É normal que cada pessoa aprecie e divulgue
os artistas de uma forma (também) subjetiva. Eis uma visão particular acerca do
benfazejo cantor, ou essencialmente cantautor, Fausto Bordalo Dias.
A sua obra discográfica, atualmente
compreendida entre 1969 e 2011, inclui 160 temas originais, repartidos por 15
discos. Desse universo de temas, 102 correspondem ao alargado subconjunto
representativo dos que, na perspetiva individual, são considerados mais
preferidos, portanto cerca de 64% do total.
Para um leigo em música, mas que sente a
arte musical, tal preferência não é fácil ser explicada de uma maneira
inequívoca. A apreciação resulta de critérios tão simples como a mensagem, a
melodia, o ritmo, a harmonia entre os eixos vocal e musical ou a diversidade de
sons produzidos por diferentes instrumentos, ainda que nem todos esses
critérios estejam sempre presentes nas faixas identificadas como sendo as mais
apreciadas.
O gráfico 1 reflete, por cada disco com
temas originais, o seu índice de preferência, i.e., o contributo do
respetivo disco para a preferência global atribuída à obra de Fausto.
O índice de
preferência associado a um determinado disco resulta do produto da (i) taxa de
preferência do disco – quociente entre o número de faixas inéditas
mais preferidas do disco e o total de faixas inéditas no mesmo disco – com
a (ii) frequência relativa do número de faixas inéditas mais preferidas desse
disco (face ao total de faixas inéditas mais preferidas de todos os 15 discos,
ou seja, 102). Assim sendo, o índice de preferência mais baixo corresponde ao
primeiro disco, o EP de 1969, “Fausto”: (i).(ii).100 =
1/4.1/102.100 = 0,25. Ao invés, o índice mais elevado é
atribuído ao duplo CD de 1994, “Crónicas da terra ardente”: (i).(ii).100
= 18/20.18/102.100 = 15,88.
É expectável que tendencialmente os discos com maior número de faixas tenham outrossim maior número de faixas mais preferidas, de onde ser conveniente relativizar as preferências tendo em conta a dimensão dos discos. O gráfico 2 permite comparar a preferência com a produção de cada um dos 15 discos com temas inéditos. Por as séries (A) e (B) representarem frequências relativas, a soma das percentagens de cada uma delas totaliza a unidade. Consequentemente, a soma dos desvios entre os valores dessas duas séries é um valor nulo. A numeração ordinal inscrita na terceira série – desvios entre as séries (A) e (B), ou seja, “(A) - (B)” – indica a ordem de preferência de cada disco, do primeiro ao 15.º lugares na escala de ordenação.
Por conseguinte, enquanto o gráfico 1 apresenta somente as preferências brutas (tendo em conta o número de faixas mais apreciadas em cada disco, bem como o número total de faixas mais apreciadas em todos os discos), no gráfico 2 estão também expostas as preferências efetivas (considerando a dimensão de cada disco, portanto, o número de faixas inéditas existentes, sejam mais ou menos apreciadas). Por exemplo, “Em busca das montanhas azuis”, de 2011, é o disco com o maior número de temas originais, sendo por isso (e ainda pela relação entre o número de faixas inéditas mais preferidas do disco e o número total de faixas inéditas no mesmo) o terceiro mais preferido. Contudo, tendo presente que tal disco é o que inclui mais temas originais (mais e menos apreciados), representa apenas o 11.º lugar na escala dos discos com maior preferência, no universo de 15. Ao invés, os discos “Madrugada dos trapeiros”, de 1977, e “Para além das cordilheiras”, de 1987, são apenas os nonos no que toca à produção, mas os quartos em matéria de índice de preferência, pelo que em termos líquidos o terceiro lugar das preferências é‑lhes atribuído, ex aequo.
Note‑se que as percentagens adstritas à série da produção discográfica – série (B) – resultam da divisão entre o número de temas originais de cada disco e o total de (160) temas originais existentes nos 15 discos. Visto que o citado álbum de 2011, “Em busca das montanhas azuis”, contém 23 faixas originais, a respetiva frequência relativa corresponde a 23/160 = 14,4%, percentagem superior à de 11,5%, a qual traduz a frequência relativa associada à preferência desse disco. Esta percentagem de 11,5% resulta da divisão entre o índice de preferência do disco (8,35, observado no gráfico 1) e a soma de todos os índices de preferência (igualmente resultantes do gráfico 1, i.e., 72,56).
