Mostrar mensagens com a etiqueta Justiça. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Justiça. Mostrar todas as mensagens

domingo, 9 de agosto de 2020

Relação entre justiça e desenvolvimento – O contributo dos militares



Enquanto procurava um documento de que necessitava, cruzei‑me com uma pasta na qual existiam vários papeis relacionados com uma dívida de um ex‑proprietário (de uma fração de um prédio) perante o condomínio. Mesmo sendo uma dívida face à qual eu era apenas um dos seis interessados – e para mais reportando‑se a dívida a um período em que nada tinha a ver com o prédio, por ainda não pertencer ao condomínio –, fiz várias diligências e tentativas, presenciais e telefónicas, para que o incumpridor regularizasse a sua conta. Em vão.
Peguei então em mim e fui ao local de trabalho desse ex‑proprietário, na altura um major das Forças Armadas. Ele não se encontrava no local, pelo que pretendi falar com o responsável hierárquico, que direcionou o assunto para a sua secretária. O acontecimento reporta ao final de 2006.
Pouco depois, recebi de uma advogada uma cartazita de duas páginas pouco preenchidas – com somente 24 curtas linhas bem espaçadas e com diversos erros ortográficos –, a ameaçar-me com a possível abertura de um processo de queixa‑crime por difamação (por ter ido ao local de trabalho do militar tentar cobrar a dívida). Respondi‑lhe no final de janeiro de 2007 com uma cartazona (de 18 páginas – das quais sete referiam‑se a anexos –, perfazendo 518 linhas), que até hoje continua a aguardar uma resposta, nem sequer uma única linha a acusar a receção.
Passados uns meses, em meados de junho, remeti‑lhe outra carta – na qual escrevi apenas que «No dia 26 de Janeiro p.p. enviei a V. Exa. uma missiva, como resposta à sua carta do dia 2 desse mês. Como ainda não houve qualquer tipo de contacto por parte de V. Exa., venho por este meio solicitar‑lhe que me possa informar sobre a decisão do seu cliente relativamente ao processo epigrafado» [«Assunto: Processo da dívida do Senhor X ao condomínio»] –, que também não granjeou qualquer resposta.
Dado que o condomínio passou a ser gerido por uma empresa, dei a esta a informação das “etapas” por mim desencadeadas (acerca da minha relação com o major e a sua advogada), de modo a que ela atuasse de modo a que o militar regularizasse a sua dívida de uns míseros 480€ ao condomínio (referentes aos anos de 2001 a 2004). Como os condóminos não mostraram grande interesse em resolver o assunto, e em virtude de a dívida não ser perante mim e referir‑se a um período em que eu não era proprietário, nada mais efetuei.
Em rigor, «nada mais efetuei» não é a expressão correta. O assunto em apreço, marcadamente do foro privado, valeu por ter‑me obrigado a refletir sobre a atitude do militar caloteiro. Por outras palavras: a resignação do condómino transformou‑se numa breve reflexão sobre um aspeto específico da justiça. O título do presente post é igual ao assunto de uma carta que remeti em abril de 2007 ao Ministro da Justiça, da qual dei conhecimento na mesma data ao Ministro da Defesa Nacional, tendo os respetivos chefes do gabinete a gentileza de agradecer o envio da minha carta.
Felizmente de então para cá muito melhorou na justiça, e em concreto no tocante ao processo de arbitragem na esfera da justiça. Talvez não tenha melhorado tanto como propus e, acima de tudo, como o País continua a precisar, mas haja esperança para que as mudanças se operarem mais depressa do que a programada passagem contínua do tempo. Passo a transcrever a reflexão partilhada com os dois ministros.
«
Exmo. Senhor Ministro da Justiça,
A presente carta tem por objectivo partilhar com V. Exa., digníssimo responsável pela pasta da Justiça do nosso País, algumas perspectivas sobre a relação entre justiça e desenvolvimento económico e social, por um lado, e sobre os deveres cívicos dos militares, por outro. Pretendo também, em especial, apresentar de forma resumida algumas propostas concretas relativas ao contributo da classe militar para a melhoria do sistema judicial.
Subjacente a essas propostas está a minha ideia de que os militares devem reger‑se por regras que não se resumam apenas à esfera militar; julgo que eles devem cumprir escrupulosamente os valores gerais da sociedade civil. Mesmo fora do exercício das suas funções profissionais, penso que actualmente os titulares de cargos militares têm o dever de actuar de forma condigna com os princípios que devem ser cumpridos na vida militar. Acho, por exemplo, que os militares têm a obrigação de defender o nome e os valores da instituição a que pertencem. Entendo que a extensão dessa obrigação a outras áreas – entre elas as relacionadas com o respeito dos valores cívicos universais – seria benéfica tanto para a sociedade portuguesa como para as Forças Armadas.

A. Sistema judicial como elemento fundamental do desenvolvimento
Muito se tem dito e escrito sobre a relação entre o sistema judicial e o desenvolvimento dos países. É reconhecido que a eficácia desse sistema é uma variável explicativa do desenvolvimento. A relação entre a justiça e o desenvolvimento tem sido objecto de preocupação de vários Governos, bem como de reconhecidas organizações internacionais.
A este propósito, pode dar‑se como exemplo a Resolução do Conselho de Ministros n.º 122/2006, donde podem ser retiradas algumas observações:
·      Um dos objectivos do Governo para esta legislatura [a que vigorava em 2007] é garantir a efectividade dos direitos e deveres e tornar o sistema de justiça um factor de desenvolvimento económico e social, o que implica uma reformulação do sistema judicial;
·      Um dos meios para alcançar esse objectivo é combater o descongestionamento dos tribunais;
·      A reformulação do sistema judicial terá de passar por uma maior celeridade e eficácia relativa ao sistema de cobrança de dívidas;
·      É dada igualmente prioridade ao fomento de mecanismos alternativos de resolução de litígios.
Está provado que a ineficácia dos sistemas judiciais, tal como os baixos níveis de transparência das autoridades públicas, são grandes factores de descrédito dos países, de afastamento do investimento e de atribuição de risco soberano e, por isso, constituem entraves efectivos ao aumento da competitividade, à criação de emprego e, assim, ao desenvolvimento. Por se tratar de matérias que afectam directamente o desenvolvimento económico dos países, têm sido abordadas inclusivamente pela própria OCDE. Através da leitura de um relatório (de Abril de 2006) sobre Portugal, elaborado por essa organização internacional, conclui‑se que existe necessidade de serem criados mecanismos mais eficazes que permitam um ambiente mais dinâmico no mundo dos negócios. Penso que o Governo tem estado atento a esta matéria, e nesse sentido tem tentado reestruturar o sistema judicial, por forma a credibilizar as relações jurídicas no nosso País.
A especialização dos tribunais e a criação de mecanismos alternativos de resolução de litígios são duas reformas do sistema judicial português que têm sido apontadas como necessárias.

B. Exemplos de propostas a aplicar no âmbito da esfera militar
Tendo em consideração os efeitos do sistema judicial no desenvolvimento nacional, bem como a conduta cívica que deve estar intrínseca aos profissionais militares, gostaria de apresentar a V. Exa. três propostas articuladas, as quais podem contribuir para aproveitar os recursos disponíveis de modo mais eficiente e aumentar a eficácia da justiça. Contribuem, ao mesmo tempo, para o reforço do prestígio dos profissionais militares e para o reconhecimento crescente da classe militar por parte da sociedade civil.
As propostas consistem num sistema integrado de resolução de litígios de pequena ou média importância em que pelo menos uma das partes seja militar – propostas B.1, B.2 e B.3 seguidamente explicadas. Pretende‑se que este sistema funcione como um mecanismo dissuasório de acesso aos tribunais, permitindo portanto uma melhor utilização dos recursos afectos ao aparelho judicial, e para além disso pretende‑se que enriqueça o exercício do dever cívico dos militares. Como se depreenderá, os profissionais com genuíno espírito militar nada têm a recear dessas propostas.
Nos últimos dois parágrafos da secção D da presente carta são também mencionados muito sucintamente outros mecanismos alternativos de resolução de litígios quando estejam envolvidos militares.

