I. Apresentação
Graças ao reconhecimento mundial, em
2011, do fado enquanto Património Cultural Imaterial da Humanidade, bem como à
velocidade e potência da internet,
atualmente uma pessoa, em quase todas as regiões da Terra, acede ao fado de
hoje à distância de segundos. O mesmo
não pode afirmar‑se acerca do fado de ontem, visto que sobre este não está
disponível informação pública suficiente.
O blogue Lisboa no Guiness, da autoria de Vítor Duarte “Marceneiro” (doravante
referenciado apenas por LGuiness), permite atenuar bastante a lacuna, pelo que todo
o fado – o de ontem e o de hoje – deve‑lhe um genuíno
agradecimento pelo serviço público prestado. Convém nunca esquecer que o fado
exprime, por natureza, a verdade (pura, e não plagiada), valor que qualquer agente
da arte fadista, seja público ou privado, deve ter sempre presente. Sem a
informação existente nesse blogue seria impossível elaborar o documento em
apreço.
Afora admitir que (apesar de ter havido
a preocupação em enveredar pelo critério da materialidade) o documento será
alvo de críticas por ser demasiado sintético – até porque não salienta
a internacionalização do fado ocorrida no atual século[1] –,
há outros reparos que desde já se adiantam. Por um lado, é injusto abordar a
internacionalização do fado cingindo a atenção aos fadistas. Inúmeras atuações
de conceituados guitarristas e violistas realizadas no estrangeiro – sem
ou com a presença de fadistas – mereceriam e deveriam ser realçadas. Por
outro lado, levanta‑se mais um problema: a completa omissão do fado de Coimbra.
Assim, também por estes dois motivos, reconhece‑se que o documento é assaz
insuficiente para a total explicação da internacionalização do fado no último
século.
A seguir apresentam‑se resumidamente
as quatro fases da internacionalização do fado. Cada secção refere‑se a uma
fase, segundo a ordem cronológica. No final do texto consta uma lista anexa, contendo
as personalidades aqui mencionadas[2].
II. Do navio ao avião
A primeira fase da
internacionalização do fado ficou marcada pelo navio. Explique‑se esta frase. Há
cerca de um século, altura dos primórdios da exportação do fado para além‑mar, fadistas
e músicos começaram a levar a sua arte para as colónias portuguesas e o Brasil.
O avião ainda era, senão um sonho constante, uma miragem longínqua; portanto, o
elenco de artistas era transportado por navio. As digressões tinham de ser
longas, para poder rentabilizar o demasiado incómodo e o elevado custo das
viagens de ida e volta. O fado viajava menos mas “emigrava” mais, pois as
ocasiões em que ia para o estrangeiro eram prolongadas, de algumas semanas ou
até de inúmeros meses.
Por conseguinte, nos anos 20 do
século passado iniciou‑se a internacionalização do fado. A partir daí a urbana canção
nacional efetuou longas digressões pela lusofonia, não só pelo Brasil, como pela
África portuguesa, em especial Angola e Moçambique, as enormes colónias ultramarinas
com inúmeros apreciadores da toada emotiva e sentimental oriunda dos bairros
típicos da capital d’O Puto, o
pequeno Portugal Continental.
A primeira embaixadora do fado terá
sido a cantadeira Maria do
Carmo “Alta”, a fundadora de uma catedral de referência: o novo retiro
Ferro de Engomar, em Benfica[3].
Ela fez «digressões ao Brasil, nomeadamente em 1920, onde permaneceu dois anos
e meio. (…) Voltou ao Brasil em 1926 e apresentou‑se no Cinema Central do Rio
de Janeiro. (…) Embarcou novamente para o Brasil em 1934, como figura principal
da Embaixada do Fado[4],
que integrava nomes como o guitarrista Armando Freire (Armandinho), o violista
Santos Moreira, Maria do Carmo Torres, Filipe Pinto e Joaquim Pimentel.»[5]
A “Alta” formou o Grupo Artístico de
Fados Maria do Carmo, o qual contava com o cantador Manuel Cascais, a
cantadeira Cecília d´Almeida, o guitarrista José Marques “Piscalarete” e o
violista Armando Machado[6].
