e do erro. Recorrendo a um anagrama modelar, podese dizer que vamos «livres» por um caminho «servil». Acrescentaria: vivemos num Estado «social», embora «servil», iludidos que somos «laicos», e mesmo «livres».

Império dos enteados


A república – da primeira à terceira – vingou sobremaneira: passouse da hegemonia dos morgados ao império dos enteados. Eufemismo de feudalismo à portuguesa, onde as guildas partidárias decretam a certeza legal e o evangelho dos senhores astutos logra as classes otárias com promessas de epifania. Os mesmos senhores – bemeducados, da razão profanadores e com a incompetência acesa – legislam que a noite vira dia, à guisa de quadrilheiros com nobreza. Viciam os vassalos, os senescais e os demais criados e, como se não bastasse, usam os bobos e os jograis para efémeros regalos, para investiduras sem pejo e para orações e ofícios tais. Pelos padrinhos são nomeados, e com beijo da paz e festejo honram os malfadados sitiados.

São mestres engenheiros da pobreza, de piquete incondicional, ao dispor quer do seu serviço, quer do dos fortes. Perfeitos ascéticos mercenários para a riqueza, que defendem a severidade, porém para si diferentes sortes. Vendem paraíso em terra – moderna maré de indulgências – e espalham vasta popularidade, fabricada com objetivos de opaca clareza, longe do conflito ou da guerra e com invisível subtileza, sem fazer ondas, para afastar do sobressalto a eclosão dos ovos.

Alheios ao facto de as ervas daninhas minarem as terras e os canteiros e sugarem as plantas vizinhas, os tribunais impõem irrecorríveis autos de absolvição, homologando o conjunto de espécies botânicas que frutuosamente destina o império que domina. Com arbitrária e autoritária decisão, os eminentes cangalheiros – ou antes: os ilustres canibais da lei – assumem o papel de carrascos pioneiros que mandam a justiça para a prisão. No fundo, são juízes conselheiros do dinheiro, que confirmam a utilidade das experiências inovadoras de resultado desconhecido. Não importa o resultado, desde que para cobaia se nomeie a grei.


Democracia empalada


O escol que na Nação manda divulga a pegajosa propaganda de que hoje vivemos numa democracia consolidada – suspeita opinião, ou muito dele não pertencesse às chocadeiras de referência. Uma democracia onde a força se funde em frouxidão; onde reinam mitos e fantasias, do arcanjo ao dragão; onde apenas há certezas, sem quaisquer dúvidas ou enganos; onde se empedram idolatrias; e onde a coragem é envenenada com o simples olhar dos basiliscos, não está consolidada mas sim empalada. Na lusa democracia minguada, bem parida e mal desmamada, até os ventos se enlutam com a norma da usurpação que certas almas disputam. Democracia da cristalização de dores, do bloqueio da evolução e da decadência alimentada com a inanição de valores e a consciência torturada.

Apesar do Estado fantasioso, os faunos, os grifos e as sereias, sejam bondosos ou medonhos, sentem o sangue gelado nas veias quando se levanta o tirano – o papão minaz, que raramente descansa, come os desejos e dinamita a verdade. Por onde ele passa, produz dano, ficando a lógica sem autoridade. Chegámos à estação do futuro extinto e esmagado e da era vil da especulação. O arrojo, agora desmembrado, converteuse em sensor do prazer. O pensamento de lentidão precisava de ser preso e julgado – mas não em tribunal, pelo que atrás foi indicado – pelos delitos comprovados de veleidade e de ausência de orientação. Entretanto, assistese à justiça órfã a crescer e à crucificação da moral tardiamente enxertada.

Ao lado, erguese um monstro indomável – de mil olhos – e que, à semelhança do ditador fisco – com frequentes crises de cegueira –, ataca as classes plácidas, nesta terra de interesses e cargos e neste local da corrupção banal, das ideias flácidas e da veneração das heranças e do capital. Pior do que tamanha veneração, é a decapitação da esperança, aplaudida pelo ordálio legalizado da sacramental aliança entre a hipocrisia e o sofrimento. O vigor evaporado é o pavio do arrebentamento e o garrote da liberdade.