B.1. Tribunais arbitrais cíveis para litigantes militares
Os quadros seguintes sintetizam a minha proposta. No quadro 1 é comparada a proposta com o regime actual de funcionamento dos tribunais arbitrais. O regime proposto aplica‑se somente aos casos onde pelo menos uma das partes envolvidas seja um profissional militar[1]. O quadro 2 ilustra o regime aplicável – o “Regime actual” ou o “Regime proposto”, de acordo com a terminologia constante desse quadro –, em função da natureza (civil ou militar) quer da parte que solicita a utilização desses tribunais, quer da outra parte.

Quadro 1

Regime proposto
Regime actual
Forma de utilização
Utilização obrigatória dos tribunais arbitrais, se uma das partes for militar e qualquer uma das partes a solicite
Utilização voluntária dos tribunais arbitrais, se ambas as partes assim decidirem[2]
Pagamento das custas
Custas assumidas pela parte perdedora
?[3]

Quadro 2

Outra parte
Civil
Militar

Parte que solicita a utilização dos tribunais arbitrais
Civil
(a) Regime actual
(b) Regime proposto
Militar
(c) Regime proposto
(d) Regime proposto

O funcionamento proposto para esses tribunais seria simples. Se uma das partes envolvidas fosse militar, a outra parte – seja civil ou militar – poderia accionar este mecanismo ágil para dirimir os litígios, e as custas seriam suportadas pela parte perdedora.
A característica que considero mais importante nesta proposta reside no direito de apenas uma parte solicitar a intervenção desse tipo de tribunais arbitrais, independentemente da vontade da outra parte[4]. Como se conclui pela análise do quadro 2, com o “Regime proposto” o direito de solicitar a utilização desse tipo de tribunais arbitrais teria dois sentidos: (i) o direito de um civil ou um militar solicitar a intervenção desses tribunais, independentemente da vontade da outra parte, mesmo sendo um militar – células (b) e (d) –; e (ii) o direito de um militar solicitar a intervenção desses tribunais, independentemente da vontade de um civil ou de um outro militar – células (c) e (d). Na subsecção B.3 serão retomados esses dois tipos de situações (i) e (ii), para concretizar exemplos aí apresentados.
Assim sendo, a utilização obrigatória de tribunais arbitrais destinados exclusivamente a litígios relacionados com matérias de índole civil de pequena ou média importância (sendo pelo menos uma das partes um cidadão militar) podia traduzir‑se na poupança de recursos judiciais. Este tipo de tribunais constituiria uma fase anterior e de triagem em termos de acesso aos tribunais comuns. Veja‑se a situação (i) indicada no último parágrafo. Não dependendo da vontade dos militares a utilização desses tribunais arbitrais, seria de esperar que, antes da outra parte solicitar tal utilização, os profissionais das Forças Armadas não se submeteriam ao processo judicial quando sentissem que não tinham a razão do seu lado[5].
Haveria que definir o conceito de «matérias de índole civil de pequena ou média importância», mas neste momento isso é pouco relevante. O mais importante é que, por essa via, aumentar‑se‑ia a eficácia dos tribunais comuns e a eficiência dos meios existentes, pois afastar‑se‑iam dos tribunais comuns – e até mesmo desses tribunais arbitrais – a grande maioria dos casos que, por nítida falta de bom senso (seja dos civis ou dos militares), hoje em dia só é possível resolver com burocracia, advogados e recursos judiciais.
Pode parecer ambiciosa a concretização desta medida, e à partida poderia causar algum incómodo no seio da classe militar – sobretudo devido à situação (i) já indicada –, pois constituiria uma enorme alteração nas relações entre os militares e a sociedade civil em matérias que não são exclusivamente da esfera militar. Penso contudo que a medida, em articulação com as duas outras propostas a seguir apresentadas, enalteceria o prestígio dos militares e a imagem carismática que o País tem tido em relação aos elementos das Forças Armadas.
De qualquer modo, como forma de atenuar ou dissipar o eventual incómodo atrás referido, seria admissível que esses tribunais arbitrais estivessem sob a alçada militar. Mas seria um assunto a aprofundar.
Parece que à luz do actual regime, os militares, tal como os demais cidadãos, podem “refugiar‑se” nos tribunais (i.e., nos tribunais comuns) para poderem incumprir os seus deveres cívicos mais elementares, favorecendo portanto o aumento do número de processos nos tribunais (e por vezes a prescrição dos mesmos) e, consequentemente, a afectação ineficiente dos recursos utilizados.

B.2. Recurso aos tribunais comuns
Mesmo que as decisões dos tribunais arbitrais não merecessem consenso entre as partes litigantes, seria sempre possível recorrer aos tribunais comuns, tal como creio que agora acontece. Contudo, com a criação de tribunais arbitrais cíveis para litigantes militares, a possibilidade de recurso aos tribunais comuns funcionaria como uma segunda etapa do processo judicial; a primeira seria o recurso aos tribunais arbitrais.
Hoje em dia, em caso de falta de entendimento e de vontade das partes para resolver os problemas de forma mais simplificada – incluindo através dos tribunais arbitrais que já existem –, o processo judicial propriamente dito inicia‑se nos tribunais comuns. Com a proposta atrás apresentada, libertavam‑se dos tribunais comuns inúmeros processos, podendo por isso ser bastante melhorado o uso racional dos recursos humanos e materiais do sistema judicial português. Tratando‑se de processos onde pelo menos uma das partes seja militar, e visto que a primeira etapa seria feita obrigatoriamente através dos mencionados tribunais arbitrais, só seria possível o recurso aos tribunais comuns se fosse esgotada a oportunidade de resolver os problemas num nível inferior.
V. Exa. permita‑me afirmar que, para matérias de índole civil de pequena ou média importância, sendo pelo menos uma das partes um militar, com o recurso de primeira ordem vinculativo para os tribunais arbitrais e de segunda ordem para os tribunais comuns, as sentenças seriam mais céleres, deixaria de haver tantas prescrições e elevar‑se‑ia a credibilidade da nossa justiça. Isto porque com o novo regime o bom senso emergiria, permitindo resolver muitos litígios sem o recurso aos tribunais (arbitrais ou comuns).

B.3. Sistema de avaliação dos militares e progressão na carreira
Considero que, para a avaliação dos profissionais militares e a respectiva progressão na carreira, devem estar presentes tanto o exercício das suas funções como o cumprimento dos deveres cívicos elementares que, sendo transversais a qualquer cidadão, têm de ser verificados em permanência por qualquer militar.
Veja‑se o seguinte caso – ainda que talvez possa não ser considerado de pequena ou média importância, mas sim de grande importância. Entre dois militares com as mesmas competências, qualificações e classificação no cumprimento de objectivos relacionados com as suas funções militares, se um deles estiver envolvido num processo de corrupção – ainda que efectuado no âmbito estrito da sua vida civil –, espera‑se que não deva ter igual tratamento face ao profissional que não está envolvido nesse tipo de processos.
As decisões dos tribunais comuns ficariam registadas no processo do militar, e poderiam funcionar como (de)mérito a considerar para efeitos da sua avaliação e progressão na carreira. Numa situação de divergência entre dois litigantes (em que pelo menos um deles é militar) relacionada com matérias de índole civil de pequena ou média importância, e onde seja necessário envolver tribunais arbitrais, se as decisões destes tribunais fossem objecto de recurso para os tribunais comuns, e as decisões destes últimos fossem no mesmo sentido das dos tribunais arbitrais, então parece facilmente poder identificar‑se qual a parte que tem razão.
Veja‑se o caso de uma situação do tipo (i) indicada no terceiro parágrafo da subsecção B.1 em que os tribunais reconhecem que um militar está nitidamente desprovido de razão[6]. Neste caso, visto que aos militares em geral é exigível uma visão racional e objectiva dos factos, há que equacionar se a falta de razão e de bom senso – que é reconhecida tanto pelos tribunais arbitrais como pelos tribunais comuns – não pode afectar a postura que esses profissionais devem ter mesmo no seio das funções militares.
Veja‑se outro exemplo meramente ilustrativo duma situação do tipo (i): um militar que, na sua vida civil, é propenso a envolver‑se frequentemente em rixas ou desacatos, que prejudicam outras pessoas (independentemente de serem civis ou militares). Considerando as propostas já apresentadas, parece lógico que, se esse militar se recusar a pagar os prejuízos causados às outras pessoas, e se as sentenças dos tribunais forem no sentido de que deve pagar, então o referido militar tem uma conduta incorrecta que é socialmente reprovável e não compatível com a função militar que desempenha e, por isso, em termos profissionais deve ser preterido face aos colegas que têm uma conduta exemplar.

