David Dinis(1)
A. Teimosia ou conflito de interesses?
Não me
cairiam os parentes na lama se voltasse ao antigo acordo ortográfico, como não
me caíram quando passei a adotar o novo. Também não é o acordo
ortográfico – qualquer que seja – que fere o meu
patriotismo. Sou tão patriota como os concidadãos que fazem dos assuntos
linguísticos uma questão vital e o centro do orgulho e do prestígio nacionais.
Confesso que
a telenovela do Acordo Ortográfico de 1990 (doravante AO 90) começa a
tornar‑se enfadonha. A falta de consenso à volta deste é uma longa metragem que
dura há mais de duas décadas, em Portugal e em vários países da Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa (CPLP), facto comprovativo de que a
cultura – sendo a língua porventura o expoente
máximo – encontra‑se blindada pela neofobia. Refiro‑me à atuação da
nossa Nação; os cidadãos dos restantes países lusófonos farão o seu juízo sobre
a posição dos respetivos Estados.
O projeto de
resolução apresentado, no passado dia 19 de dezembro, por um minigrupo de
(três) deputados – pertencentes aos partidos que compõem a maioria
parlamentar –, no qual se reivindica a monitorização e a reavaliação da
aplicação do AO 90, foi a cereja em cima do bolo. Esse projeto surgiu na
sequência da petição pública com o objetivo de desvincular Portugal ao
AO 90. As duas iniciativas – projeto de resolução e
petição – serão discutidas e votadas em sessão plenária da Assembleia
da República no início de 2014.
Parece não
ser muito percetível a ânsia de reverter uma decisão já tomada e que afetou
milhões de portugueses. Devemos valorizar Portugal como um todo, enaltecendo o
que consideramos ser bom e tentando melhorar o que entendemos estar mal. Assim,
gostava de abrir um parêntesis e abordar ligeiramente o crónico problema do
conflito de interesses.
As relações
de cumplicidade entre a política e os interesses privados minam a democracia.
Dezenas e dezenas de exemplos podem ser dados, desde a área da
finança – está sempre nas hastes do bicho, com razão ou às vezes sem
ela – à atividade de transformação do petróleo, passando pela
construção de obras públicas, entre outros setores. Como resultado de grupos de
pressão estrategicamente constituídos com objetivos bem definidos, tantos
políticos com idade adulta têm estagiado em funções governamentais, incluindo
nas de ministro, para depois se especializarem e profissionalizarem em cargos
de órgãos sociais, sobretudo de conselhos de administração, de empresas
pertencentes a grupos económicos de relevo.
A existência
de situações de conflito de interesses – por si
grave – torna‑se ainda mais deplorável perante a intermediação
(subtil, em regra) de parlamentares cuja fidelidade a escritórios de advogados
tem sido sobejamente evidente. Esta referência vem a propósito da dúvida que
inicialmente se me assolou acerca do fundamento para levantar as cinzas de um
assunto enterrado, ou melhor, ao princípio fiquei sem saber se o projeto de
resolução e a petição anteriormente mencionados foram movidos pela teimosia (de
quem tem contas a acertar com o AO 90) ou pela extensão do conflito de
interesses ao domínio da língua (atendendo aos benefícios económicos que a
reedição e reimpressão de livros, a relegendagem de filmes e restantes «re»
trariam para vários setores de atividade).
Apenas não
recusei liminarmente o cenário do conflito de interesses porque a nossa
democracia tem‑nos aconselhado a que sejamos céticos – até porque ela
deve ser transversal; por outras palavras: ou há moralidade ou comem todos,
como o povo sabiamente lembra. Contudo, sinceramente afasto o cenário. Creio
que o motivo para que os contestatários do AO 90 ainda não tenham
enterrado o machado de guerra restringir‑se‑á à mera teimosia patriótica – e
nada mais –, reflexo de quem deposita na língua portuguesa uma visão algo
inflexível do seu nacionalismo.
B. A língua portuguesa como fator de entretenimento
Estão
novamente a ser postos em causa os argumentos usados por Portugal para a assinatura,
a ratificação e a entrada em vigor do AO 90. Em termos formais, este
começou a vigorar em 2009, embora na prática somente releve o ano letivo de
2011/2012 e o início de 2012, respetivamente para os estudantes e as entidades
dependentes do Estado, havendo sido estabelecido que a partir de maio de 2015 o
acordo deve estar plenamente em vigor. Entendo que, entre os argumentos
apresentados tanto pelos defensores como pelos opositores do AO 90,
existem uns válidos e outros menos convincentes, senão mesmo um pouco
desconchavados e falaciosos.