Se bem que o álbum “Crónicas da terra ardente”, de 1994, seja aquele que, em termos brutos, recolhe tangencialmente o maior índice de preferência – vd. gráfico 1 –, passa sem dúvida para segundo lugar quando a preferência é comparada com a produção. Para esse disco, a diferença entre a preferência e a produção é de 9,4% (21,9%-12,5%), enquanto o disco “Por este rio acima”, de 1982, regista a maior diferença de todos, 11,6% (21,6%-10%), sendo assim o que mais contribuiu para a preferência da obra discográfica de Fausto.
Através do gráfico 2 pode confirmar‑se, usando as frequências acumuladas das duas primeiras séries – as séries de frequências relativas da preferência e da produção –, que até ao final da década de 70 do séc. XX tinham sido editados 34% dos 160 temas inéditos de toda a carreira de Fausto (medida pelos citados 15 discos). Estes 34% de produção correspondiam a 17% de referências. Com o duplo LP de 1982, “Por este rio acima”, as percentagens acumuladas aproximaram‑se sobremaneira: 44% para a produção e 38% para a preferência.
Seguidamente apresentam‑se, no quadro 1, os 102 temas originais que, sob o ponto de vista pessoal, são os mais apreciados.
Agrupando os 102
temas por tipos de assunto – exercício que é igualmente subjetivo (desde
logo porque existem faixas que contêm características associadas a mais do que
um assunto e por isso houve que afetá‑las a um único) –, podem tecer‑se
várias observações. A distribuição de canções por assunto mostra que, das 96 letras
mais preferidas (excluindo as seis faixas instrumentais), 39 são canções
referentes a aventuras diaspóricas e 26 a canções relacionadas com protesto,
intervenção ou caracterização sociais. O assunto abrangendo a sensualidade, o
prazer ou o pecado reúne uma dúzia de canções. A portugalidade está patente em oito
canções, o mesmo sucedendo com a africanidade. As remanescentes três canções
referem‑se a outros assuntos diferentes dos mencionados atrás.
Dos 160 temas originais, 59 integram a
trilogia da música popular portuguesa alusiva à História dos Descobrimentos, trilogia
que o próprio Fausto intitulou “Lusitana Diáspora” e da qual fazem parte os
álbuns “Por este rio acima” (1982), “Crónicas da terra ardente” (1994) e “Em
busca das montanhas azuis” (2011). Desses 59 temas, 48 pertencem ao conjunto
dos mais apreciados, correspondendo portanto a uma taxa de preferência de 81%.
Dos temas que não fazem parte da trilogia, a taxa de preferência é de 53% – (102-48)/(160-59).
O ano de 1979 pode ser considerado o momento de viragem da carreira do cantautor Fausto, passando dos temas de pendor de ação social para os alusivos à epopeia da expansão marítima. Nada melhor do que marcar o fim das músicas com cariz de intervenção social com a apresentação dos temas “Roupa velha” e ”Eu fui ver o campo”. E nada melhor do que simultaneamente marcar o início da era dedicada às músicas alusivas à diáspora apresentando os temas “Peregrinações” (inspirado na obra “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, conforme Fausto reconheceu) e ”A Nau Catrineta” (na versão de Lisboa, um poema anónimo recolhido por Almeida Garrett e registado no seu “Romanceiro”).
Porém, saliente‑se que quase um quarto de século depois (em 2003), Fausto retomou o tema da crítica social, com o álbum “A ópera mágica do cantor maldito”. O cantautor bendito, da língua portuguesa e de Portugal, com o caráter e a qualidade que sempre foram seu apanágio, chamou a si tamanha inspiração para sintetizar o mundo do espetáculo – quase três décadas depois do nascimento da era democrática –, não manifestando qualquer hesitação em chamar à colação o poder dos novos lápis azuis, desta feita trabalhadores em nome de objetivos financeiros, e não tanto de interesses políticos.