C. Conduta cívica dos militares
O enfoque neste momento será dado às situações do tipo (i) já mencionadas, ou seja, quando um civil ou um militar pode solicitar a intervenção dos tribunais arbitrais, qualquer que seja a vontade do militar acusado. Como se depreende do que até aqui foi exposto nesta carta, a conduta cívica dos militares seria, por excelência, uma das matérias a ser incluída no âmbito dos mecanismos propostos na secção B.
De facto, a sociedade civil confere aos militares direitos específicos mas, para além disso, espera que eles dêem o exemplo em certas matérias. Nesse contexto, apesar de os militares serem pessoas como as restantes, têm um dever de respeitar rigorosamente a lei acima dos demais cidadãos. Por outras palavras: os militares estão para os civis assim como o Estado está para o povo, ou um pai está para os filhos.
Há regras que são exclusivamente de índole militar; e digamos que isso é uma matéria do Código Militar. De forma diferente devem ser vistas as regras do Código Civil, as quais devem ser seguidas por qualquer cidadão, seja militar ou não. Por outro lado, os portugueses têm associado a postura dos militares à ideia de que estes cumprem os deveres cívicos elementares, essenciais para a desejável vivência em sociedade.
É sob a necessidade de não violar este princípio fundamental que se deve evitar que condutas incorrectas por parte dos militares possam afectar a imagem consuetudinária que se tem das Forças Armadas, no que tocante ao cumprimento da ordem e dos bons costumes.
Entende‑se por isso que tentar reforçar a articulação dos profissionais militares com a sociedade civil e, em simultâneo, fortalecer ainda mais a ideia criada tradicionalmente sobre esses profissionais enquanto pessoas exemplares na sua conduta e postura são objectivos compatíveis com a melhoria da relação entre justiça e desenvolvimento.

D. Um caso concreto
O meu pai, um pacato aldeão, cumpriu o serviço militar obrigatório na década de 60. Certa vez um colega soldado, um astuto lisboeta de um bairro social, pediu‑lhe dinheiro emprestado, e o meu pai na sua boa‑fé emprestou‑lhe, tendo ficado acordado que o dinheiro seria devolvido no mês seguinte. Quando o colega recebeu o pré – era este o termo usado para designar a remuneração auferida pelos soldados que cumpriam o serviço militar obrigatório –, “esqueceu‑se” da dívida e do que tinham combinado. O meu pai pediu‑lhe o dinheiro. O colega disse‑lhe que não podia devolver o dinheiro nessa altura, tendo então ficado combinado que a dívida ficaria regularizada no próximo mês. Veio o outro mês, e o incumprimento repetiu‑se. Foi necessário o meu pai dirigir‑se ao comandante da companhia para que a dívida fosse liquidada. A liquidação foi feita imediatamente através do desconto no pré desse colega.
Este caso permite concluir que, mesmo tratando‑se de um problema que não era do foro militar, o superior hierárquico dispôs do poder suficiente para resolver o assunto que envolvia dois soldados de uma forma simples e célere (não sendo portanto necessário recorrer aos tribunais).
A questão que agora faço é a seguinte: hoje em dia será possível resolver os problemas particulares (i.e., relacionados com assuntos não exclusivamente militares, e também com casos iguais aos de há mais de quatro décadas) de um modo tão eficaz como nesse tempo?
Se sim, pode equacionar‑se por que não alargar essa possibilidade aos casos em que uma das partes não é um militar. Ou seja, a forma rápida e expedita de resolução de problemas quando as duas partes envolvidas são militares poderia ser extensível aos casos em que apenas uma parte é militar e a outra é civil. Seria um mecanismo alternativo de resolução de litígios que contribuiria para descongestionar os tribunais. Tal como há mais de quarenta anos atrás, continuam a existir militares – sejam milicianos ou do quadro permanente – que se “esquecem” de honrar as suas dívidas.
Se não, seria conveniente adoptarem‑se mecanismos ágeis que permitam evitar a crónica tentativa de resolução de problemas (simples) só através da intervenção dos tribunais. A proposta apresentada em B.1 seria uma alternativa simples. Outra alternativa seria retomar a tradição, dotando o sistema militar de formas que permitam agilizar a resolução de pequenos ou médios litígios entre os militares. Para além disso, seria extremamente útil, como atrás referi, alargar às situações onde apenas um dos litigantes seja militar, sob pena de, para litígios relativos a pequenas dívidas – do género do que aconteceu com o meu pai – e outros processos pouco materiais, incorrer‑se no risco de abusar dos tribunais, provocando o seu congestionamento.

E. Considerações finais
A justiça é um serviço público que deve ser eleito como prioritário por Portugal, por tratar‑se de um pulmão do desenvolvimento nacional. Também da justiça depende a qualidade do ar que o País respira. “Faça‑se justiça” é uma expressão popular que deve ser rigorosamente cumprida, para o bem de todos. Só que fazer justiça não é usar os tribunais como meio de protelar o cumprimento das obrigações. Isso é servir‑se da justiça, desperdiçando recursos, e agravando o interesse colectivo.
Mas mais grave do que este desperdício é usar os recursos judiciais na expectativa de que a outra parte se resigne perante o atraso das sentenças proferidas pelos tribunais ou até perante a prescrição dos processos em tribunal, acabando por não se fazer justiça. Trata‑se de um risco moral que, apesar de se estar a introduzir de forma subconsciente, tem sido vulgar no sistema judicial português, e que em sociedades verdadeiramente democráticas deve ser eliminado.
Outra característica paralela, e também potencialmente grave do nosso sistema judicial, consiste na selecção adversa relativa ao acesso aos tribunais. A inércia da justiça, materializada no atraso das sentenças e na prescrição dos processos, pode afastar dos tribunais muitos cidadãos e empresas, por uma questão de descrédito no sistema, o que afecta bastante a confiança depositada na justiça, em particular, e em geral na justiça portuguesa. A perda generalizada de confiança descredibiliza o País e tem efeitos negativos galopantes no desenvolvimento económico, porque condiciona profundamente as decisões dos investidores.
Só com a mudança radical do hábito culturalmente enraizado de que tudo (somente) se resolve em tribunal é que se criam as verdadeiras condições favoráveis ao investimento e desenvolvimento económico e social. Nesta árdua tarefa todos os passos são necessários e bem‑vindos, por pequenos que possam parecer.
Estando grato pela atenção dispensada, subscrevo‑me de V. Exa. com os melhores cumprimentos.
»



[1] Quando não estiverem envolvidos litigantes que sejam militares, continuar‑se‑iam a adoptar as regras vigentes aplicáveis aos tribunais arbitrais. Trata‑se da situação correspondente à célula (a) do quadro 2, preenchida com “Regime actual”.
[2] Não tenho a certeza.
[3] Desconheço.
[4] Pelo facto de a utilização desses tribunais não depender da existência de acordo das partes, pode colocar‑se a questão de saber se, formalmente, os tribunais arbitrais existentes podem resolver os casos onde não existe consenso para recorrer aos tribunais.
[5] Tem‑se subjacente que, por inerência ao espírito militar, os profissionais das Forças Armadas evitariam avançar para tribunal com os processos onde eles estivessem envolvidos e em que eles próprios reconheceriam estar desprovidos de razão.
[6] Esse militar correspondente à “Outra parte” inscrita no quadro 2 constante de B.1 (e não o militar referente à “Parte que solicita a utilização dos tribunais arbitrais”).