Reconheço que
o acordo está longe de ser inatacável, porquanto determinadas regras acerca da
acentuação e essencialmente da hifenização poderiam ser diferentes. Contudo,
como já referi, para mim é irrelevante utilizar o AO 90, o antecessor ou
qualquer outro. Poderei seguir a ortografia à luz de acordos precedentes,
incluindo a anterior à Reforma Ortográfica de 1911, se tal for imposto. Poderei
igualmente adotar o mirandês como primeira língua oficial, se assim vier a ser
instituído. Cumpre‑me alinhar sem contestação, dado que a democracia é a
ditadura da maioria, para o bem e para o mal.
Não obstante
as críticas apontadas ao AO 90, considero que, face a todos os regimes
ortográficos passados, o acordo em questão talvez seja o menos
imperfeito – obviamente que este comentário estará imbuído de um
etnocentrismo temporal. Os outorgantes do AO 90 jamais pretenderam fazer
tábua rasa da pronúncia e do vocabulário ancestralmente enraizados em cada
país. O objetivo deles foi tão‑só estabelecer uma única ortografia oficial para
a língua portuguesa – aliás, subsistem casos em que o acordo prevê
dupla grafia, com vista a respeitar o idioma do português luso‑africano e o do
português brasileiro.
Os
discordantes do AO 90 indicam o exemplo dos países anglófonos para
procurar demonstrar que não é preciso qualquer acordo ortográfico para que a
língua seja internacionalmente difundida. É um argumento duvidoso, pois não se
pode ignorar que o contributo decisivo para essa difusão reside na vasta
extensão territorial descontínua do ex‑império britânico, o maior de todos os
tempos – no seu auge, o império português representou quase ⅓ do
império britânico (e o império espanhol aproximadamente ⅔). Isso justifica
grandemente o facto de a língua inglesa – que tem a vantagem de a sua
ortografia não conter acentos gráficos – ser o latim da era
moderna – basta ter presente que é a única língua cujo número de
falantes não nativos excede o de falantes nativos.
Aliás, convém
ter presente que, em prol do crescimento do castelhano, todas as academias da língua
espanhola espalhadas pelo Mundo convergiram o seu entendimento para a
eliminação dos problemas da grafia divergente, cujo resultado culminou,
sobretudo a partir de 1999, na uniformização da respetiva língua. Tratando‑se
de uma uniformização ortográfica – visto que se mantiveram as diferenças
de estilo linguístico entre os diversos países –, todos os livros e
documentos passaram a circular oficialmente no espaço pan‑hispânico sem
necessidade de haver revisões ortográficas adicionais.
Perante o
exposto, parece que o AO 90 – mesmo com dúvidas e
imperfeições – contribuirá inequivocamente para a promoção
internacional do português, desde logo porque após a sua completa entrada em
vigor será possível que a língua moderna de Camões passe a ser reconhecida como
a sétima língua oficial da ONU (juntando‑se assim ao mandarim, inglês,
espanhol, árabe, francês e russo). A existência de duas normas linguísticas
oficiais tem dificultado sobremaneira a elevação da nossa língua ao patamar da
desejada distinção. Sendo o português a quinta língua mais falada no
Mundo – atrás do mandarim, inglês, hindi e espanhol –, é de estranhar
que não seja uma língua da ONU.
É hilariante
continuarmos a assistir ao vivo a espetáculos onde se afundam feridas à volta
das palavras. Os linguistas terão feito o exercício de compreender e explicar a
inevitável e profícua evolução do português. Façamos uma rápida viagem
retrospetiva à ortografia por que passou a nossa língua há apenas um século, e
depois reflitamos se vale a pena insistirmos nas guerras e guerrilhas travadas
à volta do acordo ortográfico.
Com a
implantação da República e a dupla vontade firme de alargar a escolaridade e
combater o analfabetismo, houve a coragem de enveredar por uma rutura
linguística, que consistiu na valorização da vertente fonética da ortografia,
em detrimento da componente etimológica greco‑latina – Reforma
Ortográfica de 1911. O aspeto da língua portuguesa ficou substancialmente
diferente, e no essencial assemelha‑se ao de hoje. Terá sido a favor de
palavras como abysmo (abismo), annuncio (anúncio), diphthongo (ditongo), exhausto
(exausto),
phleugma (fleuma), prompto (pronto) e psalmo (salmo), que vigoravam antes dessa
reforma, que várias individualidades da época se insurgiram, incluindo o genial
poeta Fernando Pessoa.