Só um cantor abnegado e com a cerviz sempre hirta poderia ter estado ausente da Expo 98, logo ele que, à data, fora o criador de duas supremas obras‑primas dedicadas aos oceanos e aos portugueses no Mundo: “Por este rio acima” e “Crónicas da terra ardente”. Muito provavelmente o dinheiro não foi o motivo da sua ausência na exposição mundial realizada em Lisboa, dedicada ao quingentésimo aniversário da chegada dos portugueses à Índia, pois antes (e depois) de 1998 foram inúmeros os seus concertos de acesso livre e gratuito – embora financiados pelas autarquias – que concederam ao público a faculdade de apreciar o valor genial do artista. A memória recorda de imediato, a este propósito, os ditosos momentos em Abrantes, em Lisboa (no Terreiro do Paço), em Moscavide e no Seixal. Pessoalmente, a maior penitência consiste em não ter assistido ao espetáculo realizado em Lisboa, no Centro Cultural de Belém, em 1999, o qual, de tão empolgante que foi, ficou registado num duplo CD. Quantos cantores benditos para o povo foram (ou são) cantores malditos para o poder?
Abra‑se agora um parêntesis para o álbum “Por este rio acima”, de 1982. Para a sua introdução foi escolhida uma faixa instrumental cujo título resume não só o álbum em si mesmo, como toda a trilogia que Fausto dedicou à epopeia lusitana: “É o mar que nos chama”. Esta faixa, que dura aproximadamente 160 riquíssimos segundos, constitui a banda sonora do secular filme sobre a viagem dos Descobrimentos. Ao início, em pouco menos de um minuto, a música vai transportando a atenção dos ouvintes para diferentes fases da viagem. Volvido um silêncio luminoso, a viagem começa na calmaria da largada, passa pela intensificação da ventania e termina na tormenta do alto‑mar.
Logo de seguida, a composição sonora chama pelo mar – ou antes: “É o mar que nos chama” –, socorrendo‑se de uma parte da melodia do tema “O que a vida me deu”: ”Ó mar / Leva tudo o que a vida me deu / Tudo aquilo que o tempo esqueceu / Leva que eu vou voltar / Ó mar / Como quem vem / E regressa ao fundo / Do ventre da mãe”, e “Ó mar / Lago imenso de oceanos salgados / Onde os rios também naufragados / Vão por fim descansar / Ó mar / Tecem murmúrios / Sensuais / Como os amantes / Depois / Repousam em paz”. Após este chamamento, de cerca de 45 segundos, assiste‑se a uma perfeita e impercetível transição para outra realidade da epopeia: a sensualidade, o prazer, o pecado, e em concreto a lascívia, que levou um rei a desventrar à punhalada o seu pai para possuir e vir a casar com a sua linda mãe, e “sua amante”, que estava grávida do filho. Para o efeito, o chamamento, efetuado durante pouco mais do que duas escassas dezenas de segundos, é baseado num comovido excerto de “Como um sonho acordado” – inspirado no testemunho de Fernão Mendes Pinto que (ao livrar‑se, por uma unha negra e com uma astúcia ingente, da mais que provável morte) sentiu um medo penetrante ao ponto de (mesmo já estando a bordo do seu jurupango e a afastar‑se do perigo mortífero do punhal do rei, que assassinava todos os que acreditavam no seu parricídio ignóbil) julgar‑se perseguido pela maldade e pelo horror deixados em terra –: “Meu amor quando eu morrer / Ó linda / Veste a mais garrida saia / Se eu vou morrer no mar alto / Ó linda / E eu quero ver-te na praia / Mas afasta-me essas vozes / Linda”.
Finalmente, após tremendos gritos que ecoam a força da Natureza e a alma do Homem, as restantes quatro dezenas de segundos da faixa conhecem um abrandamento. As súplicas musicais são abandonadas e interiorizadas no espírito da mensagem, à guisa de catarse dedicada aos portugueses do Mundo, aquém e além‑mar. Fim do parêntesis.
Um único tema contido no quadro 1 não foi musicado por Fausto: a faixa instrumental “Praia da Samba” (composta por Mário Rui Silva). Das 96 letras, Fausto foi o autor de 81. Da restante dezena e meia de temas, três são poemas populares, tendo a dúzia sobrante sido escrita por nove poetas. O disco “A preto e branco”, de 1989, teve a particularidade de não incluir qualquer tema escrito por Fausto; todos foram escritos por autores africanos, e musicados pelo próprio Fausto. A partir de então, a totalidade dos discos com temas inéditos foi escrita e musicada por Fausto, com exceção da canção “Os mandamentos do vinho”, um poema popular incluído na coletânea de 1996 “Atrás dos tempos vêm tempos”.