domingo, 26 de julho de 2020

Dos sofismas constitucionais à explosão da injustiça (Documento completo)




David Dinis(2)

A. Âmbito da abordagem


Recentemente publiquei um texto que versou sobre os direitos adquiridos – intitulado Os direitos adquiridos e a (dis)função sindicaldos tempos modernos –, no qual relacionei o assunto das indemnizações por despedimento com a implícita perspetiva sindical no que se refere aos direitos dos trabalhadores. Relativamente ao mesmo assunto, trouxe à colação, ainda que de forma ligeira, o entendimento dos constitucionalistas acerca dos direitos adquiridos. Agora irei abordar este tipo de direitos procurando fazer uma introspeção ao raciocínio dos constitucionalistas, com o objetivo de concluir que, contrastando com a ideia de alguns cidadãos, a opinião deles talvez não provenha de formulações subjetivas nem de juízos valorativos orientados por critérios políticos, mas antes de pressupostos a precisar de revisão.
Os direitos adquiridos constituem uma espécie atualizada, com as devidas adaptações, do conto A Palavra Mágica, escrito por Vergílio Ferreira, em que quase todos utilizavam incorretamente a palavra inoque – ou noque, para os mais preguiçosos na dicção. Constituía uma palavra mal‑afamada, associada a múltiplos sentidos negativos que a ignorância brotava. O esclarecimento somente foi superior mas não definitivamente obtido quando as desavenças causadas pelo uso e abuso ofensivo do vocábulo acabaram na barra do tribunal, onde os juízes desvendaram que na génese da discórdia estava – passo a redundância – o inofensivo significado da palavra inócuo.
Contudo, ao invés do conto, no qual os juízes desbloquearam o mistério do (i)noque, no caso dos direitos adquiridos parece que nem mesmo os profissionais da justiça dispõem de engenho para descobrir a ponta do ensarilhado novelo – às vezes, pelo contrário, fica‑se com a ideia que até acrescentam nós, como se os atuais fossem insuficientes. Creio que essa descoberta da ponta do novelo não seja possível com o recurso à lógica ou à metafísica, restando portanto acreditar que apenas será alcançada mediante soluções divinas, mágicas ou, em última instância, cartomantes que levem aqueles doutos profissionais a mudar de posição.
Na próxima secção relaciona‑se a atribuição das subvenções vitalícias com o reconhecimento dos direitos adquiridos. De facto, para realizar o exercício introspetivo avançado na parte final do primeiro parágrafo, nada melhor do que utilizar uma matéria – as subvenções mensais vitalícias – para tentar mostrar que existirão juízes do Tribunal Constitucional que, apesar de poderem estar expostos a uma situação de conflito de interesses, têm atuado de forma isenta e coerente, afastando portanto qualquer dúvida quanto aos critérios que orientam os seus pareceres vinculativos – escrevi «poderem estar expostos», na eventualidade de haver juízes desse tribunal na vida ativa que venham a usufruir de subvenções vitalícias.
Posteriormente enquadrar‑se‑ão tais subvenções e demais exemplos tanto no que concebo ser o entendimento dos constitucionalistas em relação aos direitos adquiridos, como no meu próprio entendimento. Admito que, nalgumas ocasiões, os pareceres dos constitucionalistas, incluindo os dos juízes do Tribunal Constitucional, assentam em premissas incorretas. Noutras, julgo que, não estando interiorizados determinados conceitos fundamentais referentes à racionalidade económica, as suas decisões são distorcidas, por mais digna e esforçada que seja a suprema vontade de alcançarem a justiça.
Apresentados e explicados os exemplos, abordarei depois os dois princípios que constituem os alicerces dos direitos adquiridos em Portugal – os princípios da não retroatividade e da confiança. Terminarei com algumas reflexões adicionais acutilantes sobre os direitos adquiridos, tentando justificar como os contrastes e a injustiça entre os portugueses têm sido fomentados pelas interpretações que os constitucionalistas têm formulado e pelas posições que outros atores têm defendido.

B. Subvenções mensais vitalícias


Antes de mais, cumpre‑me sublinhar que sou dos poucos a considerar que os políticos devem ser bem remunerados, visto serem os representantes da Nação e por estarem permanentemente expostos à mesquinha inveja e à vil devassa da sua vida privada. Não pretendo com isto defender a ideia de que são mal remunerados. Hoje e no passado, uns auferem e auferiram muito acima quer da competência, responsabilidade e idoneidade demonstradas, quer da utilidade prestada ao povo, enquanto com outros passa‑se o oposto.
As subvenções mensais vitalícias – vulgarmente designadas por pensões dos políticos –resultam(avam) de uma lei aprovada no mês do 11.º aniversário da Revolução dos Cravos, abrangendo não só os membros do Governo e os deputados à Assembleia da República – os políticos puros –, como igualmente os juízes do Tribunal Constitucional não qualificados como magistrados de carreira – os políticos juízes. Dez anos mais tarde, em 1995, a recompensa atribuída aos políticos e aos juízes do Tribunal Constitucional foi extensível ao governador e aos secretários adjuntos de Macau(3).
Também aqui não ouso cair na acusação fácil de arrasar o objetivo da criação das subvenções concedidas aos titulares de cargos políticos. Reconheço que a visão romântica do serviço voluntário prestado à Nação, posta em prática egregiamente pelo honroso jurista e político Manuel Fernandes Tomás até às suas últimas gotas de energia e amor pátrio, é dificilmente compaginável com os tempos modernos. Apenas num cenário imaginário de refundação do nosso sistema social e político se admitiria o aparecimento desse género de voluntariado(4).
Com a lei inicial de 1985, para ter direito à subvenção seriam precisos tão‑somente oito anos de serviço político, consecutivos ou interpolados, prestados após 25 de abril de 1974. Dez anos volvidos, o tempo necessário passou de oito para 12 anos. Em 2005 revogou‑se definitivamente a lei das subvenções vitalícias, embora tenha sido fixado um período transitório até 2009, ano do fim da legislatura, para salvaguardar os direitos de um conjunto de deputados – ou seja, continuaram a ser elegíveis os anos de serviço desempenhados pelos mencionados políticos puros e políticos juízes, desde que nesse ano de 2009 eles tivessem exercido funções durante 12 anos completos(5).
Devo todavia pronunciar‑me em relação às subvenções vitalícias no âmbito dos direitos adquiridos. Não existe explicação lógica para que alguns estejam a receber subvenções pelo exercício de cargos políticos durante oito anos, tendo para outros sido exigidos 12 anos, enquanto para os restantes não foi nem será reconhecida semelhante benesse pelo desempenho de funções análogas. A assimetria resultante da aplicação dos direitos adquiridos ao caso em apreço torna‑se mais caricata porque os políticos – puros e juízes – ainda não reformados ou aposentados – que em 2009 haviam cumprido o prazo elegível de 12 anos – têm o direito de vir a solicitar as subvenções vitalícias. Por outras palavras: para alguns políticos que estão no ativo prevalecem umas regras e para outros, também no ativo, existem regras totalmente diferentes. Não é lógico; mas certamente é constitucional(6).
Para os magnos protetores da nossa Constituição, admito que será inconstitucional a medida de reduzir significativamente o valor das subvenções mensais, porquanto desonrará os direitos adquiridos das pessoas que as recebem ou que já adquiriram o direito às mesmas. Não foi no entanto inconstitucional que, com o Orçamento do Estado de 2011, continuasse a ser possível a acumulação de subvenções com salários do setor privado e ficasse vedada a acumulação tratando‑se de vencimentos do setor público. Não me atrevo a pensar que a identificação dos direitos adquiridos esteja sujeita a regras opacas ou aleatórias; assumo antes que os critérios empregues são de impercetível alcance para os cidadãos. Em democracia convém que as regras sejam entendíveis pela maioria das pessoas; senão coloca‑se a vontade justificável de querer saber de que estirpe de regime democrático se está em presença.
Ainda, e relativamente ao facto de a lei das subvenções vitalícias ter incluído, para além dos políticos propriamente ditos, (apenas) os juízes do Tribunal Constitucional não qualificados como magistrados de carreira, cumpre informar que os restantes juízes desse tribunal têm um estatuto autónomo. Com a Lei nº 85/89, de 7 de setembro, foi aditado à lei orgânica do tribunal – a original Lei nº 28/82, de 15 de setembro – o regime de previdência e aposentação dos juízes do Tribunal Constitucional – artigo 23º‑A –, segundo o qual se dispõe que estes podem requerer a aposentação voluntária, sem necessidade de apresentação a junta médica, após 12 anos de serviço (i.e., exercício das funções de juiz do Tribunal Constitucional), independentemente da idade, ou após 10 anos de serviço, se tiverem pelo menos 40 anos de idade. Os partidos políticos hegemónicos da lusa democracia disporão da inequívoca explicação para a existência desse estranho e dogmático regime. Afastando a ideia de ser irónico, penso tratar‑se de uma das raras áreas onde terá sido celebrado tacitamente um pacto de regime entre os mencionados partidos. É uma das ocasiões em que o melhor e mais audível comentário se resume simplesmente a não comentar.