Outra embaixada do fado, igualmente organizada
por Maria do Carmo “Alta”, foi ao Brasil e à Argentina. Nela participaram Maria
do Carmo Torres, Filipe Pinto, Joaquim Pimentel, Armandinho e Martinho d’Assunção
Jr.[7]
As fadistas Ercília Costa e Berta
Cardoso foram sem dúvidas quem seguiu e alargou o caminho da
internacionalização previamente trilhado pela “Alta”. Berta Cardoso, juntamente
com Madalena de Melo, Armandinho, João da Mata Gonçalves e – o ex‑aluno
deste – Martinho d’Assunção Jr., no início dos anos 30 partem «a
bordo do navio Niassa para um percurso de espectáculos na África Ocidental e
Oriental e também nas ilhas portuguesas», facto que consistiu na «primeira
viagem que o fado faz a África, tornando‑se numa digressão muito noticiada
pelos jornais, uma vez que os espectáculos se desenrolam ao longo de quase um
ano, passando por diversos locais, destacando Angola, Moçambique e Rodésia.»[8]
França e Estados Unidos foram países
que, sem pertencerem à lusofonia residente no Brasil e em África, puderam
apreciar ao vivo o talento de Ercília Costa e dos seus acompanhantes – Armandinho,
João da Mata Gonçalves e Martinho d’Assunção Jr. Ela foi ao Brasil algumas vezes,
durante longas temporadas. «Ercília Costa foi uma das grandes cantadeiras de
fado da primeira metade do séc. XX. O seu nome é hoje pouco recordado,
pois as gravações que realizou são anteriores aos anos cinquenta, altura em que
se começou a popularizar o disco gravado, mas no seu tempo foi uma vedeta
acarinhada pelo público e foi certamente, antes de Amália, uma das fadistas mais
internacionalizadas.»[9]
Em 1934 foi de igual modo noticiada a
digressão ao Brasil da embaixada do fado composta por Maria Albertina, Casimiro
Ramos e Armando Silva[10].
Anos depois, Espanha, França, Argentina, Estados Unidos e Canadá acolheram o
talento de Maria Albertina e dos seus músicos[11].
À parte dessas digressões, diversas ocorreram
antes de meados da década de 40. Foi o caso de uma embaixada do fado composta
por Filipe Pinto, Armandinho e Martinho d’Assunção Jr., que se deslocou ao
Brasil e a demais países da América Latina[12].
A fadista Maria Alice também atuou várias vezes no Brasil[13].
A primeira frase do parágrafo frisou o marco temporal de meados da década de 40
porque nessa época foi criada a companhia Transportes Aéreos Portugueses, permitindo
aproximar as distâncias entre, de um lado, o fado e, do outro, comunidades
portuguesas e restantes apreciadores da alma lusitana.
Todavia – e à guisa de
fecho desta secção –, não importará tanto a identificação exaustiva dos
agentes internacionalizadores. Sobressai essencialmente a circunstância de,
pelo menos duas décadas antes da diva Amália Rodrigues espalhar o seu virtuoso
engenho pelo mundo fora, já os argonautas do fado haviam desbravado parte do
Hemisfério Sul, sulcando as águas do Atlântico e do Índico.
III. Desde Amália até à
democracia
O avião e o talento de Amália Rodrigues
expandiram o fado além‑fronteiras e para os dois hemisférios. Ela iniciou a
construção da segunda fase da internacionalização da canção nacional. Seria
impossível conter na Metrópole o talento amaliano; este teria de galgar
fronteiras, tal como sucedeu com as(os) antecessoras(es) fadistas que ousaram
ver para lá do que a vista alcançara. Porém, por ingente que seja o talento, consegue
voar muito mais rapidamente do que é capaz de nadar, de onde, por ar, o talento
da gigante Amália ter chegado bastante mais longe a inúmeros lugares do mundo,
espaços que até então o fado não desvendara.
Com Amália, o fado não se restringiu
à lusofonia nem aos circuitos pelos países com uma forte implantação de
comunidades de portugueses emigrados. Com ela, o fado manteve‑se fiel à matriz
tradicional e, em simultâneo, evoluiu. Evoluiu mas não se adulterou, e por isso
propagou‑se em virtude, engrandecendo o nome de Portugal.
