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Miríade de homenagens a José
Afonso
Sobre José Afonso muito tem sido
contado e cantado, e assim continuará a ser, um privilégio somente à mercê dos
raros seres cujo dom permite influenciar uma plêiade de artistas, contemporâneos
e vindouros, que têm em comum algumas origens musicais oriundas do decano.
Tantos artistas têm cantado e
gravado José Afonso, em múltiplos estilos – como por exemplo em rock,
pop e jazz –, seja em estúdio ou ao vivo, o que constitui uma homenagem superior
que um artista pode conceder a um seu congénere (a par do outro tipo de
homenagem, igualmente elevado e atrás mencionado, o de a pessoa homenageada constituir,
com maior ou menor profundidade, uma referência para outros artistas criarem o
seu próprio estilo que, de certo modo, cresceu a partir de certas raízes de
José Afonso).
Se a diva Amália Rodrigues
gravou, em junho de 1974, pelos seus motivos, um single contendo o tema
«Grândola, vila morena», pouco mais há a acrescentar quanto aos artistas que
têm homenageado José Afonso cantando os seus temas.
Como se compreende, por várias
razões é incomparavelmente menor o número de vezes em que as homenagens a José
Afonso – um cantautor de intervenção detentor, por isto mesmo, do
poder venturoso e fulminante da palavra – estão despidas da voz e
concentram-se exclusivamente na mensagem das suas, tão simples quanto
riquíssimas, canoras melodias.
Homenagens instrumentais a José
Afonso
Júlio Pereira, o indiscutível
mestre do cavaquinho (e de tantos outros instrumentos), interagiu com José
Afonso – que era 24 anos mais velho do que o primeiro – a
partir de 1979, e em 1981 gravou o LP «Cavaquinho», de temas instrumentais de
cariz esmagadoramente popular, dos quais três haviam sido gravados por José
Afonso: «Os bravos», em 1964; «Moda do entrudo», em 1970; e «Viva o poder popular»,
em 1975 e 1978.
No ano seguinte ao do concerto de
despedida do deão da liberdade no Coliseu dos Recreios de Lisboa – despedida
por si assumida, sem rodeios, perante o público, que ficou comovido ao sentir a
sua morte quando o próprio cantou «Águas das fontes calai / Ó ribeiras chorai /
Que eu não volto a cantar» (in «Balada do outono») –, Júlio
Pereira, no LP «Cadói» (1984), gravou uma versão instrumental de «Senhora do
Almortão», canção gravada por José Afonso em estúdio em 1968 e depois em 1981 – a
versão gravada por Júlio Pereira foi a de 1968 –, e ao vivo (no citado Coliseu)
em 1983.
Depois dessas homenagens a José
Afonso sob a forma instrumental (i.e., sem voz) houve outras, ainda que
muito esporadicamente e integradas em coletâneas nas quais foi, com óbvia
predominância, colocada a voz de diferentes artistas.
Homenagens instrumentais a José
Afonso realizadas exclusivamente por um único artista (portanto, um músico),
num disco completo do início ao fim, só existe uma: a que foi realizada pelo
guitarrista (ou violista) Pedro Jóia, com o acompanhante José Salgueiro na
percussão.
Assim, o disco «Zeca» constitui
uma homenagem assaz especial. Não por ser melhor ou pior do que todas as
outras, mas por ser especialmente diferente das demais. Foi a conjugação de vários
fatores que permitiu ao músico abalançar-se a tamanha aventura, conforme se
explica de seguida.
A origem do «Zeca» de Pedro
Jóia
Em primeiro lugar, o êxito
dependia da escolha dos instrumentos musicais. Se a viola foi o instrumento de
eleição de José Afonso para acompanhar a sua voz – sem desprimor do
universo de outros ótimos instrumentos associados ao repertório do cantor, em
particular do disco «Cantigas do Maio» (LP de 1971, com a produção musical de José
Mário Branco) em diante –, seria inevitável que o instrumento de base do
disco de homenagem fosse igualmente a viola. Só a prevalência de uma viola
permitia a fiel reprodução dos imortais sons originais de José Afonso.
Mas não poderia ser uma viola
qualquer – segundo fator. A excelência granjeia-se com pormenores.
Para além da força das palavras e da beleza dos ritmos e das melodias, a
riqueza das canções de José Afonso advém da harmonia, muito associada à
pluralidade de sons e de instrumentos. No caso da homenagem em apreço, esta
pluralidade foi assegurada através da discreta mas crucial intervenção da
percussão de José Salgueiro, por um lado, e da singularidade da viola de Pedro
Jóia, por outro lado. Os virtuosos sons produzidos pela sua viola são raros, de
tal modo que é reconhecida a intervenção simultânea de vários instrumentos: a
viola acústica propriamente dita, mas também a guitarra e a viola-baixo, quando
na realidade existe uma única viola de seis cordas.