C. Perspetiva dos constitucionalistas

C.1. Escala de direitos adquiridos


Em Portugal legisla‑se sobre quase tudo – independentemente da melhor ou pior qualidade da legislação, e da maior ou menor aplicação eficaz das leis por parte dos tribunais. Contudo, nunca se legislou o bom senso; talvez por ser impossível, por consistir numa avaliação intuitiva (mas não inata) de distinguir o bem do mal. O bom senso reside na faculdade de conseguir alcançar o equilíbrio, usando a simples técnica de separar o trigo do joio para encontrar soluções adequadas tendo em conta o enquadramento específico de cada situação e as condições e restrições dos problemas. Várias opiniões de constitucionalistas acerca dos direitos adquiridos têm estado pejadas de falta de senso.
Para agravar, até há pouco tempo era prática corrente no nosso País a ausência de credíveis estudos de custo‑benefício previamente à tomada de decisões. Os resultados estão tristemente à vista e não dignificam a nossa democracia. Devido a decisões políticas financeiramente penosas, os mais novos estão a herdar dívidas e os vindouros serão presenteados com fome de esperança. Quando se debate o tema dos direitos adquiridos é conveniente ter consciência destas questões. Sou incapaz de descortinar se a fonte de alguns problemas reside mais em quem produz as leis ou em quem as aplica. Talvez a culpa esteja irmãmente distribuída.
A cartilha de conceitos e regras usada pelos constitucionalistas está ultrapassada. Vários dos direitos que por eles são qualificados como adquiridos assentam em compromissos insustentáveis para o Estado. O caso do nosso sistema de pensões – desenvolvido adiante – é paradigmático do quão desastroso tem sido o respetivo financiamento. Apenas é possível assegurar o equilíbrio financeiro e atuarial desse sistema em duas situações extremas: aumento exponencial da população empregada, de maneira a que as contribuições para a segurança social financiem as pensões em pagamento – para além de irrealista, seria uma solução paliativa, pois o sistema produtivo nacional não conseguiria absorver infinitamente volumes crescentes de mão de obra –; ou acréscimo significativo das taxas contributivas para a segurança social por parte dos empregados e dos empregadores – seria uma solução inviável, dado que corresponderia ceteris paribus a um decréscimo draconiano do rendimento disponível dos trabalhadores.
Comprova‑se assim que o acordo geracional em que se baseia o sistema de pensões português é duplamente injusto. Injusto para o Estado, por ter criado um modelo de repartição que, logo à nascença, estava assente em premissas insustentáveis a longo prazo; e para os cidadãos mais novos, por estarem a descontar para um regime de segurança social assumindo a validade da hipótese da transitividade (i.e., no princípio de que hoje eles financiam as pensões dos mais velhos, e quando se reformarem verão as suas pensões serem financiadas por futuros ativos), quando na verdade sabem que a solidariedade geracional é uma miragem leonina e jamais se repetirá.
No quadro seguinte procuro sintetizar objetivamente a viagem feita à perspetiva dos constitucionalistas, incluindo à dos juízes do Tribunal Constitucional, socorrendo‑me para isso de vários exemplos. A terminologia adotada em relação aos direitos adquiridos que nele consta tem como único fim facilitar a comparação de pontos de vista – o dos constitucionalistas e o pessoal. Na sequência do que manifestei na primeira secção deste documento, informo que a coluna do «Entendimento dos constitucionalistas» resulta da apreciação que faço à sua atuação. As notas explicativas respeitantes à coluna das observações apresentam‑se em anexo a este documento.




C.2. Princípio da não retroatividade


A maioria dos juristas tem interpretado este princípio como a impossibilidade de se aplicarem novas leis a situações cujo direito já foi iniciado. Tal interpretação está em linha com a que eles empregam para o princípio da confiança. Para mim, a efetivação jurídica do princípio da não retroatividade traduz algo materialmente diferente: significa que não se podem aplicar novas leis aos factos já consumados e – questão essencial – consumidos.
A adoção direta e impensada do princípio da não retroatividade teve o resultado vertido na lei de 2011 e referida em anexo, nas observações relativas ao segundo exemplo constante do quadro da anterior subsecção, ou seja, as novas regras das indeminizações por despedimento produziram efeitos (conquanto só até 2013) unicamente nos contratos futuros; aos contratos anteriores à lei aplicaram‑se as antigas regras. Como se explicita em anexo, esta versão dos direitos adquiridos e do princípio da não retroatividade modificou‑se com a lei de 2013, pelo que, no tento dos próprios constitucionalistas, os direitos adquiridos passaram, racional e sensatamente, de primeira para segunda ordem. Levando à letra o princípio da não retroatividade, poderia defender‑se que este foi violado pela lei de 2013. Continuando a entrar no reino da fantasia das interpretações jurídicas, haveria argumentos para justificar que a concretização imediata do princípio faria com que a redução dos quatro feriados operada com a nova lei laboral aplicava‑se em exclusivo aos contratos novos ou – retomando o terceiro exemplo inscrito no quadro de C.1. – que o mesmo tipo de trabalho suplementar seria pago diferenciadamente consoante a data de celebração dos contratos de trabalho.
Entendo que existiria retroatividade se e somente se as leis produzissem efeitos não apenas no futuro mas igualmente no passado já consumado. Nos casos identificados no último parágrafo, assistir‑se‑ia à violação do princípio da não retroatividade se: a lei de 2013 relativa ao valor das indemnizações por despedimento fizesse com que os trabalhadores despedidos antes da data de produção de efeitos da mesma tivessem de devolver às entidades patronais o que auferiram a mais face ao que receberiam se o valor fosse calculado segundo a nova lei; se os funcionários tivessem de recompensar os empregadores pelo facto de outrora terem usufruído de mais quatro feriados do que agora é possível; e se, para os empregados que fizeram horas extraordinárias, houvesse lugar a estornos com os patrões por o trabalho suplementar ter sido melhor remunerado do que atualmente.
Já o pagamento de uma indemnização resultante de um acidente de trabalho constitui um facto simultaneamente consumado e consumido. Quando o valor indemnizatório é pago através de capital, compara‑se aos três exemplos do parágrafo precedente, ou seja, é impossível fazer um acerto de contas de uma quantia entretanto recebida e corretamente calculada, pelo que não há lugar a quaisquer efeitos retroativos. O mesmo acontece quando o valor é pago sob a forma de pensões porque, como se menciona em anexo, na parte final das observações referentes ao quarto exemplo apresentado na anterior subsecção, a verba correspondente ao valor atual da pensão foi integralmente transferida para a seguradora, pelo que o facto jurídico que originou o pagamento também está consumido.
O caso das pensões de reforma ou de sobrevivência do regime geral da Segurança Social e da Caixa Geral de Aposentações é completamente diferente. Os factos que deram origem ao direito já foram consumados – correspondem, por exemplo, à passagem à idade legal de reforma por velhice ou à morte do cônjuge – mas não foram totalmente consumidos – porque não houve externalização (para outra entidade) da responsabilidade pelo pagamento das pensões nem existe um montante financeiro suficiente para assegurar o pagamento vitalício das pensões, o que não acontece, repito, com as pensões de acidentes de trabalho (cuja responsabilidade pelo pagamento é externalizada para as seguradoras).
Como tal, a aplicação do princípio da não retroatividade às pensões de reforma ou de sobrevivência significa exclusivamente que uma eventual alteração do valor futuro das pensões não tem implicações nas verbas já recebidas; tem impacto unicamente para o futuro. O mesmo se passa com as subvenções vitalícias dos políticos, com o abono de família e com o rendimento social de inserção: os montantes vencidos estão definitivamente liquidados – é este o domínio a que deve restringir‑se a validade do princípio da não retroatividade – e os montantes vincendos podem ser objeto de modificação – sobre estes pode existir retroatividade de efeitos, pois já não se trata duma matéria jurídica (mas sim política, isto é, a modificação depende somente dos critérios definidos pelos decisores políticos).