Se Maria do Carmo “Alta” arrancou com
a internacionalização do fado, duas décadas a seguir Amália Rodrigues pô‑lo em
velocidade de cruzeiro. A partir da segunda metade dos anos 40, Amália e os assombrosos
músicos da sua comitiva estiveram em boa parte dos continentes, houvesse
portugueses dispersos pelo mundo ou apenas público que não sabia pitada da
língua portuguesa. Realce‑se uma característica única que consigo o fado
conheceu: a internacionalização fulgurante da carreira dela deu‑se, praticamente
logo ao início, nos principais palcos de espetáculos no estrangeiro, em que a
humilde artista alfacinha ombreou com os maiores vultos galácticos na área
musical. Foram os voos do êxito à escala planetária que fizeram dela uma diva
mundial, para gáudio da Nação (e do regime político vigente).
Eis um rol de países que estão
associados ao sucesso de Amália Rodrigues, vários deles visitados diversas
vezes por longos períodos: Espanha, França, Itália, Suíça, Bélgica, Holanda, Inglaterra,
Irlanda, Roménia, Líbano, Rússia[14],
Coreia do Sul, Japão, Macau, Austrália, Brasil, Argentina, Chile, México, Estados
Unidos, Canadá, não esquecendo alguns países africanos como Tunísia, Argélia,
Zaire, Angola, Moçambique e África do Sul. Com Amália, o fado catapultou‑se
para o mundo, honrando quer os instrumentistas que ainda mais a abrilhantavam, quer
todos os cantores e músicos portugueses que acompanhavam os intérpretes do fado.
Foi o caso de Jaime Santos, guitarrista que ao início tanto esteve ao lado de Amália
(até meados da década de 50), e que posteriormente integrou outras embaixadas
do fado, como a presidida por Alberto Ribeiro ao Ultramar africano e à África
do Sul[15].
Na diáspora havia réplicas das casas
de fado portuguesas (ou lisboetas). Por Amália Rodrigues ter amadurecido a
saudade das comunidades portuguesas, os retiros do fado além‑fronteiras multiplicaram‑se
por várias cidades cosmopolitas de países para onde os portugueses tinham emigrado.
Para provar o fulgor que o fado transmitia aos lusos patrícios no exterior,
pode ser referido que Jaime Santos, o exímio guitarrista acima citado, atuou em
Paris, em 1961, durante um ano, na casa típica da fadista Clara “d’Ovar”, Le Fado: Uma Casa Portuguesa[16].
O mesmo sucedeu com outro brilhante guitarrista que, a partir de meados dos anos
50 e ao longo de mais de uma década, acompanhou Amália: Domingos Camarinha.
Em 1953 o trio composto por Maria
Pereira na voz, Francisco “Carvalhinho” na guitarra e Martinho d’Assunção Jr. na
viola «realizou uma longa tournée por Angola, Moçambique e África do Sul»[17].
Este exemplo serve sobretudo para referir que tal violista foi um embaixador do
fado durante as duas fases de internacionalização já explicitadas.
Exemplo semelhante de
transversalidade ocorreu com Fernando de Freitas
(Freitinhas). Em meados da década de 30 – portanto, na
primeira fase da internacionalização do fado – acompanhou Maria
Albertina na sua deslocação a França; e cerca de uma década a seguir integrou a
comitiva de Amália Rodrigues na sua deslocação ao Brasil, onde o instrumentista
encontrou o seu novo amor, tendo voltado a Portugal somente duas décadas à frente.
Regressado a Portugal, passou a ser guitarrista de Fernando Farinha,
nomeadamente nas atuações ao estrangeiro. Fernando Farinha cantou no Brasil, na
Argentina, nas ex‑colónias portuguesas de Angola e Moçambique, na África do
Sul, em diversos países europeus com grandes comunidades de emigrantes
portugueses, assim como – conforme adiante indicado, na próxima
secção – nos Estados Unidos, no Canadá e na Venezuela. A primeira digressão
foi em solo brasileiro, em 1951[18].