Com o Acordo
Ortográfico de 1945 – celebrado entre Portugal e o Brasil, ainda que
este o não tenha ratificado – houve modificações que, face ao modo de
escrita de então, pareciam impensáveis à luz dos olhos de hoje (pelo menos para
a maioria da população). Vejamos: êle (ele), ennegrecer (enegrecer), freqùente
(frequente), juxtapor (justapor), sciência (ciência), sôbre (sobre) e teem
(têm). Daí se constata que as alterações ortográficas decorrentes da adoção do
AO 90 não são mais significativas do que quaisquer outras resultantes de
reformas e acordos ortográficos anteriores. Também por isso não fiquei minimamente
beliscado quando abandonei a escrita de palavras como colectivo (coletivo),
crêem (creem), extra‑escolar (extraescolar), heróico (heroico), óptimo (ótimo),
pára‑quedas (paraquedas) e semi‑recta (semirreta). Ao princípio questionava
algumas novas regras; mas como não violavam a minha honra, aceitei‑as conforme
a convenção ditou. Ao contrário dos dogmas, as convenções não ferem a razão.
C. Do saudosismo do Quinto Império à universalidade das ideias
Portugal
sempre foi um país cujo destino tem amiúde medido forças com o saudosismo. A
prisão do passado e a resistência à mudança caracterizam a nossa mentalidade
conservadora. Os movimentos de oposição acérrima ao AO 90 têm apresentado
diversos argumentos – justificados sempre por ideias patrióticas – que
por vezes obrigam a fazer uma viagem de vários séculos, na medida em que
convocam para a sua causa figuras sublimes como o Padre António Vieira e o
Fernando Pessoa.
São pesos de
vulto, de facto. Resta saber se a referência às figuras históricas está
devidamente enquadrada. Continuo a não estar seguro em relação à validade dos
argumentos expostos. O símbolo patriótico e imperial que o Padre António Vieira
terá atribuído à língua portuguesa inserir‑se‑á mais no sentimento de autonomia
perante Castela do que na língua lusitana em si.
Com efeito, a
teoria do Quinto Império profetizada por esse religioso em meados do
séc. XVII – que inclusivamente lhe causou dissabores com a
Inquisição, que o acusou de heresia –, à luz da qual Portugal encabeçaria
um grande império no futuro, constituiu um fator indutor para terminar com a
União Ibérica e culminar na reafirmação do País no Mundo. Logo, julgo que para
o Padre António Vieira a língua portuguesa seria um meio para alcançar um fim.
Ao invés, com
Fernando Pessoa a língua portuguesa era – ou talvez não – aparentemente
um fim em si mesmo, até superior à segurança ou à independência nacionais. Ele,
ou melhor, o seu semi‑heterónimo Bernardo Soares, terá feito da língua quase um
cavalo de batalha. Recorde‑se a citação «minha pátria é a língua portuguesa»,
escrita para se insurgir contra a Reforma Ortográfica de 1911 (e o Acordo
Ortográfico de 1931, entre Portugal e o Brasil, cujo resultado foi
inconsequente, por não ter sido posto em prática).
Tal citação
consta do trecho 259 do Livro do Desassossego: «Não tenho
sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto
sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portugueza. Nada me pesaria que
invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente.
Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve
mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia
simplificada, mas a pagina mal escripta, (...) a orthographia sem ipsilon, como
escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.»
Não há dúvida
que é uma perspetiva algo heterodoxa de patriotismo, apenas compreensível
porque o poeta foi um cidadão supranacional, que utilizou a língua portuguesa
para transmitir a universalidade do seu pensamento extraordinário. O seu
pensamento, livre e espontâneo, estava acima de tudo, designadamente da própria
língua. Como ele confessou no trecho 443 (também do Livro do Desassossego), «Eu não
escrevo em portuguez. Escrevo eu mesmo.» Portanto, parece que para ele a língua
portuguesa não era um fim último mas um veículo de transmissão de pensamento,
este sim, o mais importante. O pouco que (des)conheço de Fernando Pessoa
permite‑me concluir que para o entender não é necessário que nos fixemos na
ortografia usada no tempo em que ele escreveu, aliás bem diferente da de hoje.
O que
distingue os povos não é a língua ou o idioma que cada um emprega mas sim as
suas ideias. A dimensão de um país mede‑se pelo grau de universalidade das
ideias da sua gente. As palavras são uma forma de expressão das ideias, tão
digna como outras, nomeadamente a arte ou a fé – no sentido de
convicção, e não tanto de religião. Assim sendo, visto que a língua, a arte e a
fé são a sintaxe do pensamento, é escusado desperdiçar muita energia com as
formas de manifestá‑lo. Concentremo‑nos, sim, no pensamento em si.