C.3. Princípio da confiança


Do Estado‑providência, apanágio da era do sonho dourado e infinito, pouco mais resta que o nome. A realidade mudou por completo, inevitavelmente. As pressuposições do modelo social europeu estão a desaparecer e a repousar na memória. E como se tal inevitabilidade não bastasse, a perspetiva de futuro negro tem sido agravada com o caminho doentio de quase endeusamento dos direitos adquiridos. Apenas faria sentido evocar a violação do princípio da confiança se os veículos que materializam os direitos adquiridos estivessem adequadamente financiados ou fossem tendencialmente sustentáveis. Como tal não se verifica, a sua evocação é um logro ou então um descuido.
Tem‑se assistido cada vez mais à predominância do princípio da confiança e à desconfiança no princípio da expectativa, o que é uma fria imagem do poderio do passado e do esquecimento do futuro. Sem alarmismos – porque a realidade é bem mais alarmante do que todos os argumentos mais ou menos jurídicos –, convém ter presente que, pelo menos em tempos de crise, direitos adquiridos e futuro são imiscíveis, uma vez que a manutenção dos direitos adquiridos relacionados com os pagamentos suportados pelo Estado confisca literalmente o futuro. Com efeito, para financiar os direitos adquiridos – entendidos na aceção generalizada que tem sido seguida pelos constitucionalistas – são necessários cada vez mais impostos, o que torna o nosso País menos competitivo face ao exterior, com as graves consequências que tal acarreta, nomeadamente o aumento do desemprego e o enterro da esperança dos portugueses – sobretudo a dos mais novos. É este o cenário triste e infundadamente conservador que o fundamentalismo dos direitos adquiridos representa para as gerações vindouras.
Para que os constitucionalistas consigam desamarrar‑se de alguns vícios de raciocínio, é imprescindível que os seus entendimentos tenham em conta critérios de racionalidade. Ademais, creio que, para assegurar as sempre desejáveis coerência e razoabilidade de entendimentos, eles devem articular o tão amado e protegido princípio da confiança com o tão órfão e desamparado princípio da legítima expectativa. O primeiro tem abrangido marcadamente os reformados e pensionistas, portadores por excelência dos direitos adquiridos; o outro tem afetado mais a população ativa, que vê o seu futuro cada vez mais a engordar de vazio. A disfarçável alegria de uns é a indelével agonia dos restantes.
Reconheço perfeitamente as nefastas consequências sociais causadas pela necessidade inultrapassável de abandonar a rigidez do princípio da confiança aplicada aos direitos adquiridos. Contudo, em nome da honestidade, os cidadãos, em geral, e os constitucionalistas, em particular, não devem esquecer que a dimensão dessas consequências não é inferior à da que tem sido provocada pela abdicação permanente do princípio da expectativa. Por diversas razões, e com maior ou menor dificuldade, compreende‑se – não significa que se aceite, note‑se – que as expectativas dos mais novos tenham vindo a gorar‑se. Infelizmente, não por capricho do Homem mas sim por vontade do tempo. Ao invés, incompreensível é a visão desfocada e parcial dos que defendem os direitos adquiridos sob um olhar inexplicavelmente desenquadrado da realidade, abstraindo‑se dos ruídos geracionais que a mesma provoca. Neste aspeto, os constitucionalistas e os sindicalistas têm andado em sintonia.
Sendo o respeito pelo primado da boa‑fé um dos barómetros da qualidade democrática, os portugueses que não profiram em vão a bela palavra «democracia» auto‑obrigam‑se a ter presente que a boa‑fé é inexistente nos casos da defesa do princípio da confiança à custa da castração do princípio da expectativa. Lamentavelmente é o que tem sido encetado com regularidade. É urgente que se reflita no objetivo imperativo de articular equitativamente o respeito desses dois princípios, sem julgar que é inconstitucional a flexibilização do primeiro e constitucional a violação do segundo. Não é por questões de moralidade, mas sim para o bem da coesão nacional e do futuro de Portugal. Poderá chegar um dia em que a resignação dos mais novos se esgota. Os sofismas constitucionais são – entre outros – um dos focos da latente explosão causada pelas feridas insaráveis da injustiça geracional.
Os constitucionalistas vêm prescrevendo o princípio da confiança às situações em que o Estado, sob os pontos de vista técnico e financeiro, assumira compromissos irresponsáveis. É verdade que, para as pessoas de bem – tal como um Estado deve ser –, a palavra ou qualquer outro compromisso formal ou informal valem tanto como uma escritura, e por isso são para honrar. O problema reside tão‑só no facto sobejamente demonstrável de que o Estado é incapaz de prosseguir os seus compromissos, pelo menos nos termos outrora assumidos, donde não resta outra solução viável que não passe pelo humilde reconhecimento da situação de falência em que se encontra e pela consequente reestruturação dos compromissos passados.
Reiterando a minha plena consciência que se trata de um problema sobremaneira delicado, adianto desde já que as medidas de recuo relativamente à assunção de responsabilidades devem ser complementadas com outras, estas muitíssimo mais estruturantes e fraturantes, assentes nos elementares princípios da proporcionalidade e da solidariedade. Quero acreditar que a nossa democracia já tem maturidade bastante para definir o seu rumo. Oxalá ela se (re)conheça e saiba sobriamente o que pretende.