Deolinda Rodrigues foi outro esplêndido
exemplo de internacionalização do fado nesta segunda fase. «Fez várias
digressões por Espanha, França, Alemanha, Estados Unidos, Canadá, Venezuela e
Brasil, e ainda nas antigas colónias de Angola e Moçambique.»[19]
Urge também apontar o icónico Tristão da Silva. Em 1956 efetuou uma digressão a
África; e em 1960 ao Brasil, a qual durou quatro anos, e que incluiu atuações
noutros países sul‑americanos, concretamente Argentina, Bolívia, Chile,
Paraguai, Peru e Uruguai[20].
Antes de encerrar a presente secção,
importa mencionar Maria Amélia Proença, porventura a personalidade do fado que
se encontra no ativo com mais anos de experiência. Excedeu meio ano uma
digressão realizada, no início dos anos 70, ao Extremo Oriente. Ela atuou igualmente
em Macau, Singapura e Japão[21].
No âmbito da internacionalização do
fado, outros nomes poderiam ser referidos. Para não tornar enfadonho este
documento, optou‑se por não estender a lista. Não obstante, chegados aqui,
impõem‑se duas notas: sobre quem, com vincada convicção, decidiu fechar‑se ao
exterior (i.e., às experiências dos
espetáculos internacionais); e acerca de quem se abriu pontualmente, muito
aquém daquilo que o fado exigia.
No primeiro caso estão, por exemplo, nomes
como Alfredo “Marceneiro”, Júlio Peres, Joaquim Campos e Gabino Ferreira, fadistas
que recusaram sair do seu casulo de conforto, dos seus bairros, das suas
profissões, ou que não aproveitaram as oportunidades para se expandirem.
Encabeçam o segundo caso seguramente os exemplos de Hermínia Silva, a artista
completa, do fado, da revista e do cinema, que detestava sair de Portugal[22],
de Maria Teresa de Noronha, que fez esporádicas digressões internacionais à
Europa e ao Brasil para partilhar com o público a sua voz cristalina, de Lucília
do Carmo, que não passou de raríssimas saídas de Portugal para mostrar o seu
talento inato, e de Fernando Maurício, que apesar de detestar o avião, lá ia a
algumas comunidades de portugueses radicados em diversos países da Europa e da
América[23].
IV. Do 25 de Abril ao
Património da Humanidade
Com o fim do Estado Novo nasceu a
terceira fase da internacionalização do fado. A Revolução dos Cravos provocou certas
mudanças em termos do estatuto negativo que determinados(as) fadistas passaram
a deter após o 25 de Abril de 1974. Fernando Farinha foi claramente um deles,
que se tornou ostracizado por ter assumido a sua crença perante o ideal
comunista. Porém, não se resignando à desventura que lhe tentaram impor, virou‑se
para o exterior. «Em 1983, sem sinais de vontade em travar a carreira, embarca
na sua primeira digressão aos Estados Unidos, Canadá e Venezuela»[24].
Manuel de Almeida, um filho (um pouco
mais velho) do mesmo bairro que o de Fernando Farinha – a Bica –,
efetuou diversos espetáculos lá fora a partir de 1977, nomeadamente em França,
Alemanha, África do Sul, Estados Unidos, Canadá, Brasil, México e outros países
da América do Sul. Curiosamente foi o primeiro artista português a cantar na cerrada
Coreia do Norte, em 1986[25].
Outros artistas atuaram no
estrangeiro, para deleite essencialmente das comunidades portuguesas. Cidália
Moreira e Nuno de Aguiar são somente dois exemplos. Embora seja desnecessário
identificar as pessoas envolvidas nessa divulgação do fado a nível
internacional – pelo motivo antes expresso, o de não sobrecarregar o
texto –, e dado que atrás foi invocado o caso de Fernando Farinha – e
também o de Maria Amélia Proença –, pode agora citar‑se o nome de uma figura
que, no tocante à escala política, estaria por certo nos antípodas comparativamente
a Fernando Farinha – e a Maria Amélia Proença. Teresa “Tarouca” – bisneta
dos condes de Tarouca – foi uma fadista que granjeou êxito na Europa
e na América, nomeadamente em Espanha, na Bélgica, na Dinamarca, no Brasil e
nos Estados Unidos[26].