No universo dos 160 temas inéditos, apenas dois não foram musicados por Fausto (cujos compositores foram Luís Linhares, um dos elementos da banda Filarmónica Fraude, que interveio na gravação do primeiro LP de Fausto, em 1970, e Mário Rui Silva, conforme supracitado). Dos 158, quatro foram musicados por Fausto em parceria com António Pedro Braga. Quanto às 154 letras (portanto, não incluindo as seis faixas instrumentais), 122 foram da autoria de Fausto, e uma foi co‑escrita por Fausto, juntamente com Vitorino e com o espanhol Luis Pastor.
No anterior quadro 1 estão identificados, através das notas (1) a (4), 39 temas que foram objeto de regravações. Para além das regravações identificadas na nota (3) desse quadro, o mesmo duplo CD “Atrás dos tempos vêm tempos”, de 1996, contém outras 10 regravações (de temas não considerados como sendo os mais preferidos).
Além dos 15 discos já mencionados (que incluem temas inéditos) e do álbum de 1999 gravado ao vivo, a obra de Fausto inclui uma compilação, num duplo CD de 2007, designada “18 canções de amor e mais uma de ressentido protesto” – a saber: “Carta de um contratado” –, compilação que consiste numa repetição (e não regravação) de temas originais. A sua obra inclui ainda nove singles (de 1970 – dois –, 1974, 1975, 1977, 1978, 1985 – dois – e 1986), um EP (de 1984) e três mini CD (de 1994, 1996 e 2003), com o objetivo essencial de promover os álbuns que incluem os temas dos singles, do EP e dos mini CD.
Retome‑se o terceiro parágrafo deste texto. Grande parte do êxito de Fausto deve‑se à elegância e à grandeza das suas músicas, que por sua vez estão relacionadas com: a harmonia das composições, a profundidade das palavras e a diversidade dos instrumentos musicais, sem obviamente esquecer a superior colocação de coros, sempre que – rectius: tantas vezes – entendida oportuna. Este quarteto de elementos tornaram um grande número de canções em perenes obras de arte.
Assim, importa procurar identificar, em cada um dos álbuns editados com temas originais – 13 LP ou CD gravados em estúdio, ou seja, excluindo o EP de 1969 e o single de 1984 –, assim como no disco gravado ao vivo em 1999, os músicos intervenientes nas gravações e os instrumentos que tocaram. Tal identificação está presente no quadro 2, que resultou de um exercício que, apesar de ser tão completo quanto necessário, não teve a pretensão de ser totalmente exaustivo. Para não sobrecarregar a apresentação, optou‑se por não incluir a miríade de vozes que interveio na gravação dos discos e de bastantes êxitos dos mesmos; muitas delas são as dos próprios músicos instrumentistas, e muitas são as de pessoas convidadas, das proeminentes às ignotas. O quadro também não inclui o nome de Fausto, que em todos os discos tocou viola (acústica ou elétrica).
Apesar de haver
discos em que claramente a informação é demasiado escassa – desde
logo os LP de 1970 e 1979, que tiveram a participação de bandas musicais e, por
conseguinte, não foram identificados os nomes dos músicos intervenientes –,
constata‑se que, para a gravação de diferentes álbuns, Fausto contou várias
vezes com os mesmos músicos. António Pinto (viola), Eduardo Abreu (flauta e
saxofone), Fernando Molina (percussões), Júlio Pereira (viola, e também viola
braguesa e cavaquinho) e Vítor Milhanas (baixo) foram os músicos que mais
gravaram com Fausto. Cada um deles esteve presente em quatro dos 14 álbuns do
artista.
Ademais, de acordo com o levantamento apresentado no quadro 2, verifica‑se que 11 músicos intervieram em três álbuns de Fausto. Acrescente‑se ainda que um grande número dos outros músicos, sobretudo os que estiveram presentes uma só vez, tiveram uma participação pontual numa ou noutra faixa dos discos.
Aqui chegados, resta salientar que quem disseca com deleite ou simplesmente ouve as canções de Fausto conclui de imediato que a qualidade da sua obra discográfica faz deste patriota um Orfeu da cultura portuguesa. A positiva obsessão pelo rigor e a incessante busca pela perfeição por si demonstradas produziram canções que são uma ode ao casamento entre o som universal e a palavra lusitana, casamento que honra grandiosamente os nomes da nossa língua transcontinental e do nosso País, que lhes estão agradecidos. Há muito, e eternamente.
daviddinis2013@gmail.com
































