terça-feira, 19 de novembro de 2024

José Afonso e «Zeca» de Pedro Jóia










Miríade de homenagens a José Afonso

Sobre José Afonso muito tem sido contado e cantado, e assim continuará a ser, um privilégio somente à mercê dos raros seres cujo dom permite influenciar uma plêiade de artistas, contemporâneos e vindouros, que têm em comum algumas origens musicais oriundas do decano.

Tantos artistas têm cantado e gravado José Afonso, em múltiplos estilos – como por exemplo em rock, pop e jazz –, seja em estúdio ou ao vivo, o que constitui uma homenagem superior que um artista pode conceder a um seu congénere (a par do outro tipo de homenagem, igualmente elevado e atrás mencionado, o de a pessoa homenageada constituir, com maior ou menor profundidade, uma referência para outros artistas criarem o seu próprio estilo que, de certo modo, cresceu a partir de certas raízes de José Afonso).

Se a diva Amália Rodrigues gravou, em junho de 1974, pelos seus motivos, um single contendo o tema «Grândola, vila morena», pouco mais há a acrescentar quanto aos artistas que têm homenageado José Afonso cantando os seus temas.

Como se compreende, por várias razões é incomparavelmente menor o número de vezes em que as homenagens a José Afonso – um cantautor de intervenção detentor, por isto mesmo, do poder venturoso e fulminante da palavra – estão despidas da voz e concentram-se exclusivamente na mensagem das suas, tão simples quanto riquíssimas, canoras melodias.

Homenagens instrumentais a José Afonso

Júlio Pereira, o indiscutível mestre do cavaquinho (e de tantos outros instrumentos), interagiu com José Afonso – que era 24 anos mais velho do que o primeiro – a partir de 1979, e em 1981 gravou o LP «Cavaquinho», de temas instrumentais de cariz esmagadoramente popular, dos quais três haviam sido gravados por José Afonso: «Os bravos», em 1964; «Moda do entrudo», em 1970; e «Viva o poder popular», em 1975 e 1978.

No ano seguinte ao do concerto de despedida do deão da liberdade no Coliseu dos Recreios de Lisboa – despedida por si assumida, sem rodeios, perante o público, que ficou comovido ao sentir a sua morte quando o próprio cantou «Águas das fontes calai / Ó ribeiras chorai / Que eu não volto a cantar» (in «Balada do outono») –, Júlio Pereira, no LP «Cadói» (1984), gravou uma versão instrumental de «Senhora do Almortão», canção gravada por José Afonso em estúdio em 1968 e depois em 1981 – a versão gravada por Júlio Pereira foi a de 1968 –, e ao vivo (no citado Coliseu) em 1983.

Depois dessas homenagens a José Afonso sob a forma instrumental (i.e., sem voz) houve outras, ainda que muito esporadicamente e integradas em coletâneas nas quais foi, com óbvia predominância, colocada a voz de diferentes artistas.

Homenagens instrumentais a José Afonso realizadas exclusivamente por um único artista (portanto, um músico), num disco completo do início ao fim, só existe uma: a que foi realizada pelo guitarrista (ou violista) Pedro Jóia, com o acompanhante José Salgueiro na percussão.

Assim, o disco «Zeca» constitui uma homenagem assaz especial. Não por ser melhor ou pior do que todas as outras, mas por ser especialmente diferente das demais. Foi a conjugação de vários fatores que permitiu ao músico abalançar-se a tamanha aventura, conforme se explica de seguida.

A origem do «Zeca» de Pedro Jóia

Em primeiro lugar, o êxito dependia da escolha dos instrumentos musicais. Se a viola foi o instrumento de eleição de José Afonso para acompanhar a sua voz – sem desprimor do universo de outros ótimos instrumentos associados ao repertório do cantor, em particular do disco «Cantigas do Maio» (LP de 1971, com a produção musical de José Mário Branco) em diante –, seria inevitável que o instrumento de base do disco de homenagem fosse igualmente a viola. Só a prevalência de uma viola permitia a fiel reprodução dos imortais sons originais de José Afonso.

Mas não poderia ser uma viola qualquer – segundo fator. A excelência granjeia-se com pormenores. Para além da força das palavras e da beleza dos ritmos e das melodias, a riqueza das canções de José Afonso advém da harmonia, muito associada à pluralidade de sons e de instrumentos. No caso da homenagem em apreço, esta pluralidade foi assegurada através da discreta mas crucial intervenção da percussão de José Salgueiro, por um lado, e da singularidade da viola de Pedro Jóia, por outro lado. Os virtuosos sons produzidos pela sua viola são raros, de tal modo que é reconhecida a intervenção simultânea de vários instrumentos: a viola acústica propriamente dita, mas também a guitarra e a viola-baixo, quando na realidade existe uma única viola de seis cordas.