Do que até aqui foi escrito (nesta e
nas duas secções antecedentes), ressalta a evidência de que a
internacionalização do fado foi encetada quase exclusivamente ao redor das
fadistas (e com menor frequência dos fadistas, pois a aceitação das figuras
femininas por parte do grande público sempre foi bastante superior à das
figuras masculinas). A(o) fadista era – e continua a ser – a
cabeça de cartaz, que escolhia os dotes dos músicos acompanhantes. Uma exceção
verificou‑se em meados dos anos 80, designadamente entre 1985 e 1987.
A exceção aconteceu com um grupo – sublinhe‑se:
grupo, e não fadista com o seu séquito de músicos – que realizou digressões
internacionais, as quais alargaram a dimensão do fado, divulgando‑o noutros
auditórios (que não apenas nos palcos das comunidades portuguesas),
nomeadamente na Suécia, França e
Alemanha. A substituição
da regra pela exceção, ou melhor, do «eu» fadista pelo «nós» grupo, consistiu
no Opus Fado. Tratou‑se de uma obra
sob a forma de quarteto, formado pela voz de Chico Madureira, pela guitarra de
Arménio de Melo e pelas violas de Martinho d’Assunção Jr. e de Vital
d’Assunção.
O Opus
Fado, no que a Martinho d’Assunção Jr. respeita, permite extrair pelo menos
duas conclusões. Com o desempenho do grupo além‑fronteiras, por um lado
constata‑se que esse músico foi a única figura do fado que atravessou as três
fases da internacionalização durante o séc. XX. Por outro, verifica‑se que,
no final de uma coroada carreira, ele abdicou do seu sólido e vertical estatuto
e pôs‑se em pé de igualdade face aos restantes elementos que compunham o grupo,
quase quatro décadas mais novos do que o decano[27].
V. Fado e world music
A quarta e última fase da
internacionalização do fado brotou após a UNESCO ter atribuído, em 2011, o
galardão mundial citado logo ao começo deste texto. A partir de então o fado tem
vindo crescentemente a internacionalizar‑se. Tem‑no feito – e
bem – para os artistas nele intervenientes, para o turismo e para
Portugal. Aproveitou a globalização, e por isso adaptou‑se, conscientemente ou
não, à regra da tendência da uniformização musical, adaptação que acarreta o
enorme risco de poder ver‑se desvirtuado, quer na expressão vocal, quer na
instrumental. Não há bela sem senão.
O fado é, em certos aspetos, parente
do vinho. O massivo vinho de agora é cada vez mais produzido com castas
internacionais; o bom vinho do passado baseava‑se exclusivamente em castas
autóctones, para acrescentar sabor à vida, e não para alimentar o fastwine de gostos formatados e semelhantes.
Frequentemente o fado de hoje
confunde‑se com jazz tocado com guitarras e violas, e com uma panóplia de
instrumentos musicais. O fado de ontem exprimia‑se, singela e completamente, com
alma, com guitarra, com viola e, quando havia dinheiro para marcantes temperos
musicais, com viola‑baixo. Por vezes inovar e evoluir não são palavras
complementares. Dar o caso de Amália para calar as críticas (proferidas perante
as tantas atrocidades musicais que têm sido perpetradas contra o fado) é
perigoso e quiçá provocatório, pois significa que alguém entende que pode haver
a mínima comparação com a diva.
Desde alguns anos para cá, o fado
calça ténis ou veste roupa floreada e mostra as suas tatuagens, desenhadas não
para disfarçar as cicatrizes da vida mas antes para provar que consegue integrar‑se
na padronização da world music.
Quando era tradicional, ou seja, quando era um tipo de folk music, saía muito menos vezes do País, mas era mais distinto.
Não era melhor nem pior do que as demais músicas. Era tão‑só ele mesmo: Fado.
O tempo, em qualquer era, não se
compadece com ideias estáticas e retrógradas. Todavia, importa ter presente que
o prestígio que o fado conquistou a nível internacional com o galardão do Património
da Humanidade não foi alcançado com o fado da forma como hoje se canta e toca.