D. Outras reflexões sobre os direitos adquiridos


Em conformidade com o citado neste documento, a defesa cega e insensata dos direitos adquiridos conduz à homologação da discriminação entre os portugueses. Os constitucionalistas estarão cientes que, existindo menos vacas ou vacas mais magras, há menos leite e, logo, menos quantidade de manteiga. Julgo ainda que o seu juízo será capaz de reconhecer que, com menos manteiga disponível, para dá‑la a uns para barrar o pão é preciso tirar a outros o próprio pão. É nesta intransponível metáfora que para alguns constitucionalistas se resumem os conceitos de distribuição geracional e justiça social.
Muitos dos ilustres barões criadores de opinião têm cerrado fileiras contra os inconsistentes beligerantes que ousam beliscar os direitos adquiridos. Constatamos que a atuação daqueles tem sido desprovida de glória; estão solidamente protegidos por fortes baluartes mas são vulneráveis por ar pois têm frágeis telhados de vidro. Gostaria de realçar que sinto‑me equidistante perante ambos – barões e beligerantes.
Por um lado, considero ignóbil que tais ilustres barões, pertencentes – agora e no passado – às diversas famílias políticas nacionais, não tenham suficiente estrutura moral e cívica para reconhecer que o statu quo os favorece. Se as suas convictas e acesas manifestações de opinião estivessem isentas de conflito de interesses, atribuir‑lhes‑ia todo o meu profundo apreço; como raramente estão, sou obrigado a ceder‑lhes o meu sincero desprezo. No fundo, a sua atuação é movida por vis argumentos egoístas.
Se exprimissem o nobre sentimento de preocupação pelos filhos e netos dos outros, certamente aqueles barões utilizavam o tempo e as oportunidades que dispõem para procurar obter soluções justas e equilibradas, que diminuíssem as vergonhosas desigualdades e discriminações cada vez mais implantadas e acalentassem uma genuína esperança para os portugueses mais novos. Confesso que chego a pensar que os mesmos patriotas que em 1974 sonharam (e bem) mudar a sina do País encontram‑se muito aquém de serem verdadeiros democratas, pois esgotaram para si as oportunidades por que tanto combateram e das quais têm beneficiado até ao tutano nas últimas décadas, pouco tendo deixado para as outras gerações cujo infortúnio foi terem nascido no tempo errado. Humilhante definição de humanismo; estranha forma de democracia, subalternizada pela ditadura dos falsos direitos adquiridos.
Por outro lado, desvalorizo os inconsistentes beligerantes atrás referidos, por não serem coerentes na tarefa de renovar Portugal. Apesar do invulgar ímpeto e da louvável intenção de dar nova cara e alma ao País, revelam desarticulação e frouxidão, motivos suficientes para se poder ajuizar, sob o olhar mais objetivo possível, que não servem de referência para os portugueses. Por importantes que sejam, tomam‑se medidas frequentemente avulsas e, na melhor das hipóteses, ocasionalmente justas.
Mexer nos tão apregoados direitos adquiridos é digno de registo, é certo, por constituir um sinal de luta contra alguns interesses instalados. No entanto é deveras insuficiente. Não tem havido a ambição necessária para ir além e mais a fundo e derrubar os bastiões silenciosa mas solidamente edificados. Aí existe um mar de mundos por conquistar. Haja vontade e coragem; e não falte também espírito patriótico de todas as partes para mudar o que tem de ser reformulado, sem que cada um olhe isoladamente para o seu umbigo.
Entretanto, o povo vai‑se iludindo e definhando, décadas a fio, nas habituais incessantes guerrilhas e angustiosas batalhas entre os barões dos interesses e da utopia e os beligerantes das intenções e da demagogia, sem nunca ver o fumo branco que anuncie a vitória da guerra dos ideais e do futuro. Cada povo tem o que merece. Enquanto orgulhoso português – não português orgulhoso –, acredito, juro e aposto que merecemos mais do que exigimos e muito mais ainda do que nos oferecem.
Daí que, em último recurso e desespero de causa, preconize a opinião de que é bem‑vinda a imposição doutrinária e irrefletida dos constitucionalistas. Esta será preferível à constante e infindável indefinição do nosso trajeto, por ter a vantagem de poder obrigar os decisores políticos a zerar o modelo que tem vindo a ser trilhado nas últimas décadas. Há males que vêm por bem. Feitas as contas, renascer das cinzas será porventura uma (des)graça que nos pode cair da fortuna; tornar‑nos‑á mais fortes e fraternos. Tentemos recuperar enfim o tempo perdido.


Notas explicativas (relativas ao quadro constante de C.1.)