Conclusão


Falta gente de firmeza para formar uma batida e anunciar a limpeza dos deístas dos interesses, dos partidos e das seitas. Já que de morte a alma está ferida, com cátaros da verdade curavamse inúmeras maleitas. Assim, há que dançar conforme a música. Resta desenterrar a pureza, alimentar a vontade e aguçar a destreza. No nosso território abundam os pausmandados – pecadores por omissão, facilmente trepanados e com espírito entorpecido. Paralelamente, rapaces de garra e visão caçam tanto os animais mansos como quem anda iludido. Os ataques só poupam os ovos da mesma espécie. Virá o dia em que os cordeiros – enfim indignados e dotados para encarar os predadores – imporão os seus lanços, mas somente depois do regresso duma excursão ao mundo novo da revolução. Todavia, ainda são poucos os aliados para direcionar ou ensinar a peculiar democracia. Escasseia a ousadia – definida de utopia por alguns seres.

Retomando a questão epigrafada sobre o sistema que melhor caracteriza a sociedade lusitana: império dos enteados ou democracia empalada? Não há resposta certa nem errada. Não se sabe o que dirão os especialistas políticos de renome, os comentadores reputados, os «ex» da ribalta ou outros ilustres da audiência televisiva em alta – e da memória em queda. A maioria das pessoas entenderá que são as faces desvalorizadas da mesma enganada moeda.

Dos cravos da esperança à revolução em liberdade

Dos cravos da esperança à revolução em liberdade (20/03/2014)


A Revolução de Abril é digna de singularidade histórica. Não me refiro à ingenuidade associada à escassa assertividade quanto ao caminho até agora traçado e às decisões tomadas ao longo das últimas quatro décadas. Refiro‑me à espontaneidade de um povo que, de um modo geral, transformou o veneno da dor e a sede da vingança em cravos da esperança.
Ante as atrocidades cobardes desferidas por batalhões de repressores com raciocínio automático e curto e com orelhas maiores do que as suas cabeças, seria expectável que com a Revolução se aplicasse a justiça do olho por olho, dente por dente. Ou seja, esperar‑se‑ia que a justiça viesse não só com a pena de prisão mas com a merecida (e no mínimo comparável) tortura física e psicológica. Ao invés, a aguardada sentença de dar a conhecer aos carrascos o inferno terrestre foi substituída pela amnésia de ignorar as desumanidades impostas pela lei da miséria a muitos milhares de patrícios trabalhadores e íntegros.
Meteu‑se tudo no mesmo saco: os que, apesar de exercerem as suas funções profissionais de defesa do regime ditatorial, ali e além transpiravam sinais de quem vivia em conflito com a própria consciência – admito que houvesse pessoas do regime com sentimento –; e os que desempenhavam, de corpo e alma, a tarefa vil de regar com tortura o desejo de liberdade acerrimamente enraizado no sonho dos indefesos que estiveram sob a mira dos informadores ignóbeis e dos gorilas abjetos da doutrina da desgraça. Por não ter existido qualquer distinção, como acabou de ser mencionado, parece que em termos de perdão a democracia quis estabelecer‑se. Custou aceitar, sobretudo quem conviveu permanentemente com a lembrança insanável do passado.
Praticamente nada aconteceu aos carniceiros que, julgando‑se os representantes máximos de um Deus maior, vasculharam os sentimentos e os valores de jovens e de homens e mulheres adultos; perseguiram, espancaram e assassinaram sem piedade nem razão; praticaram a insuportável tortura do sono; perpetraram outros inúmeros sofrimentos sórdidos aos inquiridos durante os interrogatórios, tais como arrancar unhas, apagar cigarros na pele ou – como fizeram ao meu avô, que foi posto ao barulho sem saber porquê – espetar na cara garfos de ferro (bem afiados, não como os de inox). A suavidade ou a impunidade da resposta no pós-25 de Abril aos crimes cometidos foi extensível aos mentores e aos capatazes, nomeadamente, da «frigideira» do Tarrafal, das idas para o «segredo» dos cárceres e das celas subterrâneas encostadas ao mar para que os presos políticos beneficiassem do conforto de uma cama de água salgada independentemente da estação do ano.
Tantas crianças órfãs, tantas viúvas desconsoladas, tantas mulheres humilhadas, tanta virilidade infértil; enfim, tantos telhados que desabaram nos lares escuros da fome, iluminados apenas pela desconfiança e pelo medo. Sacrifício hercúleo para cumprir com a vida a função do livre pensamento que se impôs aos bravos que desafiaram a opressão - monstro de dezenas de milhares de tentáculos viscosos e inúmeras vezes venenosos -, e que a ousaram fitar de cima para baixo. Compreensivelmente, quem viveu na primeira pessoa as crueldades da ditadura sentiu o sabor amargo da injustiça e pôde, com total e exclusiva autoridade, concluir que o sofrimento foi em vão. Como o magnífico José Mário Branco escreveu e musicou, «Quando a nossa festa se estragou/E o mês de Novembro se vingou/Eu olhei para ti/E então entendi/Foi um sonho lindo que acabou/Houve aqui alguém que se enganou». Os excessos esboçados ou praticados desde abril de 1974 até novembro de 1975 foram uma gota perante o rio de sofrimento contínuo a que a chusma foi submetida.
O sentimento da sublime libertação popular consumou‑se em termos políticos em 1974. Acima do que Hermes fizera ao gigante Argos de cem olhos, os combatentes lusitanos usaram a espada da liberdade para decepar o monstro atrás descrito. Quando brotou a primavera não houve tempo para a vingança. Esta morreu no mesmo instante em que nasceu a tão aguardada esperança. Cumpre reconhecer que somente uma gente pachorrenta mas nobre em intenção incorpora invulgar estofo, de passar o sofrimento para o estrato mais baixo do esquecimento.
Duas décadas depois, a História registou a repetição de um perpétuo episódio semelhante referente à capacidade de perdoar os carrascos: o conduzido por Nelson Mandela. Xanana Gusmão, nos primeiros anos deste milénio, deu o mesmo exemplo de reconciliação nacional, ao fim de a excelsa população timorense ter sido submetida a cerca de três décadas de barbárie. Apenas os povos e as pessoas de superior dimensão conseguem tamanhos feitos de humanismo.
Para honrar os que tiveram de padecer como a única via para podermos inalar um futuro diferente, a homenagem que continua em falta consiste em colocarmos a reflexão e a vontade, despidas de umbiguismos, ao serviço do bem comum. Haja humildade para reconhecer que o derrube do muro da ditadura não abriu todas as portas da verdadeira democracia. Urge agora derrubar as muralhas da ignorância e do egoísmo, para sair do mundo da palavra e entrar no da ação.
É o que ainda carece. Para não dilapidar mais o tempo, tarda a segunda parte da revolução: a revolução em liberdade. Esta era com certeza a convicção última, e porventura íntima, dos compatriotas que sofreram durante o carcomido Estado Novo e se entregaram desinteressada e heroicamente à façanha da mudança de destino do País. Liberdade à alma dos que tombaram para alcançar a primeira fase da revolução. Ao fim de quarenta anos é hora de concretizar a segunda fase da obra.