D. Notas finais
Apesar de eu
não ficar ofendido com a acusação de termos ido a reboque do
Brasil – ou de qualquer país da CPLP –, reconheço que o nosso
País foi imprudente relativamente à gestão do processo de introdução do
AO 90. Fomos cândidos por termo‑nos vinculado antes dos demais Estados. O
processo deveria ter sido concertado entre todos os outorgantes e adequadamente
acompanhado, e não ter‑se cingido às boas intenções de outrem. Não obstante,
julgo que agimos de boa‑fé. Fizemos o nosso papel; os outros farão o seu. Sem
querer pôr as mãos no fogo, creio que o bom‑senso prevalecerá e a razoabilidade
dos objetivos do acordo dissiparão os atritos que os têm circundado.
É
injustificada a polémica à volta da subalternização ou não de Portugal face ao
Brasil, pois nada favorece a credibilidade que o acordo exige. A abordagem de
vencedores e perdedores é simplista e redutora da realidade. Não é muito
racional ver o acordo como uma conta de ganhos e perdas, ou seja, se o número
de lemas modificados na norma ortográfica brasileira é maior ou menor do que
acontece com o número na norma europeia. É um facto que, na sequência da
aplicação do acordo, menos de ¼ do total de lemas alterados se referirá à norma
brasileira. Se tivermos em consideração que aproximadamente 80% da população da
CPLP é brasileira, conclui‑se que a fração de ¼ é adequada.
Para além
disso, de modo a aferir o quão colossal é o Brasil, convém ter presente que é a
quinta nação mais populosa do Mundo – atrás da China, da Índia, dos
Estados Unidos e da Indonésia. Enquanto a população portuguesa se cifra em 2%
do número de habitantes da União Europeia, a população brasileira representa
mais de ⅓ e quase ¾, respetivamente dos habitantes da América
Latina – que inclui o México, o 11º país mais populoso – e
do espaço Mercosul. Segundo dados do Fundo Monetário Internacional e do Banco
Mundial, o Brasil é um dos sétimos países mais ricos (de acordo com o valor do
PIB em paridade do poder de compra) – a par do Reino Unido e da França,
e depois dos Estados Unidos, da China, da Índia e do Japão, da Alemanha e da
Rússia. Portanto, com o AO 90 não há países perdedores; a única vencedora
é a lusofonia. Como português, sinto‑me honrado de pertencer a uma comunidade
que integra um país como o Brasil – longe de mim pretender com isto
desprimorar a importância dos outros países, sublinhe‑se.
A
uniformização é o único caminho do futuro e do progresso da língua portuguesa.
Foi nesse contexto que os oito países da CPLP assinaram o AO 90. Angola
ainda não o ratificou – será brevemente, atendendo a que a
ratificação estava prevista para março de 2013. Dos sete que ratificaram, em
três – Brasil, Cabo Verde e Portugal – já se deu início à
entrada em vigor, embora apenas em Portugal tal tenha sucedido efetivamente.
Não parece muito sensato admitir‑se agora reverter tudo o que foi feito, só por
Angola ainda não ter ratificado o acordo e por o Brasil ter decidido alargar
para 2016 o período transitório para a sua entrada em vigor.
Em Portugal
impôs‑se o AO 90 aos alunos – como indicado
anteriormente –, até quando os seus encarregados de educação se opuseram
de maneira tenaz. A mesma imposição ocorreu para as entidades estatais. Os
principais órgãos de comunicação social adotaram as novas regras ortográficas.
Encontramo‑nos a cerca de um ano e meio do final do período de transição para a
sua integral entrada em vigor. A adaptação gradual ao acordo tem sido efetuada
de forma tranquila e eficaz.
Assim, seria
estranho sonhar que, volvidos dois anos após terem obrigado os portugueses – com
destaque para a comunidade educativa – a entrar no comboio
ortográfico, os atirassem pela janela com ele em andamento e em alta
velocidade. Os cidadãos – pelo menos os milhões que, por obrigação ou
por sua iniciativa, já se regem pelo novo acordo – pedem decoro aos
parlamentares. O prestígio da Nação e da língua portuguesa dispensam chacotas e
humilhações e está incomparavelmente acima dos vis interesses partidários. Ao
contrário do que acontece na aritmética, na vida real os erros não são simétricos.
Nada resolve corrigir erros com erros adicionais. Pelo contrário: agravam‑se.
Seria tentar apagar um fogo com gasolina.
Acabo como
comecei: não me cairiam os parentes na lama com a imposição de qualquer outro
acordo. Não obstante, se a teimosia imperar, e se me for também permitido
entrar nas áreas da ficção e do burlesco, gostaria de manifestar a minha
opinião, de que poderia ser útil fazer mais petições linguísticas. Todas as
(re)petições seriam democráticas. Duas poderiam ser acrescentadas: elevar automaticamente
o mirandês a primeira língua oficial em Portugal; e referendar sobre se a
segunda língua deveria ser o português pré ou o pós‑AO 90.
31
de dezembro de 2013