Fama e prestígio não andam forçosamente a par; sempre foi assim, e assim será.
[1] Não querendo minimamente atenuar o caudal de
críticas a que o documento estará sujeito, mostra‑se adequado citar a opinião
de Fernando Maurício, o popular Rei (Sem
Coroa), a propósito deste tema da internacionalização. Durante uma
entrevista concedida a Baptista‑Bastos, em 1998, o fadista (que contava com uma
carreira profissional com mais de 40 anos) foi perentório ao afirmar que para
conseguir uma carreira internacional é preciso ter «sobretudo padrinhos».
[2] Por simplificação, quem não está identificado
como guitarrista ou violista é cantor(a).
[3] O Ferro
de Engomar inicial estava instalado «numa horta da “Quinta da Rabicha”,
junto a Campolide junto ao arco grande do “Aqueduto das Águas Livres”, em
Lisboa.» (blogue Restos de Colecção,
03/12/2017)
[4] Em rigor não será «figura principal da
Embaixada do Fado» mas sim «figura principal de uma embaixada do fado»,
porquanto poderiam co‑existir várias embaixadas, adstritas a diferentes casas
de fado.
[5] LGuiness, 26/08/2007
[6] Porém, também nesse blogue está escrito que
«em 1933 os diversos intervenientes no espectáculo do fado decidiram criar o
“Grupo Artístico de Fados”, com a Madalena de Melo e a Berta Cardoso, na
guitarra o Armandinho e nas violas Martinho d’Assunção Jr. e João da Mata
[Gonçalves].» (LGuiness, 24/04/2019)
Não
obstante os nomes dos artistas criadores desse grupo e a composição do mesmo, releva
que fadistas e músicos de nomeada efetuavam digressões ao estrangeiro.
[7] LGuiness, 04/08/2014
[8] LGuiness, 24/04/2019
[9] LGuiness, 19/08/2007
[10] No ano anterior, em 1933, Maria Albertina
participara no filme A Canção de Lisboa,
que lhe conferiu êxito acrescido.
[11] LGuiness, 11/07/2007
[12] LGuiness, 16/05/2014
[13] LGuiness, 16/08/2007
[14] No tempo em que a U.R.S.S. estava fechada ao
mundo ocidental.
[15] LGuiness, 20/03/2012
[16] LGuiness, 20/03/2012
[17] LGuiness, 04/10/2007
[18] LGuiness, 30/01/2012, e site da Fundação Manuel Simões
[19] LGuiness, 12/10/2015
[20] LGuiness, 22/03/2015
[21] LGuiness, 07/05/2014
[22] A própria Hermínia referiu que «Tive, ao longo
da minha carreira, como é natural, muitas e variadas propostas para ir ao
estrangeiro, mas como sou muito pegada a isto… Tenho muita relutância em sair
de Portugal. Eu ainda nem sequer visitei as províncias ultramarinas, apesar dos
muitos convites que para o efeito me têm endereçado e do grande desejo que
tenho de as conhecer.» [Mesmo assim,] «Fui ao Brasil, onde me demorei o menos
tempo possível, aos Açores e à Madeira, onde fiz uma curta série de
espectáculos.» (LGuiness, 23/10/2007)
De
qualquer modo, durante a sua extensa carreira, atuou no Brasil, nos Estados
Unidos, no Canadá e na França. A sua digressão mais demorada, realizada em
1952, foi ao Brasil, para onde se deslocou no paquete Vera Cruz – que
em 1961 foi transformado em transportador de tropas para a Guerra Colonial.
Durou sete meses, e o triunfo foi tal que o contrato era para ser renovado por
mais um ano; porém, ela recusou por ser «muito pegada a isto», i.e., às saudades de Lisboa, da família
e do público português. (RTP Memória)
Na
verdade, Hermínia evitava ultrapassar a fronteira não só por sentir o coração
ancorado a Portugal, mas também por ter temor – esta palavra não é
exagerada – em viajar de avião. As duas razões explicam porque vários
dos seus êxitos tenham chegado ao estrangeiro através de outras vozes.