(a) Não oferecerá qualquer dúvida que o direito à segurança e higiene no trabalho não reveste o caráter de direitos adquiridos.
(b) O direito à indemnização por despedimento foi, conforme indicado no início deste documento, objeto de outro texto, tendo nele sido explicadas as consequências das leis de 2011 e 2013 (que alteraram o valor das compensações indemnizatórias). Com a legislação de 2011 vingou a perspetiva clássica – tanto jurídica como sindical – de considerar, por um lado, que a lei só produzia efeitos para os contratos de trabalho futuros e, por outro, que para os contratos anteriores a esse diploma vingavam as regras vigentes até então. É o que se pode designar por direitos adquiridos puros (ou de primeira ordem).
Não obstante, a posterior legislação de 2013 permitiu descer o nível de qualificação dos direitos adquiridos – para direitos adquiridos de segunda ordem –, ao estabelecer que aos contratos antigos se aplicam regras menos favoráveis do que as existentes à data de produção de efeitos dessa lei. Mediante a figura do congelamento da antiguidade no momento da entrada em vigor do diploma, os constitucionalistas acabaram por reconhecer aquela descida de nível, o que para mim foi uma surpresa total por representar uma racional inflexão de interpretação.
(c) Apesar da natureza pecuniária do direito referente à remuneração do trabalho extraordinário, não se levanta o problema dos direitos adquiridos. O legislador pode mudar as regras remuneratórias na altura que quiser, as quais terão efeitos daí em diante sobre todos os trabalhadores, sejam antigos ou novos.
(d) Entre os exemplos apresentados, o direito ao recebimento de uma pensão resultante de acidente de trabalho é o único em que defendo tratar‑se de diretos adquiridos de primeira ordem. Ainda que partindo de bases distintas, creio que os constitucionalistas e eu temos idêntico entendimento. Com efeito, enquanto os constitucionalistas realçarão a forma de pagamento – portanto, assumirão que, revestindo aquele direito a natureza de pensões, os respetivos beneficiários já obtiveram o direito vitalício ao seu pagamento e como tal são direitos adquiridos de primeira ordem –, eu enfatizo o regime de financiamento intrínseco às pensões por acidente de trabalho – regime de capitalização, no caso em presença.
A opção para distribuir ao longo do tempo o montante de uma indemnização decorrente de um acidente de trabalho prende‑se unicamente com razões económicas e sociais relacionadas com a vantagem de diluir o consumo – está subjacente que, mais tarde ou mais cedo, o valor da indemnização destinar‑se‑á ao consumo –, para atenuar o risco de dependência acrescida resultante da incapacidade provocada pelo acidente. Se não houvesse tal opção, o pagamento seria efetuado de uma só vez – sob a forma de capital –, donde não se colocava sequer a dúvida acerca da existência ou não dos direitos adquiridos, pois o direito esgotava‑se no exato momento da liquidação da indemnização.
Assim, a forma de pagamento não deve relevar para o efeito, dado que o direito em causa tem características indemnizatórias. O que deve prevalecer, como realcei, é a lógica de capitalização que está intrínseca ao financiamento da pensão. Tenha‑se presente que, quando uma determinada pensão foi adquirida a favor de um sinistrado de um acidente de trabalho, entregou‑se previamente à seguradora a totalidade do valor atual da mesma e dos encargos de gestão que lhe estão associados, ou seja, transferiu‑se‑lhe na íntegra o montante, descontado financeira e atuarialmente, afeto à responsabilidade com o pagamento vitalício da pensão.
(e) O direito a uma pensão de reforma ou de sobrevivência paga pelos sistemas públicos de segurança social, abrangida em concreto seja pelo regime geral de Segurança Social, seja pela Caixa Geral de Aposentações – regimes afetos, grosso modo, ao setor privado e ao setor público, respetivamente –, é um dos domínios onde se denota uma evidente divergência de entendimentos. Os constitucionalistas defenderão que as pensões de reforma ou de sobrevivência estão salvaguardadas pelos direitos adquiridos de primeira ordem e, como tal, não são passíveis de qualquer redução, atenta a visão obsessiva do princípio da confiança – convém contudo não esquecer que nos últimos tempos a mesma visão não tem sido seguida, dados os inúmeros episódios noutras áreas que comprovam o regular desrespeito ou esquecimento desse princípio. Ao invés, eu sou dos que considera – pelas razões seguidamente expostas – que se está diante de direitos adquiridos de segunda ordem, resultando daí a possibilidade de diminuir o valor das pensões. Enquadro‑os nos direitos de segunda ordem, em virtude da necessidade inadiável de se estabelecer um equilíbrio e uma complementaridade permanentes entre os princípios da confiança e da racionalidade. O primeiro é sobretudo jurídico; o segundo é essencialmente económico.
A meu ver, para os constitucionalistas o princípio da confiança constitui uma ilusão intocável, inquestionável e posta numa redoma, e como tal pode estar desligado da realidade. Creio que eles não se interessam se subsistem ou não condições para assegurar o pagamento das pensões. Eis o motivo por que os conceitos de capitalização e valor atual seriam fundamentais para a tomada de decisões sensatas, eficazes e justas. Ao contrário do que acontece com as pensões resultantes de acidentes de trabalho – em que, tal como se explicou, à data do primeiro pagamento existe a acumulação prévia do montante correspondente a todos os fluxos financeiros associados ao pagamento vitalício –, as pensões do regime geral de Segurança Social e da Caixa Geral de Aposentações funcionam em regime de repartição (ou pay‑as‑you‑go).
Este regime assenta no pressuposto que há uma solidariedade e um equilíbrio intergeracionais, ou melhor, que as contribuições dos trabalhadores no ativo e das entidades patronais são suficientes para financiar as pensões dos atuais reformados e pensionistas. Nada mais falso pois, como a generalidade das pessoas tem conhecimento, o nosso sistema de repartição – à semelhança do de vários países ocidentais – enferma de várias entorses estruturais que se vêm agravando nas últimas décadas, em especial de índole demográfica (devido em grande parte ao aumento generalizado da esperança de vida), laboral (fruto do efeito das transformações tecnológicas e organizacionais na libertação de mão de obra) e, consequentemente, financeira (dados os avultados défices dos sistemas públicos de segurança social). As restrições financeiras acabam por resumir toda a problemática da insustentabilidade do regime de repartição, visto que há a necessidade crescente de o sistema de pensões ser financiado não apenas mediante as contribuições para a segurança social por parte dos assalariados e das entidades empregadoras, mas também pelos cidadãos, anualmente, por via de impostos (i.e., através do Orçamento do Estado) – não sendo todavia de excluir a emissão de dívida para suprir os défices. Os défices sistemáticos registados no sistema de pensões demonstram o nítido incumprimento do pressuposto de solidariedade e equilíbrio intergeracionais atrás indicado. É por tudo isso que se está em presença de direitos adquiridos se segunda ordem.
Seriam direitos de primeira ordem se o regime de repartição fosse financeiramente autossuficiente e assim continuasse válido o tão proclamado contrato geracional que lhe subjaz; ou então – situação imaginária – se as entidades públicas responsáveis pelo pagamento das pensões dispusessem dos montantes necessários correspondentes ao valor atual das pensões, isto é, se houvesse a prévia acumulação do dinheiro necessário ao cumprimento dos compromissos futuros com o pagamento das pensões. Independentemente dos repetitivos sinais de inviabilidade e iminente colapso do sistema de pensões em vigor, os constitucionalistas, ao continuarem acerrimamente a considerar o direito às pensões como direitos adquiridos de primeira ordem, estão a assumir que esse sistema permanece nas mesmas condições das existentes quando foi criado. Se a situação não fosse preocupante, poderia admitir‑se que eles têm manifestado um forte saudosismo da época áurea de há mais de meio século, fazendo crer a si mesmos que a realidade não mudou. O que se passa na verdade é bem diferente: revelam coletivamente um grave problema de deslocamento da retina que os impede de observarem, sob diferentes perspetivas, o tempo em que estão inseridos.
(f) Várias observações tecidas em relação ao direito associado às pensões de reforma ou de sobrevivência são extensíveis ao direito relativo às subvenções vitalícias apresentadas na secção B do presente documento. A grande diferença de entendimento reside no facto de eu enquadrar este último direito num nível inferior no âmbito dos direitos adquiridos, por as subvenções em causa serem financiadas só pelo erário público, por meio de transferências do Orçamento do Estado – tal como os vários subsídios que o Estado concede, como por exemplo o abono de família (AF) e o rendimento social de inserção (RSI).
Em substância, somente o horizonte temporal de pagamento distingue as despesas a cargo do Estado relacionadas com as tais subvenções das que são de igual modo suportadas por si com o AF e o RSI. O regime especial das subvenções previu o pagamento incondicional e vitalício de uma pensão, ao passo que com o AF e o RSI o pagamento é condicional – condicional ao rendimento do agregado familiar, nos dois casos, e também à idade das crianças e dos jovens estudantes, no caso do AF. Assim sendo, a legitimidade que o Estado dispõe para decidir a redução drástica ou até a eliminação do AF e do RSI – cenários teóricos e radicais, meramente ilustrativos – é extensível, em rigor, às subvenções dos políticos (incluindo as dos juízes do Tribunal Constitucional).
Todos os direitos decorrentes de atribuições pecuniárias cujo financiamento provém apenas do Orçamento do Estado – tais como as subvenções vitalícias, o AF e o RSI – têm, na minha opinião, o grau de direitos adquiridos de terceira ordem, independentemente da natureza e da designação que tenham. Deduzo que alguns constitucionalistas entendam (de forma errada) que, em matéria de direitos adquiridos, as subvenções vitalícias – não estou seguro que estendam o entendimento ao AF e ao RSI – estejam a par das pensões de reforma ou de sobrevivência e mesmo das pensões por acidentes de trabalho, quando as realidades subjacentes, em concreto no que se refere ao regime de financiamento, são totalmente diferentes entre si, razão pela qual enquadro os três tipos de direitos em causa em diferenciados níveis de direitos adquiridos. A título informativo, ou seja, abstraindo‑me de qualquer menção apreciativa ou depreciativa sobre a decisão política tomada, convém mencionar a intenção, prevista no Orçamento do Estado para 2014, de cortar 15% nas subvenções vitalícias.

(1)  Agradeço ao Paulo J.S. Barata pela utilidade dos seus comentários em relação ao conteúdo e à organização deste documento.
(2)  FRES - Fórum de Reflexão Económica e Social.
(3)  Os ex‑Presidentes da República beneficiam de um outro regime especial de subvenções mensais vitalícias.
(4)  Aliás, a criticar a criação dessas subvenções, o mesmo teria de fazer com a bonificação que aumenta em 15% o tempo de serviço, para efeitos de aposentação no âmbito da Caixa Geral de Aposentações, dos funcionários que integram, entre outras carreiras profissionais, as organizações policiais e as corporações de bombeiros, como forma de reconhecimento da perigosidade das funções desempenhadas.
(5) Na mesma lei foi revogada a disposição vigente desde 1987 referente ao tempo de serviço prestado pelos autarcas em regime de permanência de funções. Aí se estabelecia que a antiguidade era contada a dobrar, como se o serviço tivesse sido efetuado nos quadros do Estado ou de outra entidade patronal, até ao limite máximo de 20 anos de serviço, se fossem cumpridos seis anos, seguidos ou não, no exercício das funções. Não me pronuncio igualmente sobre se essa revogação foi uma boa ou má decisão.
(6) Situação similar acontecerá – voltando à penúltima nota de rodapé – com os bónus de tempo de serviço concedidos nomeadamente aos polícias e aos bombeiros, pois pretende‑se que o acréscimo bonificado de antiguidade seja elegível apenas para o serviço prestado até ao final de 2013. Por ora, a proposta de corte na bonificação não abrange os militares nem o pessoal das missões humanitárias e de paz colocados no estrangeiro.



25 de outubro de 2013


Fresbook e não Facebook do FRES

Fresbook e não Facebook do FRES   (25/04/2020) O FRES - Fórum de Reflexão Económica e Social sempre foi um Grupo plural para o lado...