Terceiro fator: o executante, detentor de uma sólida formação clássica e flamenca e de uma vasta experiência no fado, instrumentista e compositor, ora solista, ora acompanhado por orquestras, ora acompanhante de sonantes cantores nacionais e estrangeiros de vários estilos musicais. Sendo a viola especificamente construída para poder produzir uma diversidade de sons, é normal que também o seu executante seja um instrumentista de qualidade singular. A viola entrega o seu corpo ao músico, e este retribui‑lhe até à exaustão, devolvendo à viola toda a sua alma. Foi a união perfeita para um disco único que maravilhou os amantes da música de José Afonso e dignificou com chave de ouro o legado que o decano deixou aos mais novos.

Juntar o útil ao agradável foi o quarto fator. Para além da paixão do músico pela sua viola e pela música de José Afonso, houve um elemento de índole mais pessoal: o disco de homenagem «Zeca» foi uma espécie de prenda de aniversário atribuída por Pedro Jóia a si mesmo, no mês em que celebrou os seus 50 anos. Depois dos créditos firmados na sua arte, o músico quis dedicar o trabalho ao vulto de José Afonso e, à guisa de amor próprio inteiramente merecido, pretendeu festejar o seu passado musical ao lado da viola que o acompanha desde a infância.

Breves notas sobre «Zeca»

Tratou-se do sétimo disco do exímio guitarrista Pedro Jóia. Nele foi percorrida uma dezena de temas cantados por José Afonso e gravados em dois EP e cinco (ou seis) LP, de 1960 a 1973.

«Zeca» inicia-se com «A formiga no carreiro», do LP «Venham mais cinco», de 1973. Depois vai para o LP do ano anterior, «Eu vou ser como a toupeira», para homenagear a canção «A morte saiu à rua». E a seguir retoma o LP de 1973, chamando à cena a faixa que deu nome a esse disco, ou seja, «Venham mais cinco».

Os quarto e quinto temas de «Zeca» são dedicados a duas canções icónicas do EP de 1963, «Baladas de Coimbra», cuja riqueza foi expressa tão‑só através da voz de José Afonso e da viola de Rui Pato – um jovem que, com uns compridos 16 anos, começou a fazer dupla com José Afonso a partir do ano anterior, e por esse motivo esteve na linha da frente de todos os hinos de José Afonso na década de 60. Tais temas foram «Menino do bairro negro» e «Os vampiros».

Os dois temas seguintes de «Zeca» continuam na década de 60. Um tema é dedicado à primeira canção (do seu vasto repertório) inteiramente da autoria de José Afonso, cujo nome intitulou o seu segundo EP de 1960, o último disco a ser gravado sob a tradição coimbrã, de o cantor ser acompanhado por duas guitarras portuguesas e duas violas: «Balada do outono», canção já citada. Mais tarde, em 1964, no LP «Baladas e canções», houve a gravação instrumental da «Balada do outono», portanto já com a intervenção de Rui Pato.

O outro tema é extraído do LP «Cantares do andarilho», de 1968: «Vejam Bem». No primeiro parágrafo desta secção foi escrito que o disco de Pedro Jóia baseou-se em «cinco (ou seis) LP» de José Afonso porque, em rigor, os primeiros dez segundos desse tema de «Zeca» estão alinhados com os acordes de uma maravilhosa canção do LP «Contos velhos rumos novos», de 1969, a saber: «Era de noite e levaram». Dois em um, de assinalável qualidade, como se as duas canções fizessem parte da mesma.

«Zeca», editado no final de maio de 2020, prossegue a viagem através do LP de 1970, recorrendo às canções «Traz outro amigo também» – que deu o nome ao disco – e «Verdes são os campos». Os temas instrumentais de «Zeca» assentaram em canções cuja autoria quer da letra quer da música é de José Afonso, exceto em «Verdes são os campos», poema escrito por Luís de Camões. Conforme resulta do que já foi mencionado, nesse LP já não houve a participação de Rui Pato – porque, na sequência da crise académica de 1969, o músico e estudante foi expulso da Universidade de Coimbra (quando estava no quarto ano do curso de Medicina) e consequentemente teve de cumprir o serviço militar (e ser comandado por Fernando Salgueiro Maio), vendo assim o seu passaporte ser apreendido pela PIDE, o que o impediu ir a Londres gravar o disco.