Amália
Rodrigues – que era, segundo as palavras da própria, em 1980, no
Teatro São Luiz, perante o público, Irene Isidro e Hermínia Silva, uma grande
amiga desta última (e não rival, como por vezes se julgava) e sua ídola
confessa (desde a primeira vez que a ouviu, no Café Lisboa) – pisou
pela primeira vez o Brasil em 1944, e logo durante mais de dois meses. Também
as saudades e o desejo de passar o Natal em Lisboa obrigaram‑na a regressar
mais cedo do que o público brasileiro ansiava. Um dos fados que poderá ter
levado no seu repertório foi Quem o Fado
Calunia, uma criação de Hermínia Silva. De facto, a propósito outrossim da
relação de Amália com o Brasil – ver site da Folha de S. Paulo (13/07/2001) –, Amália cantava «temas interpretados por outras fadistas, como Hermínia Silva
("Quem o fado calunia"), Deolinda Rodrigues ("Fado da
Madragoa"), Moniz Trindade ("Fado Gingão") ou "Casa
Portuguesa" que surgiu pela primeira vez numa revista de amadores em
Lourenço Marques (atual Maputo).»
[23] Deslocou‑se ao Luxemburgo, à Holanda, à Inglaterra,
aos Estados Unidos e ao Canadá.
[24] Site
da Fundação Manuel Simões
[25] LGuiness, 05/12/2012
[26] LGuiness, 06/08/2012
[27] O projeto Opus
Fado foi, de certo modo, um regresso às origens de Martinho d’Assunção Jr.,
à época em que ele constituiu um grupo onde imperou o «nós», enquanto grupo,
conjunto, trupe, ou algo similar. Com efeito, na segunda metade dos anos 30,
criou a Trupe de Fado, composta por
si, pela fadista Constança Maria, pelos guitarristas Freitinhas e Francisco
“Carvalhinho” e, também como violista, por Duarte Costa, seu aluno.
O
segundo exemplo do «nós» em Martinho d’Assunção Jr. data do início da década de
40, quando formou um grupo integrado só por músicos: o Conjunto Artístico Português – guitarras de Jaime Santos
e de Freitinhas, violas de fado de Martinho d’Assunção Jr. e de Miguel Ramos, e
viola‑baixo de Freitas da Silva, o primeiro baixista do fado. Note‑se que em
1933 havia sido criado o Grupo Artístico
de Fados, do qual o próprio Martinho fez parte – vide nota de rodapé n.º 6.
A
partir do Conjunto Artístico Português,
todos os grupos organizados por si tiveram, na sua identificação, o nome do
próprio: Quarteto Típico de Guitarras de
Martinho d’Assunção (cuja constituição variou ao longo dos anos), iniciado
ainda na primeira metade da década de 40; e Trio
de Guitarras de Martinho d’Assunção (composto por si, por Arménio de Melo e
por Vital d’Assunção), criado antes da existência do Opus Fado.
A
propósito de conjuntos de instrumentistas, frise‑se que, na sequência de um
convite a Raul Nery, no final dos anos 50, pela Emissora Nacional (e formulado
pelo maestro Eduardo Loureiro, o Diretor de Programas da estação pública),
quando Maria Teresa de Noronha tinha um programa quinzenal nessa
rádio – programa que atingiu o feito de ter alcançado 23 anos de
emissões, e que terminou de maneira precoce devido à firme mas humilde e nobre
decisão da fadista, decisão tomada para que o público não chegasse a sentir o
cansaço de ouvi‑la –, tal guitarrista formou um conjunto de guitarras e
violas (cuja constituição também não foi sempre a mesma), ao qual atribuiu o
nome de Conjunto de Guitarras de Raul
Nery – inicialmente formado por Raul Nery e Fontes Rocha nas
guitarras, Júlio Gomes na viola de fado, e Joel Pina na viola‑baixo. Este
conjunto saiu algumas vezes para o exterior com o desmedido mas discreto
talento de Maria Teresa de Noronha; e mais tarde calcorreou o mundo com a voz e
a arte extraordinárias de Amália Rodrigues.