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Se Abril mandasse

Se Abril mandasse (12/03/2014)




Se Abril mandasse, cremava o ADN do medo. A hombridade ordenava, sem piedade ou enredo. Alimentava toda a plebe com coragem. Do suserano tratava; mas mais do vassalo e do pajem. Espalhava a cada gente o bom senso - quem o tem não piorava; para os outros era consenso. Acabava com a ignorância maciça. Nem aos pobres tolerava o cultivo de injustiça.

Se mandasse, transformava o respeito em religião. A cobiça arrasava, para o rumo certo da Nação. Não faltava a livre oportunidade. Ensinava a quem falhava, caso mostrasse vontade. Sepultava a injúria, o tormento. Apenas solidão dava a quem semeia lamento. Entregava, aos que pensam ter muralhas, pão de cenoura e de fava, para lutarem por migalhas.

Se Abril mandasse, tapava o Sol àquele que o quer só para si; enchia de luz o anzol; e limpava as toxinas daqui. Instituía o eterno fim da ganância - motivo de galhardia e festa de extravagância. Abolia a inveja e a preguiça. Os egoístas despia da vil raiz que enfeitiça. Explodia a ideia fria e dura; e os destroços protegia com a lápide mais escura.

Se mandasse, impedia alterar a Natureza. Espontaneamente havia o civismo e a franqueza. Cobria a vida de felicidade. Terminava com a alegria dos podres da sociedade. Escravizava quem corrompe e se reveza. Num mar de trevas deitava quem nosso povo despreza. Então taxava as vãs mentes seguidistas - são a venenosa lava das depenadas conquistas.

Se Abril mandasse, ocultava o nascimento de aldrabões. Os intrujas misturava à vergonha - mas com grilhões. Abril não parava; vencia-os - zapetrape. Para os despachar aumentava a velocidade de escape. Se mandasse, decretava o dever de honra e verdade. Desta órbita tirava quem fere a honestidade. Afastava políticos sem valores. Longe, para o espaço os lançava, junto com os ladrões doutores.

Enfim: se Abril mandasse, propagava as ondas duma revolta. À Física se aliava e criava a reviravolta.

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Fresbook e não Facebook do FRES   (25/04/2020) O FRES - Fórum de Reflexão Económica e Social sempre foi um Grupo plural para o lado...