Terceiro fator: o executante,
detentor de uma sólida formação clássica e flamenca e de uma vasta experiência
no fado, instrumentista e compositor, ora solista, ora acompanhado por
orquestras, ora acompanhante de sonantes cantores nacionais e estrangeiros de
vários estilos musicais. Sendo a viola especificamente construída para poder
produzir uma diversidade de sons, é normal que também o seu executante seja um
instrumentista de qualidade singular. A viola entrega o seu corpo ao músico, e
este retribui‑lhe até à exaustão, devolvendo à viola toda a sua alma. Foi a
união perfeita para um disco único que maravilhou os amantes da música de José
Afonso e dignificou com chave de ouro o legado que o decano deixou aos mais
novos.
Juntar o útil ao agradável foi o
quarto fator. Para além da paixão do músico pela sua viola e pela música de
José Afonso, houve um elemento de índole mais pessoal: o disco de homenagem
«Zeca» foi uma espécie de prenda de aniversário atribuída por Pedro Jóia a si
mesmo, no mês em que celebrou os seus 50 anos. Depois dos créditos firmados na
sua arte, o músico quis dedicar o trabalho ao vulto de José Afonso e, à guisa
de amor próprio inteiramente merecido, pretendeu festejar o seu passado musical
ao lado da viola que o acompanha desde a infância.
Breves notas sobre «Zeca»
Tratou-se do sétimo disco do
exímio guitarrista Pedro Jóia. Nele foi percorrida uma dezena de temas cantados
por José Afonso e gravados em dois EP e cinco (ou seis) LP, de 1960 a 1973.
«Zeca» inicia-se com «A formiga
no carreiro», do LP «Venham mais cinco», de 1973. Depois vai para o LP do ano
anterior, «Eu vou ser como a toupeira», para homenagear a canção «A morte saiu
à rua». E a seguir retoma o LP de 1973, chamando à cena a faixa que deu nome a
esse disco, ou seja, «Venham mais cinco».
Os quarto e quinto temas de
«Zeca» são dedicados a duas canções icónicas do EP de 1963, «Baladas de Coimbra»,
cuja riqueza foi expressa tão‑só através da voz de José Afonso e da viola de
Rui Pato – um jovem que, com uns compridos 16 anos, começou a fazer
dupla com José Afonso a partir do ano anterior, e por esse motivo esteve na
linha da frente de todos os hinos de José Afonso na década de 60. Tais temas
foram «Menino do bairro negro» e «Os vampiros».
Os dois temas seguintes de «Zeca»
continuam na década de 60. Um tema é dedicado à primeira canção (do seu vasto
repertório) inteiramente da autoria de José Afonso, cujo nome intitulou o seu
segundo EP de 1960, o último disco a ser gravado sob a tradição coimbrã, de o
cantor ser acompanhado por duas guitarras portuguesas e duas violas: «Balada do
outono», canção já citada. Mais tarde, em 1964, no LP «Baladas e canções»,
houve a gravação instrumental da «Balada do outono», portanto já com a
intervenção de Rui Pato.
O outro tema é extraído do LP «Cantares
do andarilho», de 1968: «Vejam Bem». No primeiro parágrafo desta secção foi
escrito que o disco de Pedro Jóia baseou-se em «cinco (ou seis) LP» de José
Afonso porque, em rigor, os primeiros dez segundos desse tema de «Zeca» estão
alinhados com os acordes de uma maravilhosa canção do LP «Contos velhos rumos novos»,
de 1969, a saber: «Era de noite e levaram». Dois em um, de assinalável
qualidade, como se as duas canções fizessem parte da mesma.
«Zeca», editado no final de maio
de 2020, prossegue a viagem através do LP de 1970, recorrendo às canções «Traz outro
amigo também» – que deu o nome ao disco – e «Verdes são os campos».
Os temas instrumentais de «Zeca» assentaram em canções cuja autoria quer da
letra quer da música é de José Afonso, exceto em «Verdes são os campos», poema
escrito por Luís de Camões. Conforme resulta do que já foi mencionado, nesse LP
já não houve a participação de Rui Pato – porque, na sequência da
crise académica de 1969, o músico e estudante foi expulso da Universidade de
Coimbra (quando estava no quarto ano do curso de Medicina) e consequentemente
teve de cumprir o serviço militar (e ser comandado por Fernando Salgueiro
Maio), vendo assim o seu passaporte ser apreendido pela PIDE, o que o impediu
ir a Londres gravar o disco.
Para encerrar a viagem de
homenagem a José Afonso, e aproveitando o ensejo para comemorar o 50.º
aniversário de Pedro Jóia (nascido em 30 de maio de 1970), «Zeca» chamou a
canção que intitula o LP de 1971: «Cantigas do Maio». Parabéns.
«Zeca» foi modesto em resumir a
homenagem a uma dezena de temas. Com a qualidade apresentada,
incontestavelmente o número poderia ser deveras maior. Oxalá tenha sido somente
a primeira parte. Por certo José Afonso agradecerá, e os genuínos apreciadores
da música portuguesa de supremo quilate também.