Para encerrar a viagem de homenagem a José Afonso, e aproveitando o ensejo para comemorar o 50.º aniversário de Pedro Jóia (nascido em 30 de maio de 1970), «Zeca» chamou a canção que intitula o LP de 1971: «Cantigas do Maio». Parabéns.

«Zeca» foi modesto em resumir a homenagem a uma dezena de temas. Com a qualidade apresentada, incontestavelmente o número poderia ser deveras maior. Oxalá tenha sido somente a primeira parte. Por certo José Afonso agradecerá, e os genuínos apreciadores da música portuguesa de supremo quilate também.


terça-feira, 12 de novembro de 2024

Teresa Silva Carvalho, Manuela de Freitas e «Balada para Um Súbdito»


Teresa Silva Carvalho

Fadista e cançonetista, compositora, mensageira de causas justas, assim pode ser resumidamente descrita Teresa Silva Carvalho no domínio artístico. Para o seu repertório de meia centena de fados e canções gravados em disco – excluindo as regravações –, Teresa Silva Carvalho foi bastante seletiva na escolha dos poetas em cujas palavras pretendeu colocar, através da voz e da música, o seu espírito criativo e o seu sentimento cívico.

Escolheu uma qualidade poética superior, e pontualmente chamou a si temas populares. Para além disso quis diversificar, interpretando um poema de cada autor, conquanto tenha repetido alguns deles. Cantou duas vezes Florbela Espanca e Mário de Sá-Carneiro, e três vezes Fernando Pessoa. E cantou cinco temas diferentes da autoria do seu amigo José Afonso (em 1977) – portanto, não contando com a gravação, outrossim em 1977, do tema «Verdes São Os Campos», também uma criação de José Afonso (com letra de Luís de Camões e música do próprio de José Afonso) – e da sua amiga Manuela de Freitas (em 1969 – 3 vezes –, 1971 e 1976).

Manuela de Freitas

Para o público, Manuela de Freitas é mais conhecida pela vida de atriz dedicada ao teatro do que pelo papel de letrista de fados e canções maravilhosos. Em 1972 foi co‑fundadora do teatro «A Comuna - Teatro de Pesquisa». Depois do 25 de Abril, trabalhou nesse teatro com José Mário Branco, após o regresso deste do exílio, o seu companheiro a partir de 1979 e a quem ensinou a gostar do bom fado. Antes de tudo isso já o fado se havia entranhado no corpo e na alma da atriz, fado que tornou não somente a sua representação ainda mais enfática, como também a sua escrita ainda mais singular.

Conforme consta do texto redigido por Manuela de Freitas intitulado «Ofícios Inquietos» – incluído no livro «O Fado e o Teatro» (2013), co‑produzido pelo Museu do Fado e pelo Museu Nacional do Teatro (Museu Nacional do Teatro e da Dança desde janeiro de 2015) –, «Como o actor se torna autor do texto que representa, o fadista torna‑se autor do fado que canta.» As palavras de um fado ou de uma canção estão para o texto de uma peça, assim como a música do fado ou da canção cantado pelo artista está para a encenação representada pelo ator.

«Balada para Um Súbdito»

Com o aprumo artístico que a caracteriza, Teresa Silva Carvalho representou em apenas cerca de dois minutos e um quarto a peça musical «Balada para Um Súbdito», um poema escrito por Manuela de Freitas sob a forma de redondilha menor, composto por cinco quadras de incisiva crítica social, musicado pela própria artista, e integrado no seu quarto EP, editado em 1971 pela discográfica Movieplay. Depois de três EP – um em 1967 e dois em 1969 –, todos contendo fados tradicionais (com exceção do fado musicado composto por Teresa Silva Carvalho para o soneto «Amar» de Florbela Espanca), o citado EP de 1971 não dispôs de qualquer fado; das quatro faixas, três foram musicadas por Teresa Silva Carvalho, entre elas a «Balada para Um Súbdito».

A riqueza e a versatilidade do poema são tais que é possível sintetizá-lo plenamente recorrendo aos dois primeiros versos da primeira quadra e aos dois últimos da derradeira quadra: «Para ter umas luvas / As mãos amputei / Só a morte é minha / Que a vida é do rei»

É difícil acreditar que essa canção social e politicamente tão acutilante não haja sido censurada. Porventura a censura entendeu que Manuela de Freitas, por ser tão direta na imagem colocada nas suas palavras simples e transparentes, tenha escolhido como alvo a monarquia, e não o poder ditatorial (que viria a estatelar-se cerca de três anos mais tarde, em 1974). Tratar-se-á de uma hipótese não confirmada, mas certamente bastante lógica e plausível, por estar alinhada com a estratégia de contracensura só ao alcance de poucos poetas e interiorizada por um punhado de artistas.

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